a partir de maio 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sentido oculto dos Evangelhos:Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo


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Sentido oculto dos Evangelhos
Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral, e aos Evangelhos
em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensadores
e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus,
vendo nele, nas suas palavras, nos fatos da sua vida, uma idéia
filosófica, uma abstração a que foi dado um corpo, para satisfazer a
tradição que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias.
Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama
poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da
idéia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma
série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o
lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino
e humano em um modelo de perfeição, oferecido à admiração dos
homens.
Aceita semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser considerados
fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo
teria tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma
evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção,
como pôde ser acolhida por seus contemporâneos, a princípio, e
depois por uma longa série de gerações?
Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianismo?
Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com exceção
de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a incapacidade
deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus se
destaca, vigorosamente, do fundo de mediocridade dos seus discípulos.
A menor comparação faz sobressair a impossibilidade de
semelhante hipótese.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 35
Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos cristão-
judeus, as quais denunciam claramente a sua origem, e formam
contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus.8 Daí
resulta um fato evidente, o de que autores imbuídos, a esse respeito,
de idéias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar
uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de
Jesus.
Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam
o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só
podia emanar de uma inteligência sobre-humana.
Se as Escrituras fossem, em seu conjunto, não mais que um
amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de
Jesus não teria podido manter-se através dos séculos, em meio das
correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. Construção sem
alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão
dos tempos. Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a
despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo o que os homens
fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas de uma
interpretação errônea.
A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar aos
primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da
morte; não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religião
que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a ação do
tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não
obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é,
positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova
revelação. Ele constitui toda a sua originalidade.
Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência de
Jesus, posto que em reduzido número.
8 Ver notas complementares nºs 2 e 3.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 36
Suetônio, na história dos primeiros Césares, fala do suplício de
“Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã
entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito.
O Talmude fala da morte de Jesus na cruz e todos os rabinos
israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho9.
Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si, bastaria
para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão
do Cristo. Se numerosos fatos apócrifos nele foram mais tarde
introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob a
forma de narrativas fantasistas e obsoletas teorias, duas coisas nele
subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um
caráter de autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Calvário
e a doce e profunda doutrina de Jesus.
Essa doutrina era simples e clara em seus princípios essenciais;
dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes.
Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas
até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. Todavia,
ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas
vezes por parábolas. Seu pensamento, de ordinário tão luminoso,
mergulha por vezes em meia obscuridade. Não se percebem,
então, mais que os vagos contornos de uma grande idéia dissimulada
sob o símbolo.
É o que ele próprio explica por estas palavras, quando, citando
Isaías (cap. VI, 9), acrescenta:
“Eu lhes falo por parábolas, porque a vós outros vos é dado
conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é
concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.)
9 Ver "Os deicidas", por Cahen, membro do Consistório israelita.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 37
Evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a
destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a todos, e
outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É o que, de resto,
existia em todas as filosofias e religiões da antiguidade.10
A prova da existência desse ensino secreto se encontra nas palavras
já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da
parábola do semeador, que se acha nos três evangelhos sinóticos,
os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes
responde:
“A vós outros é concedido saber o mistério do reino de Deus;
mas, aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas;
“Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não
entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.).
São Paulo o confirma em sua primeira Epístola aos Coríntios,
capítulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens
carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou com
iniciados.
A iniciação era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam
eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam na
comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras
de João:
“Vós outros tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas.
Eu não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a
quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.).11
Ao tempo de sua controvérsia com Celso, Orígenes defendeu
energicamente o Cristianismo. Em sua vigorosa apologia, fala
muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso
10 Ver minha obra "Depois da Morte", págs. 9 a 100.
11 Ver também nota complementar nº 7.
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argüido de possuir um cunho misterioso, refuta Orígenes essas
críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados
recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado,
em seu sentido geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é
que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com
essa doutrina que com as opiniões prediletas dos filósofos.
Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é,
ao demais, adotado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma
censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por
toda parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos
geralmente admitidos?
O fundador do Cristianismo não separava a idéia religiosa da
sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita
sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra.
Mas ele devia ir de encontro aos interesses estabelecidos e suscitar
em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo
para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que em sua doutrina
ia ferir as idéias dominantes e ameaçar as instituições políticas
ou religiosas.
As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas, intencionais.
As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos.
Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir
moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido
filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria.
Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos
pensamentos elevados, das altas e puras aspirações. Essa comunhão
pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo,
bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os
bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a
princípio, tornaram-se poderosos e autoritários. Constituiu-se a
teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do
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alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu.
Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais
fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas mergulhadas
na ignorância, a elevá-las às eminências intelectuais. Os mistérios
cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja.
Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores
sinceros, que se esforçavam por adquirir novamente as
verdades perdidas. Fez-se a noite cada vez mais espessa sobre o
mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em
Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em
vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi à
religião do terror.
A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para
fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao
estado de infância, porque os bárbaros invasores, no ponto de vista
da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e
das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a
Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o
Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência e
no meio novo, em que penetravam, uma depressão intelectual.
O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em
seu próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou
material. Para impressionar a imaginação das multidões, voltou-se
às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da Humanidade.
A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperança,
estranhos dogmas foram combinados. Não se tratou mais de
realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal
dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do
juízo final, tomada ao pé da letra, as preocupações da salvação
individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desviaram
o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento
de Jesus numa torrente de superstições.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo 40
Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os serviços
prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia
e sólida organização, sem o papado, que opôs o poder da idéia,
posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o
direito de perguntar o que se teria tornado a vida moral, a consciência
da Humanidade. No meio desses séculos de violência e trevas,
a fé cristã animou de novo ardor os povos bárbaros, ardor que
os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação da
Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na
obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A
vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito
dos costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preciso
agradecer à Igreja, não obstante os meios de que ela se utilizou
para a si mesma assegurar o domínio das almas.
Em resumo, a doutrina do grande crucificado, em suas formas
populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício
do presente. Religião de salvação, de elevação da alma pela subjugação
da matéria, o Cristianismo constituía uma reação necessária
contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de
luz, mas não passando de foco de sensualismo e corrupção. O
Cristianismo tornava-se um estágio indispensável na marcha da
Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente de crença
em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada
vez mais amplas e fecundas.
O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas,
não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da
vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo
estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a
via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a
dos prazeres.
O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da Humanidade,
a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a
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Humanidade, não teria sido capaz de realizar as obras sociais que
asseguram o seu futuro se não se tivesse impregnado do pensamento
e da moral evangélicos.
A Igreja, entretanto, delinqüiu, trabalhando por prolongar indefinidamente
o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver
nutrido e amparado à criança, tem querido mantê-la em estado de
submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência
senão para melhor a oprimir.
A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que
era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa
retroação das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se
nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento
das ciências e da filosofia, a ponto de proscrever, do alto da cadeira
de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a
civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus).
Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo
momento da História, que se operou todo o movimento, toda a
evolução do espírito humano. Foram necessários séculos de esforços
para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair
da Idade Média. Fizeram-se precisas a Renascença das letras, a
Reforma religiosa do século XVI, a filosofia, todas as conquistas
da Ciência, para preparar o terreno destinado à nova revelação, a
essas vozes de além-túmulo que vêm aos milhares e em todas as
regiões da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do
Cristo, restabelecer sua doutrina, tornar compreensíveis, a todos, as
verdades superiores amortalhadas na sombra das idades.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo

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