a partir de maio 2011

domingo, 10 de junho de 2012

A MITOLOGIA CRISTÃ.>REVISÃO DO CRISTIANISMO


O mito é um arquétipo. Não é uma ilusão, uma mentira, mas uma realidade interna da alma, que se projeta na realidade externa. Nasce das experiências passadas do espírito e se encarna nas experiências presentes. Sua lei não é a metamorfose, como quer Untesteiner, mas a fusão. O mito bíblico: "O Espírito de_ Deus flutuava sobre as águas" oferece-nos uma visão dialética do processo mítico, segundo a teoria platônica da reminiscência. A idéia inata de Deus, no homem, é a do Ser Perfeito de Descartes, que não vem de nenhuma experiência concreta, mas de uma intuição necessariamente anímica. A alma intui, pela necessidade de sua própria transcendência, a existência do Ser Perfeito (por isso mesmo absoluto) e ao encarnar-se na imperfeição humana procura também encarnar essa idéia na realidade objetiva. Essa é a lei de adoração, revelada por Kardec. A existência interna é projetada no exterior e encarnada, pela imaginação, no objeto pregnante da visão gestáltica do mundo. Estabelece-se a fusão da idéia com um objeto real: uma rocha, uma montanha, uma árvore ou bosque, um animal que passa à condição de sagrado, um homem poderoso. Numa fase avançada, a idéia do espírito (percepção da essência humana) substitui os objetos concretos. Deus então aparece como a projeção do próprio homem na transcendência, flutuando sobre as águas, elemento gerador de todas as coisas e seres.
A lei do mito se torna clara nesse processo. A idéia íntima e pura de Deus se funde com o objeto exterior e impuro, imperfeito; que nessa fusão se torna puro e perfeito. Toda a mecânica do Sagrado se revela nessa metamorfose, que é conseqüência e não causa do processo mitológico. A imaginação criou uma realidade nova no plano do concreto, pela projeção da alma nas coisas. O estudo do animismo nos povos primitivos e nas crianças mostra-nos como o poder criador do homem povoou o mundo de mitos que lhe permitiram compreender e estruturar a realidade exterior para poder dominá-la. Na reci-procidade dialética, esses mitos acabaram dominando o homem, protegendo, dando-lhe segurança e controlando o seu comportamento na relação com os objetos e os seres do mundo.
O Materialismo exclusivista, como o de Feurbach e de Marx e Engels, ficando apenas no plano fenomênico, só podia interpretar esse processo como simples ideiação, pela qual o homem criava Deus, projetando-se a si mesmo na figuração de Deus. Herbert Spencer foi o primeiro, como acentuou Ernesto Bozzano, a perceber e provar que os mitos nascem da realidade objetiva, mas não percebeu que tomava os efeitos pela causa. Por trás dos fatos reais está a mola oculta das causas espirituais. O homem não criou os deuses ou Deus, mas descobriu em si mesmo o arquétipo do Ser Perfeito e projetou-o na realidade objetiva por necessidade anímica, lógica e ontológica. Os mitos se revelam, assim, como uma supra-realidade, mais real do que o real, porque a lei de fusão permite ao homem dar ao real objetivo a quarta-dimensão da realidade subjetiva. Para o homem dos tempos mitológicos, o mito aparece como realidade e o real como simples matéria que serve para moldar-se a realidade do mundo. Não é de admirar que os homens daqueles tempos dessem preferência aos mitos, desprezando o histórico. Para os cristãos da era apostólica, Jesus tinha nascido realmente em Belém de Judá e não em Nazaré, pois a profecia bíblica assim prescrevia e assim teria de ser. Toda a mitologia dos Evangelhos está impregnada dessa magia do mito e por isso nos enternece com a sua beleza e o seu encanto. Kardec foi o primeiro a ter a coragem de submeter o Evangelho (no sentido global do termo) às divisões necessárias, para separar do texto, dividido em cinco partes, o ensino moral de Jesus. Esse ensino é que realmente nos oferece a concepção cristã do mundo e do homem. E nele Jesus não aparece como um taumaturgo místico ou um semi-deus, a pessoa de Deus no mundo ou a encarnação do Verbo, mas como o ser na existência, o homem no mundo (não do mundo) da expressão kardeciana, o homem que traz consigo a mais perfeita idéia de Deus e por isso se encarnou, para transferi-la aos homens como homem. O mito do Cristo e do Verbo surgem como conotações naturais das mitologias antigas, particularmente a egípcia, a grega e a romana, a judaica e a cristã, para a elaboração lenta progressiva da Teologia Cristã, que, devia produzir, como produziu, o espantoso sincretismo religioso que deu forma ritualística e litúrgica à Igreja Cristã, para que ela pudesse, em nome dos mitos assimilados, domar o potro selvagem do mundo instalar na Terra o Reino de Deus. O mito da Trindade, provindo das grandes religiões da Antigüidade — como vemos na trindade egípcia formada por Osiris, Isis e Horus — deu-lhe a possibilidade de incluir o Cristo na Mitologia Cristã
como a segunda pessoa de Deus, de maneira que a Igreja, fundada pelo Cristo segundo a interpretação católica-romana, podia se apresentar como instituição divina do próprio Deus em pessoa. O milênio Medieval provou a eficácia desse sofisma. As ordenações da Igreja revestiram-se de conteúdo divino e os próprios anjos passaram a condição inferior à dos homens, pois não podiam perdoar pecados, como os sacerdotes católicos. Daí a rebelião dos anjos contra Deus, dando lugar à inclusão do mito do Diabo no Cristianismo. A partir do quarto século da Era Cristã, a Igreja absorveu a estrutura formal da Igreja Judaica, as aras e os sacramentos de várias religiões pagãs, suas vestes sacerdotais e paramentos para celebrações rituais, instrumentos sagrados do culto e converteu as imagens dos deuses gregos e romanos em imagens dos santos e anjos, dando dimensões universais ao culto local e humilde das assembléias cristãs primitivas. O templo de Jerusalém, com sua guarda armada e seu mercado de elementos rituais, animais para os sacrifícios, ervas para a queima em honra a Iavé, bancas de cambistas e assim por diante, teve sua réplica nas instalações suntuosas do Vaticano (um Estado Teológico) e a cadeira de Moisés foi substituída pela Cátedra de São Pedro, o rude pescador do lago de Genesaré.
O mercado mundial de indulgências chegou a tal expansão que levou a consciência de Lutero a rebelar-se e promover o movimento da Reforma, com o objetivo declarado de volta a Cristo. O Cristiamo do Cristo desapareceu na política da Igreja, só restou o Cristianismo dos seus vigários, como diria em Paris o Padre Alta, no século passado, nos famosos sermões que lhe custaram a excomunhão. São Francisco de Assis, um santo que dispensava a canonização, deu a sua vida para forçar a Igreja retornar a Cristo. E todas as grandes figuras da Igreja, homens e mulheres, que tiveram olhos para ver a desfiguração do Cristianismo foram alijadas do seio da Santa Madre. Apesar de tudo isso, ou talvez por tudo isso, o Cristianismo conseguiu, como o fermento da parábola, infiltrar-se no mundo e levedar, embora apenas em parte, a massa do mundo. Os princípios do ensino moral de Jesus, mesmo apresentados em invólucros adulterados ou na interpretação dogmática dos vigários — a leitura dos textos evangélicos e bíblicos era privativo dos clérigos e só eles podiam dizer o que os textos ensinavam — e apesar disso esses textos produziram transformações fundamentais no plano sócio-cultural. Mas nem por isso o Cristianismo conseguiu vencer a asfixia dos poderes combinados do mundo, o religioso e o político, ambos assentados na sólida base da ignorância generalizada e acionados pela força convincente do dinheiro. O Templo de Jerusalém e o Capitólio se fundiram na imagem única do Vaticano, que restabelecia, no mundo dominado pelos bárbaros, atemorizado ante o poder das hordas que abateram Roma e Bizâncio, as estruturas políticas e sociais do Império Romano.
Apesar de tudo isso, e talvez por tudo isso, como dissemos acima, o Cristianismo triunfou, pois a realidade do mundo não é uma construção gratuita dos poderes divinos, mas uma construção dolorosa e lenta em que as mãos dos homens devem sangrar no penoso desenvolvimento do processo histórico. As transformações possíveis foram feitas, na medida em que os homens do poder e as massas ignorantes e supersticiosas adquiriam experiências novas e novas perspectivas culturais. Por isso, o quadro que esquematizamos acima não representa um ataque à Igreja ou uma crítica ditada por sectarismo ou anti-clericalismo sistemático. A realidade histórica foi essa — e não podia ser outra — dadas as condições culturais da época. Os homens são o que são, e não o que deviam ser, em cada fase da evolução terrena, e gozam sempre da jurisdição de si mesmos, para que possam, no uso de seu livre-arbítrio, desenvolver a consciência de suas responsabilidades intransferíveis. Os fatos não se desenrolam ao acaso, mas na seqüência orgânica do crescimento, como queria Spencer. Os limites do poder humano não são arbitrários, nem sujeitos a intervenções abruptas do poder divino, mas condicionados pelas leis da evolução social, moral e cultural. O próprio Cristo previra isso e anunciara, como se vê de maneira mais clara no Evangelho de João, a deformação dos seus ensinos e a necessidade do seu restabelecimento do futuro. A promessa do Espírito da Verdade, formulada nos textos evangélicos, na linguagem mística da época, nem por isso deixa de ser incisiva e racional. O Espírito da Verdade não é uma entidade definida, uma criatura humana ou espiritual, mas simplesmente a essência do ensino de Jesus, que se restabeleceria através dos homens que mais rapidamente se aproximassem da sua verdadeira compreensão. "Eu vos enviarei o Espírito da Verdade — disse o Mestre — que restabelecerá todas as coisas, ficará eternamente convosco e vos conduzirá a toda a Verdade". Nessa breve síntese da promessa registrada nos textos vemos nitidamente que a visão do Mestre abrangia todo o panorama das transformações históricas de um longo futuro. Reconhecendo, porém, as condições do processo histórico, não podemos negar a responsabilidade dos homens que nele atuaram desta ou daquela forma, dirigidos não só pelas leis do processo mas também pelas leis de suas próprias consciências. Disto resulta que a responsabilidade individual, acumulada na estrutura da Igreja — construída, mantida e dirigida por homens — determina a responsabilidade institucional da Igreja na deformação quase total do Cristianismo. Isso reconheceu o Papa João XXIII ao assumir a Cátedra de São Pedro, pedindo desculpas ao mundo pelos erros cometidos pela Instituição ao longo de quase dois mil anos. A figura comovente desse Papa
camponês, de boa cepa italiana, que no crepúsculo da existência conseguiu lançar o movimento ecumênico e desencadear as reformas necessárias à adaptação da Igreja aos novos tempos, simboliza a tomada de consciência do poder eclesiástico pelas responsabilidades pesadíssimas que assumiu perante o mundo.
A Mitologia Cristã sofreu o impacto dessas mudanças, das quais resultou até mesmo uma espécie de expurgo no ageológio católico, segundo o modelo dos expurgos políticos da atualidade.
O que expusemos até aqui parece suficiente para mostrar que ainda não atingimos os lindes da Civilização Cristã, de que tanto nos blasonamos. O Cristianismo oficial das Igrejas Cristãs, construído e desenvolvido com elementos estranhos à essência do Cristianismo, muitos deles francamente contraditórios aos princípios evangélicos, não é mais do que uma caricatura do Cristianismo pregado por Jesus de Nazaré. A mais chocante contradição ressalta da transformação da figura humana de Jesus num mito greco-hebraico, com todo o forte colorido da tragédia grega e da crueldade romana, sem faltar as pinceladas do sadismo egípcio (o mito de Osiris) e do masoquismo judeu no quadro da Paixão. Com essa mistura de cores, o painel cristão que herdamos em nossa civilização só teria de resultar no masoquismo eclesiástico dos cilícios, das mortificações, das deformações da personalidade humana, da supressão dos direitos e deveres genéticos dos clérigos e da condenação do sexo, deformado em sua significação divina de fonte renovadora da vida, abastardado pelo conceito de impureza e pecado. A lei bíblica do "crescei e multiplicai-vos" foi revogada pela imposição do celibato forçado e antinatural, que acabou na licenciosidade pagã praticada intramuros, no renascimento inevitável da hipocrisia farisaica veementemente condenada por Jesus. O complexo místico-sexual foi o produto principal dessa deformação da condição humana, que gerou por toda parte os dramas e as tragédias da abstinência forçada, naturalmente revertida em licenciosidade tolerada, como se pode ver com assombro nas investigações históricas independentes sobre o problema sexual no meio eclesiástico.
Essa batalha inglória começou nos tempos apostólicos, como se pode ver pelas epístolas de Paulo, particularmente as dirigidas aos corintios, nas quais o fervor místico do Apóstolo dos Gentios deixou gravada a sua indignação contra a libertinagem na Igreja de Corinto. Era natural que a passagem for-çada da libertinagem pagã para o excessivo puritanismo cristão (já nesse tempo contrário à tolerância de Jesus, compreensiva e humana, para com as mulheres prevaricadoras. Paulo, de temperamento fanático e formação judaica, não obstante revelar a mais ampla compreensão dos ensinos de Jesus, não conseguiu livrar-se do horror judaico ao sexo. A Igreja teve tempo de sobra, a partir desse engano de Paulo, para reexaminar a questão e reformulá-la em termos equilibrados. Mas, ao invés disso, referendou o dogma da castidade para o Ocidente e permitiu, contraditoriamente, o casamento dos clérigos no Oriente. Dois pesos e duas medidas numa questão vital para a Igreja e o mundo.
A proibição autoritária e absoluta provoca sempre a insubordinação, a lei absurda traz em si mesma os germes da infração. O complexo místico-sexual promovido pela Igreja em escala mundial, no plano melindroso das leis biológicas, desencadeou um dos mais obscuros processos de manifestações psicopatológicas, em que o êxtase místico se mistura com o êxtase sensorial, produzindo os mais graves distúrbios com que até hoje se defronta a Medicina, impotente ante a voragem das múltiplas fascinações dos instintos reprimidos. O Cristianismo é hoje acusado de responsável pelo falso puritanismo que dominou as nações cristãs, como no caso da era vitoriana na Inglaterra, e da conseqüente explosão da libertinagem moderna, que tem suas raízes amargas na revolta satânica dos libertinos medievais. A grandeza do Cristianismo naufragou no mar de lama da falsa moral puritana. A moral endógena do Cristo, que brota das fontes naturais da pureza espiritual, transfigurou-se às avessas na moral exógena das exigências institucionais da Igreja, falsamente adotadas pela moral social, numa tentativa hipócrita de nivelamento dos mais diversos graus da evolução moral dos homens._ Essa evolução corresponde A. espiritualização, que é individual, dependendo das condições pessoais de cada um, das tendências temperamentais que se harmonizam com as heranças genéticas. As elevadas aspirações da alma se chocam diferentemente, em cada indivíduo, com as exigências biológicas da espécie. Uns trazem a tendência mística predominante, outros o impulso vital incoercível. Entre esses extremos há numerosas situações intermediárias. O nivelamento, contrário às especificações tipológicas naturais, é simplesmente impossível. Querer inverter essa estrutura psico-biológica através de votos, juramentos, rituais e outras medidas exteriores é provocar conflitos imprevisíveis, que pode levar o indivíduo a desequilíbrios profundos. Jesus jamais condenou alguém a abstinências forçadas ou a cilícios masoquistas. De onde tirou o Cristianismo essas medidas irracionais? Da cabeça nebulosa dos teólogos,, esses doutores do absurdo, imaginários pesquisadores de Deus que chegam agora à conclusão, através da moderna Teologia Radical da Morte de Deus e outras correntes teológicas paralelas, de que Deus morreu e foi enterrado, como queria o louco de Nietsche. A Teologia Natural, que nasce da consciência humana em busca de Deus, é uma atividade filosófica necessária, que Jesus procurou despertar nos homens. Mas a chamada Teologia Positiva, que fabrica doutores providos de sabedoria infusa, não passa de quixotada pretensiosa nascida do fígado de Prometeu, devorado pelos
abutres do Cáucaso do Céu não pode ser roubado por ninguém, porque não é fogo, mas luz difusa que ninguém consegue colher nas mãos em concha ou nas garras ansiosas de poder e prestígio.
A Teologia Cristã nasceu em Êfeso, onde o Apóstolo João bebeu, já na velhice, alguns elementos da Filosofia judaica de Filon de Alexandria. Para desenvolvê-la, Agostinho e Aquino tiveram de abeberar-se em Platão e Aristóteles. Os neo-platônicos, a partir de Plotino, deram também sua contribuição aos teólogos. Desse sincretismo filosófico, na mesma pauta do sincretismo mítico e religioso a que já aludimos, saiu a Doutrina da Igreja. Onde ficou o Cristo? Numa posição intermediária do mito irracional da Trindade, dando origem a toda a Mitologia Cristã. Transformado em parte intrínseca de Deus, Jesus de Nazaré perdeu a sua personalidade própria, ensanduichado entre Deus e o Espírito Santo. O Deus uno de Jesus, o Pai, cuja concepção simples e clara abalou o mundo antigo e revelou a fraternidade universal dos povos e das raças, fragmentou-se em três pessoas, o que vale dizer em três deuses, iniciando a hierarquia da Igreja, que se prolongaria indefinidamente no tempo. Irracional em sua concepção sincrética e em sua estrutura, deformadora em sua visão do Cristo como homem e mito, a Trindade erigiu-se no mais profundo mistério da Teologia Cristã. Não se pode explicá-la. O Cristo revelador tornou-se agnóstico.

J. HERCULANO PIRES
REVISÃO DO
CRISTIANISMO

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