a partir de maio 2011

domingo, 10 de junho de 2012

A DESCOBERTA DO CRISTO>REVISÃO DO CRISTIANISMO


Na Galiléia dos Gentios, sob o domínio romano de Israel, as esperanças judaicas do Messias cumpriram-se de maneira estranha e decepcionante. Nasceu o menino Jesus em Nazaré, na extrema pobreza da casa de um carpinteiro, próximo à Decápolis impura, as dez cidades gregas que maculavam a pureza sagrada da terra que Iavé cedera ao seu povo. Era penoso para os judeus aceitarem esse desígnio do Senhor, que mais uma vez lhes impunha terrível humilhação. José, o carpinteiro, casara-se com uma jovem de família pobre e obscura, com pretensas ligações à linhagem de Davi. Jesus devia nascer em Belém de Judá, a Cidade do Rei cantor, poeta e aventureiro. E devia chamar-se Emmanuel segundo as profecias. Iavé certamente castigava os judeus pela infidelidade do seu povo, que deixara a águia romana pousar no Monte Sião. Toda a heróica tradição de Israel se afogava na traição à aliança divina da raça pura, do povo eleito, com o poder impuro de César.
A decepção dos judeus aumentava ante a desairosa situação social de José, velho e alquebrado artesão, casado com uma jovem que já lhe dera vários filhos. Jesus não gozava sequer das prerrogativas de primogênito. Herodes, o Grande, que se contentara, no ajuste com os romanos, a dominar apenas a Galiléia e além disso construíra o seu palácio sobre a temível impureza das terras de um cemitério, tremeu ante esse novo desafio aos brios da raça e condenou os que aceitavam esse nascimento espúrio como sendo o do Messias de Israel. Era necessário, para sua própria segurança, desfazer esse engano. O menino intruso devia ser sacrificado, e para isso bastava recorrer às alegorias bíblicas e espalhar a lenda da matança dos inocentes. Nos tempos mitológicos em que se encontravam era comum tomar-se a Nuvem por Juno. Mas o menino, que nascera de maneira incomum, filho de família pobre (e por isso suspeita), cresceu revelando inteligência excepcional que provocava a admiração do povo. Submetido à sabatina ritual dos rabinos do Templo de Jerusalém, para receber a bênção da virilidade, assombrara os doutores da Lei com o seu conhecimento precoce. Mas esse brilho fugaz era insuficiente para lhe garantir a fama messiânica. Logo mais ele se mostrava integrado na família humilde à condição inferior e aprendendo com o velho pai a profissão a que se dedicaria. Não obstante, para prevenção de dificuldades futuras, as raposas herodianas incumbiram-se de propalar a lenda da violação da honra conjugal de Maria pelo legionário Pantera. Com esse golpe decisivo, o perigo messiânico ficava definitivamente anulado.
Não seria possível que o povo aceitasse a qualificação messiânica para um bastardo.
Defendido pela humilhação da sua posição social e pelas próprias confusões que teciam a seu respeito, Jesus crescia e se preparava na obscuridade, para o cumprimento da sua missão. Quando se sentiu integrado na cultura hebraica, senhor das escrituras e das tradições da raça, iniciou as suas atividades públicas. Sua própria família então se revoltou contra o perigoso atrevimento daquele jovem delirante. Sua mãe e seus irmãos, como relatam os Evangelhos, tentaram fazê-lo voltar para casa e a oficina rústica do pai. Foi então que seu primo, João, o Batista, que já antecipara o seu trabalho messiânico, preparou-lhe as veredas da sua semeadura revolucionária. Na própria Galiléia, Jesus encontrou os seus primeiros discípulos. Homens humildes, mas cheios de fé, de esperança, dispuse-ram-se a seguí-Io. Era difícil lutar com aqueles voluntários de uma causa cujo alcance não podiam compreender. Mas eram eles os companheiros e servidores com que podia contar. Suas atitudes claras e enérgicas, seus princípios racionais, desprovidos das superstições rituais da tradição, assustavam e muitas vezes aturdiam aquelas almas sedentas de luz e de prodígios messiânicos. Sua popularidade cresceu rapidamente no seio de um povo que sofria com o jugo romano, a infiltração constante e irreprimível dos costumes pagãos nas classes dominantes, sob a complacência covarde de um rabinato embriagado pelos interesses imediatistas. Renasceram então as antigas lendas a seu respeito. Os que o aceitavam, levados pelas aspirações messiânicas, propalavam estórias absurdas sobre a sua infância e adolescência obscuras, com o entusiasmo fanático da ignorância do clima mitológico da época. Os que a ele se opunham, atrelados ao carro dos interesses romanos e dos seus aliados judeus, ressuscitavam as lendas do seu nascimento vergonhoso e das suas relações secretas com Satanás e com ordens ocultistas mágicas, como a dos Essênios, geralmente temidas pelas atrocidades que praticavam em seus redutos indevassáveis.
A figura humana de Jesus de Nazaré, o jovem reformador do Judaismo, que pregava o amor e a fraternidade entre os homens, ia rapidamente se transfigurando num mito contraditório, ora de semblante celeste e atitudes meigas, ora de rosto irado e chicote em punho. Os discípulos procuravam enquadrá-lo nas profecias bíblicas, certos da sua condição messiânica. A mentalidade mítica, profundamente diversa da mentalidade racional que ele encarnava, naquela fase de transição histórica e
cultural, aceitava mais facilmente a profecia como realidade dos próprios fatos reais. O sentido de suas palavras, e até mesmo das expressões alegóricas, de que às vezes se servia, para se fazer mais compreensível, eram entendidas de maneiras diversas, segundo a capacidade de compreensão de certos indivíduos ou grupos. Esse é um processo de deformação bastante comum nos tempos de ignorância e que hoje se repete nos meios e regiões ainda não atingidos pelo progresso. Os fenômenos de fanatismo religioso e misticismo popular, ainda em nossos dias, revelam a mecânica emocional dessas estranhas e não raro bárbaras metamorfoses da interpretação popular de ensinos racionais e de fatos comuns transformados em acontecimentos misteriosos. Por exemplo: quando Jesus se comparava lucidamente ao cordeiro dos sacrifícios rituais no Templo, pois sabia que pagaria com sangue a sua audácia, os ouvintes entendiam que ele afirmava o poder mágico e redentor do seu sangue. Quando o Batista aludia ao símbolo de pureza da pomba branca, que descia sobre os que se batizavam, os ouvintes extasiados tinham a visão mental da pomba pairando sobre a cabeça do Messias. Mais tarde, na elaboração tardia dos textos evangélicos, em tempos e lugares diferentes, com os dados fornecidos pelas logias (anotações de apóstolos e discípulos) ou mesmo de informações orais deturpadas pelo tempo, transfiguradas pelo sentimento de veneração que crescera através dos anos, os elementos míticos se infiltravam no relato, amoldando a realidade distante às condições mitológicas da época.
Assim se forjou, naturalmente, no processo sócio-cultural submetido às condições da evolução histórica, a Nova Mitologia do Cristianismo, em que o próprio mito bíblico do Messias judeu foi coberto pela máscara grega do mito de Cristo. Os discípulos gregos de Jesus, por força da própria predominância da cultura grega sobre a hebraica, deram a Jesus um nome grego que ele jamais tivera, e que passaria a designar no futuro a sua doutrina. A redação dos Evangelhos em grego sancionaria esse processo, que se firmaria definitivamente na elaboração posterior da teologia cristã. A assimilação das doutrinas de Platão, por Santo Agostinho, e de Aristóteles por São Tomás de Aquino, dariam a última demão no edifício grego do Cristianismo. O Evangelho de João, último a ser escrito, adotando de início o mito grego do Verbo, herdado da cultura egípcia, é uma das provas mais flagrantes dessa helenização do Cristianismo.
Os estudos e as pesquisas de tipo universitário, independentes da Igreja, desde Renan a Guignebert, paralelamente com as pesquisas e estudos espíritas, promoveram em nosso tempo, a partir de meados do Século 19, a revisão universal do Cristianismo. Renan e Kardec iniciaram essa revisão na mesma época, na segunda metade do século passado, tendo Kardec uma precedência de dez anos e pouco sobre Renan no trato do assunto. Em "Obras Póstumas", de Kardec, os espíritos avisam este que o livro de Renan o ajudará na difícil tarefa de restabelecer a verdade sobre o Cristianismo.

J. HERCULANO PIRES
REVISÃO DO
CRISTIANISMO

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