a partir de maio 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Autenticidade dos Evangelhos:Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo


Autenticidade dos Evangelhos
Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra
dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens
para os ensinos mais profundos do Evangelho.
Mas, já desvirtuado pela versão dos Setenta, o Antigo Testamento
não refletia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que
uma intuição das verdades superiores5.
“As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz
eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo
em todas as épocas, levadas a todos os meios, postas ao alcance
das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem
desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados,
arrastado por suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de
grandes coisas sem as ver. Essa negligência do belo moral, causa
de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se
o guante da adversidade e as grandes comoções da História, abalando
profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”
Veio Jesus, espírito poderoso, divino missionário, médium
inspirado. Veio, encarnando-se entre os humildes, a fim de dar a
todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza
– vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra
impagáveis traços.
A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do
pensamento. Eis por que não a pode ter sido criada pela imaginação.
Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula
5 Ver nota complementar nº 1, no fim do volume.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 28
nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem,
com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.
Sua doutrina, toda luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes
e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados
sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da matéria
e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida
que as deve reanimar e consolar.
E essa palavra lhes é prodigalizada com tão penetrante doçura,
exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas
e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.
O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino
dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade
e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade
da consciência e na paz do coração.
Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros
tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência
das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.
Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a missão,
muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o
impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos
eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente,
pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o
desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.
Em sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a
formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam
os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa
nova” a outras regiões.
Os Evangelhos, escritos em meio das convulsões que assinalam
a agonia do mundo judaico, depois sob a influência das discusLéon
Denis – Cristianismo e Espiritismo 29
sões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, se
ressentem das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação
dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem seus
evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros6. Grandes
querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas
perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a
supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade.
A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de
sistemas diferentes, há de ser reprimido.
A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio
momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da
natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade,
o papa Damaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de
redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa
tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e
tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou
a “Vulgata”.
Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerônimo achava-
se, como ele próprio o disse, em presença de tantos exemplares
quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos o obrigava
a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as
responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra,
prefácios reunidos em um livro célebre. Eis aqui, por exemplo, o
que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina
dos Evangelhos:
“De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de
alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das
Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem
entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro
6 Ver nota complementar n° 3.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 30
texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso
arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele
mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à
infância o mundo já envelhecido.
“Qual, de fato, o sábio e mesmo o ignorante que, desde que tiver
nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido
apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que está
habituado a ler, não se ponha imediatamente a clamar que eu sou
um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar,
substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans
esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere,
mutare, corrigere.7
“Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é
que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o
segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem,
mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”
São Jerônimo assim termina:
“Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos,
cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois
de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas
dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-
los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo
unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o
resto tal qual estava.” (Obras de São Jerônimo, edição dos Beneditinos,
1693, t. I, col. 1425.)
Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico para o
grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto
7 A obra de S. Jerônimo foi, efetivamente, mesmo em sua vida, objeto
das mais vivas críticas; polêmicas injuriosas se travaram entre ele e
seus detratores.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 31
de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais
difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se
constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada,
como o confessa o autor, de antigos manuscritos.
Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento
de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada
em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que
havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado
em 1546 pelo concílio ecumênico de Trento, foi declarado insuficiente
e errôneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua
ordem; mas a própria edição que daí resultou, e que trazia o seu
nome, foi modificada por Clemente VIII em uma nova edição, que
é a que hoje está em uso e pela qual têm sido feitas as traduções
francesas dos livros canônicos, submetidos a tantas retificações
através dos séculos.
Entretanto, a despeito de todas essas vicissitudes, não hesitamos
em admitir a autenticidade dos Evangelhos em seus primitivos
textos. A palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda dúvida se
desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido
adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da primitiva
idéia. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza
desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de
um enviado celeste.
Ao lado, porém, dessa potente destra, a frágil mão do homem
se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções,
ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos
da alma, provocam a incredulidade.
Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia,
necessário submeter o seu conjunto à inspeção do raciocínio. Todas
as palavras, todos os fatos que neles estão consignados não poderiam
ser atribuídos ao Cristo.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 32
Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redação
definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram
esquecidos, muitos fatos contestáveis aceitos como reais, muitos
preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para
servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais
belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram,
antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam
conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia
inda procuram.
O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos sagrados
textos, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões
ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era
assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal
foi o objetivo colimado através dos séculos, o pensamento que
inspirou todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A
despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente
cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis
obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e
que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos
ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domínio e
aos bens materiais.
Seria preciso grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento
do Cristo do conjunto dos Evangelhos, trabalho possível,
posto que árduo para os inspirados, dirigidos por segura, mas labor
impossível para os que só por suas próprias faculdades se dirigem
nesse Dédalo em que com as realidades se misturam as ficções,
com o sagrado o profano, com a verdade o erro.
Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos
homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o
supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 33
Amparados, esclarecidos por essa divina centelha que para os
homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco
jamais se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os
suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram
os apóstolos da Reforma.
Eles foram, em sua tarefa, interrompidos pela morte; mas do
seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa
grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as
almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito
mais vasta.
É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelação,
científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em
todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo,
que procuraremos escoimar a doutrina de Jesus das obscuridades
em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos,
assim, à conclusão de que essa doutrina é simplesmente à volta ao
Cristianismo primitivo, sob mais precisas formas, com um imponente
cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo
monopólio, toda reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento
de Jesus.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo

Nenhum comentário:

Postar um comentário