Não vos enganeis; Deus não se deixa escarnecer; pois tudo o que o homem semear, isso também ceifará. (Gl 6:7)
Certo dia, assistíamos ao filme O Auto da Compadecida, com os talentosos Matheus Nachtergaele, Selton Mello e outros, e nos deparamos com o seguinte diálogo de um Bispo com um cangaceiro, que estava prestes a assassiná-lo, juntamente com um padre:
Cangaceiro: - Eu queria que antes de atirar o senhor me perdoasse os meus pecados, vixe? Bispo: - Mas para perdoar, antes você tem que se arrepender e desistir de nos matar. Cangaceiro (com sarcasmo): - Me arrependo depois... Esse diálogo é fictício, mas inspirado em casos reais, e nos sugere algumas reflexões: o que dava tanta certeza ao cangaceiro que, após matar pessoas, seria impunemente perdoado? O que o fazia ter a certeza que poderia adiar impunemente o seu arrependimento para depois dos assassinatos? A resposta encontra-se em uma teologia pregada pelas Igrejas ditas Cristãs há séculos, conhecida como Salvação pela Graça. Em linhas gerais, ela diz que o pecador, uma vez arrependido, que confessasse os seus pecados e aceitasse Jesus Cristo, seria perdoado sem ter que responder por seus crimes ou reparar os seus danos causados a outrem. Que Deus, todo misericordioso, não submeteria o ex-pecador à humilhação de ter que pagar pelos seus erros e restituir a todos aqueles a quem causou prejuízo. Mas o resultado prático é que essa doutrina, em princípio bem intencionada, ao invés de conter o mal, serve de justificativa indireta para qualquer tipo de pecado cometido pelos seus seguidores. Um malfeitor, se for cristão convicto, pode sempre adiar o arrependimento por mais um dia, e mais um, e mais um...e nesse meio tempo, dar vazão ilimitada a todas as suas paixões inferiores. Essa situação é mais grave do que parece à primeira vista. Se analisarmos o passado, provavelmente encontraremos na doutrina da Salvação pela Graça a justificação básica das maiores atrocidades cometidas pelos cristãos em todos os tempos. Algumas outras doutrinas, como o Espiritismo, afirmam de forma veemente que a doutrina da Salvação pela Graça é uma infantil ilusão; que todos os arrependidos, mesmo arrependidos, deverão expiar e reparar todos os males que fizeram até "o último ceitil", como dizia Jesus; e que quem mais males praticar, mais reparará. Por conta dessas e outras, o Espiritismo é declarado obra do demônio. Vamos analisar, então, sob o ponto de vista da bondade, justiça e misericórdia divinas, se a salvação pela graça possui fundamentação racional. Sabemos que Deus é Bom, Justo e Misericordioso (com letras maiúsculas). Seria injustiça da parte de Deus, como legislador, o fato de ele cobrar de cada um aquilo que lhe devem em virtude da inobservância da Lei? Seria injusto que um ladrão apanhado em roubo fosse obrigado a restituir o que roubou às suas vítimas? Seria injusto que um malfeitor cumprisse uma pena justa, proporcional ao delito praticado? Mesmo que o legislador se abstivesse de cobrar a dívida, estaria sendo injusto se a cobrasse? Aliás, injusto seria se deixasse de cobrar de uns e cobrasse de outros, o que não deixa ao arbítrio do próprio Criador a discricionariedade na aplicação da Lei, porque senão nenhuma Lei seria possível. Alguns dizem que o fato de Deus cobrar o que lhe devem, mesmo não sendo uma injustiça, seria falta de bondade e misericórdia. Mas ao mesmo tempo propõem que todos aqueles que, mesmo sendo bons e justos, não aceitem o "deus" particular dos cristãos, em outras palavras – Jesus Cristo – sejam condenados a uma eternidade de tormentos e afastamento de Deus. Estranhas noções de bondade, justiça e misericórdia divinas. O Deus dos ditos “cristãos” não parece equânime na distribuição das recompensas e punições. Analisemos ainda as consequências dessa doutrina para os justos e para os pecadores aqui, na vida terrena. De que serve a salvação pela graça para aquela pessoa de poucos pecados; para aquela que se esforça em viver os preceitos do Cristo? De nada!!! O justo não precisa do perdão gratuito porque ele não peca. Mas então clamarão: "Não há justos! Todos somos pecadores!". Concordamos. Mas há aqueles cujos pecados resultariam numa punição/reparação insignificantes, sendo a salvação pela graça inútil e sem sentido para eles. Por outro lado, para uma pessoa cheia de pecados e tendente ao pecado, como o cangaceiro do filme, a salvação pela graça é um incentivo aos maus atos. Imagine poder fazer o que quiser e depois ser perdoado de graça num confessionário, em troca de uns "Padre Nosso" e algumas "Ave Maria"? As igrejas protestantes, então, nem isso exigem. Então, percebemos que a salvação pela graça fornece justificação para os pecadores, enquanto que é inútil para os justos. Aceitá-la seria dizer que Deus incentiva o pecado. Ela funciona como o Pai que mima os seus filhos, sempre passando a mão sobre suas cabeças quando cometem erros ao invés de corrigi-los, ao passo que não é capaz de recompensar os bons filhos. Longe de nós querer afirmar que uma igreja ou um culto qualquer devesse estabelecer meios "mais justos" de quitar dívidas de quem quer que fosse, o que se constituiria inevitavelmente em outro abuso. Mas os cultos deveriam sim informar sobre a certeza da punição para quem inobserva a Lei Moral, ou seja, para quem peca. Nós identificamos o problema da "graça" assim que vimos "cristãos convictos" no que ensina a sua igreja utilizando essa manobra para praticarem o mal respaldados por sua fé, iludindo-se que Deus não os puniria caso se arrependessem sinceramente após pecarem. Mas a mesma manobra que denunciamos aqui já havia sido percebida por outros no passado, como Immanuel Kant e Platão. Como algumas pessoas nos acusaram de fazer uma interpretação exclusiva e tendenciosa sobre o ensino da "graça", as citações abaixo mostram que não fomos os únicos e nem os primeiros a perceber essa manobra. A passagem abaixo foi extraída do livro A Religião nos limites da simples razão, terceira parte, primeira seção - Representação filosófica do triunfo do princípio bom pelo estabelecimento de um Reino de Deus na Terra, item VII - A passagem gradual da fé de igreja para a única autoridade da pura fé religiosa é a aproximação do Reino de Deus, de Immanuel Kant, 1793 (tradução livre):
A proposição “é preciso crer que houve uma vez um homem que, pela sua santidade e mérito, satisfez tanto para si (relativamente ao seu dever) como para todos os outros (pelas suas deficiências no tocante aos seus deveres) (coisa sobre a qual a razão nada nos diz), para esperar que nós, mesmo em uma mudança de vida para melhor, possamos ser felizes unicamente em virtude daquela fé”, diz algo completamente diverso da proposição seguinte: “é preciso aspirar com todas as forças a uma disposição de ânimo santa de uma conduta de vida agradável a Deus para poder crer que o amor de Deus pela humanidade (a nós já assegurado pela razão), em consideração dessa disposição de ânimo reta que se esforça para por cumprir a vontade daquele segundo toda a sua capacidade, suplementará, seja de que modo for, a deficiência do ato.”
A primeira proposição não está em poder de todos os homens (mesmo do não erudito). A história mostra que em todas as formas de religião imperou o conflito dos dois princípios da fé; efetivamente, todas as religiões tiveram expiações, onde quer que tenham pretendido se situar. Mas, por seu lado, a disposição moral também não deixou de fazer ouvir as suas exigências em cada homem. No entanto, em todas as épocas, os sacerdotes, em voz alta, se lamentaram mais do que os moralistas (intimando as autoridades a remediar o dano), por causa da negligência do culto divino que fora introduzido para reconciliar o povo com o céu e o remover do estado de desgraça. Os moralistas, pelo contrário, atribuíam, em grande parte, aos meios de descarrego do pecado pelos quais os sacerdotes facilitavam a todos reconciliar-se com a divindade no tocante aos mais grosseiros vícios, a causa da decadência dos costumes. De fato, quando existe um fundo inesgotável para o pagamento das culpas feitas ou ainda por fazer, bastando apenas lançar-lhe mão para se isentar delas (e é o que, antes de qualquer coisa, certamente se fará perante todas as queixas que faz a consciência), ao passo que o propósito da boa conduta se pode suspender até que primeiro a situação esteja clara quanto a esse pagamento, não se pode, pois, imaginar facilmente outras consequências de semelhante crença. (grifo nosso)
E aqui o que escreveu Platão, em A República, Livro II, 365a-e, nas palavras de Adimanto, que expunha os motivos porque os homens diziam que era melhor ser injusto do que justo:
...Se, porém, existem (os deuses), e se preocupam, nós não sabemos nem ouvimos falar deles a mais ninguém, senão através das leis e dos poetas que trataram de sua genealogia, e são esses mesmos que dizem que eles são de molde a deixarem-se dobrar por meio de sacrifícios, preces brandas e oferendas. Ou acredita-se em ambas as coisas, ou em nenhuma. Se, portanto, se deve acreditar neles, deve-se ser injusto e fazer-lhes sacrifícios com o produto de nossas injustiças. Efetivamente, se formos justos, só estaremos livres de castigo por parte dos deuses, mas afastaríamos assim os lucros provenientes da injustiça. Ao passo que, na qualidade de homens injustos, não só teremos lucros como também, se houvermos feito transgressões e cometido faltas, por meio das nossas preces os persuadiremos a deixarem-nos escapar incólumes. "Mas é que no Hades pagaremos a pena das injustiças aqui cometidas, nós ou os filhos dos nossos filhos." Mas, meu amigo, dirá esse jovem, continuando o seu raciocínio, as iniciações podem muito aqui, bem como os deuses libertadores, conforme proclamam as maiores dentre as cidades e os filhos de deuses, que se tornaram poetas e profetas da divindade, e que nos revelam que assim é. (grifo nosso)
É por esses motivos que julgamos essa doutrina um mal que não causa, mas contribui para a degradação do estado moral das nossas sociedades e, se dependesse de nossa opinião, ela seria definitivamente erradicada da teologia de qualquer religião, seja ou não cristã.
Obs.: Embora tenhamos usado no começo deste artigo um exemplo fictício de um filme, a motivação para escrever baseou-se em casos reais onde tais situações realmente ocorrem ou ocorreram. Nós o usamos apenas para não citarmos nomes de pessoas reais. Rafael Gasparini Moreira Paulínia/SP e-mail: rafael.gasparini@gmail.com mai/2007 (revisado em mar/2012) Bibliografia citada:
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a partir de maio 2011
domingo, 29 de julho de 2012
O Problema da Salvação pela Graça
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