a partir de maio 2011

terça-feira, 10 de abril de 2012

LIVRO:O PRIMADO DE KARDEC:Sergio Aleixo 4

Metodologia espírita e cisma rustenista

Capítulo 5: OS CRITÉRIOS KARDECIANOS

Em tudo isto, não fiz senão recolher e coordenar metodicamente o ensino dado pelos espíritos; sem levar em conta opiniões isoladas, adotei as do maior número, afastando todas as ideias sistemáticas, individuais, excêntricas ou em contradição com os dados positivos da Ciência.[1]

Verifica-se que Allan Kardec agia muito racional, gradativa e judiciosamente, sem nenhuma pretensão ao exclusivismo ou à infalibilidade. Recebia comunicações, conforme assegurou, “de cerca de mil centros espíritas sérios, espalhados pelos mais diversos pontos do globo”, razão indiscutível do sucesso de suas obras. Observava e estudava, com a assistência de seus guias espirituais, o movimento geral de comunicação dos espíritos. Chegado o momento de entregar à publicidade o conjunto apurado das revelações, cada grupo espírita, ao ler as obras kardecianas, se lembrava de haver obtido instruções de sentido, senão idêntico, ao menos semelhante.[2]

É esse o objetivo das nossas publicações — dizia Kardec —, que podem ser consideradas como o resultado dessa apuração. Nelas, todas as opiniões são discutidas, mas as questões somente são apresentadas em forma de princípios depois de haverem recebido a consagração de todos os controles que lhes podem dar força de lei e permitir afirmações. Eis por que não preconizamos levianamente nenhuma teoria, e é por isso que a Doutrina, procedendo do ensino geral, não representa o resultado de um sistema preconcebido. É também o que lhe dá a sua força e assegura o seu futuro.[3]

Sobrou a Roustaing o desplante de dizer em sua malfadada Resposta póstuma que o mestre lionês — pasmem — não tinha sequer o endereço dos cerca de mil centros espíritas sérios e que, em sua posição, erigira-se num autoritário senhor, fazedor de sectários, num papa, num chefe de infalível ortodoxia.[4] Como se verifica, Roustaing foi mesmo um traidor, porque não hesitou em rebaixar à condição vulgar de um arrogante mentiroso aquele que tanto exaltou por “muito honradochefe Espírita”.[5] E fez isto para quê? Para insistir na ilusão de que havia superado Kardec pelos ensinos confusos de espíritos enganadores, que se comunicaram num mesmo lugar e por uma única médium — Bordéus, de dezembro de 1861 a maio de 1865.[6]
Desde 1859, em sua obra para iniciantes, o mestre de Lyon preconizava estes critérios para a codificação da Doutrina Espírita ou Espiritismo:

Dois meios podem servir para fixar as ideias sobre as questões duvidosas: o primeiro, é submeter todas as comunicações ao exame severo da razão, do bom-senso e da lógica; é uma recomendação que fazem todos os bons espíritos; abstêm-se de fazê-la os maus, pois sabem não ter senão a perder com esse exame sério, pelo que evitam discussão e querem ser cridos sob palavra. O segundo critério da verdade está na concordância do ensino. Quando o mesmo princípio é ensinado em muitos pontos por diferentes espíritos e médiuns estranhos uns aos outros e isentos de idênticas influências, pode-se concluir que ele está mais próximo da verdade do que aquele que emana de uma só fonte e é contradito pela maioria.[7]

A qual destes dois critérios obedeceu a obra do advogado bordelês para que nela inscrevesse a palavra Espiritismo? A nenhum. Trata-se, pois, de usurpação barata. E ao contrário do que vociferavam Roustaing e seus discípulos, Kardec nunca pretendeu que seus critérios fossem infalíveis. Apenas os julgava investidos de maior segurança, de mais amplas garantias. Entendia que o exclusivismo e o isolamento, na época mesma do império do livre exame, jamais poderiam ser bons conselheiros.
Para Kardec, a coincidência estabelecida sobre um ponto de ensino dos espíritos lhe conferia gravidade, não infalibilidade. É o que se lê no original da parte II da Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo: “[...] la coïncidence seule leur donne de la gravité [...]”. As concordâncias no ensino coletivo dos espíritos contrabalançavam, portanto, as escolhas da razão individual de Kardec e, não se duvide, vice-versa, como resta comprovado em O Livro dos Espíritos, 222:

Não é somente porque veio dos espíritos que nós e tantos outros nos fizemos adeptos da pluralidade das existências. É porque essa doutrina nos pareceu a mais lógica [...] tê-la-íamos repelido, mesmo que provinda dos espíritos,se nos parecera contrária à razão, como repelimos muitas outras, pois sabemos, por experiência, que não se deve aceitar cegamente tudo o que venha deles, da mesma forma que se não deve adotar às cegas tudo o que proceda dos homens. (Grifo meu.)

Era um jogo de confrontos dialógicos que transcorria muito equilibradamente no curso da genial metodologia kardeciana para codificação do Espiritismo. Assim não fosse, e ler hoje as obras de Kardec com tanto proveito seria impensável. As escolhas da sua razão individual sobrepujaram as concordâncias de ensino dos espíritos? Tiveram mais peso no jogo de confrontos? De uma forma ou de outra, no movimento de constante apuração comparativo-analítica do mestre lionês só podia haver méritos. Demais, a razão dialógica de um iluminista nato como Kardec será, a qualquer tempo, mil vezes preferível à mística cambaleante de um passional como Roustaing.

O primeiro controle é, sem contradita, o da razão, ao qual é necessário submeter, sem exceção, tudo o que vem dos espíritos. Toda teoria em contradição manifesta com o bom-senso, com uma lógica rigorosa, com os dados positivos que possuímos, por mais respeitável que seja o nome que a assine, deve ser rejeitada.[8]

Essa coletividade concordante da opinião dos espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade. Para que ela mudasse, fora mister que a universalidade dos espíritos mudasse de opinião e viesse um dia dizer o contrário do que dissera.[9]

E deste modo deveria ser feito, sobretudo, “para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos”, como disse Kardec no seu artigo de análise dos volumes rustenistas, de junho de 1866.
Onde estavam, pois, a pretensão à infalibilidade, o ostracismo, o autoritarismo, a ignorância e a superstição de Kardec? Quem, afinal, aceitou o que disseram certos espíritos pelo simples fato de eles o terem dito?
Sim, porque as tais pesquisas inglesas e alemães que teriam comprovado a tese do corpo fluídico concretizado de Jesus foram realizadas apenas na década seguinte à do lançamento da suposta Revelação da Revelação.
Estas pesquisas, aliás, tão só ratificaram a existência do perispírito e a capacidade de este se tornar tangível, impregnando-se dos elementos oferecidos pelos médiuns de efeitos físicos. Qual a novidade? Mas daí a aplicá-las à pessoa de Jesus...
Por outra, se Kardec recusou argumentos e comunicações espíritas que, antes de Darwin, afirmavam a verdade sobre a descendência do homem, a seleção e a evolução das espécies, ele o fez muito bem. Isto só demonstra seu máximo rigor em não aceitar o que carecesse de base sólida, seu prudente escrúpulo em não acreditar, sobre este ou aquele ponto, apenas na palavra empenhada, seja dos encarnados, seja, com mais forte razão, dos desencarnados.
Os esclarecimentos acerca da evolução do princípio inteligente “numa série de existências que precedem o período a que chamamos humanidade”, realmente, só apareceram na segunda edição de O Livro dos Espíritos, de 18 de março de 1860, número 607. Mas não se afigura razoável que Kardec somente tenha visto efetividade nesta ideia após a publicação, em 1859, de A Origem das Espécies?
Só há méritos nisto! Apenas o misticismo de Roustaing poderia enxergar nesta suposta recusa de Kardec algo depreciativo. Ainda não haviam entendido que a tarefa dos espíritos superiores não é revelar aos encarnados aquilo que só pelo trabalho estes devem alcançar. Dizia o mestre lionês:

Os bons espíritos vêm nos instruir para nossa melhoria e nosso progresso, e não para nos revelar o que não devemos ainda saber, ou aquilo que não devemos aprender senão pelo nosso trabalho. Se bastasse interrogar os espíritos para obter a solução de todas as dificuldades científicas, ou para fazer descobertas ou invenções lucrativas, todo ignorante poderia tornar-se sábio gratuitamente, e todo preguiçoso poderia se enriquecer sem trabalhar; é o que Deus não quer. Os espíritos ajudam o homem de gênio pela inspiração oculta, mas não o isentam do trabalho e da pesquisa, a fim de deixar-lhe o mérito deles.[10]

Ora, as manifestações, e suas inumeráveis modalidades, são fatos; o homem os estuda para lhes encontrar a lei, sendo auxiliado nesse trabalho por espíritos de todas as categorias, que são antes colaboradores que reveladores, no sentido usual da palavra. O homem submete as declarações dos espíritos ao controle da lógica e do bom-senso, dessa maneira ele se beneficia dos conhecimentos especiais que os espíritos devem à posição que ocupam, sem abdicar do uso da própria razão. Um aspecto fundamental a considerar é que, sendo os espíritos apenas as almas dos homens, comunicando-nos com eles não saímos da humanidade.[11]

Os espíritos não vêm para livrar o homem do trabalho, do estudo e das pesquisas; eles não lhe fornecem nenhuma ciência inteiramente pronta, e o que o homem pode descobrir por si mesmo, eles deixam entregue às suas próprias forças. Os espíritas, hoje, sabem disso perfeitamente.[12]



[1] KARDEC. Revista Espírita. Set/1863. Segunda Carta ao Padre Marouzeau.
[2] Cf. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[3] A Gênese. I, 53, nota 1.
[4] Caps. III e IV da Resposta na íntegra, pp. 52 e 62. 1.ª ed., Jorge Damas Martins, jan/2007.
[5] Revista Espírita. Jun/1861. Correspondência.
[6] Cf. Os Quatro Evangelhos. Prefácio. FEB, 5.ª ed., 1971, pp. 64 e 66.
[7] O Que é o Espiritismo, 99.
[8] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[9] A Gênese. Introdução. F.E.B. Guillon Ribeiro.
[10] O Que é o Espiritismo, 50.
[11] A Gênese. I, 57.
[12] A Gênese. I, 60.

Capítulo 6: A LIGA DO ENSINO

No que respeita à Liga do Ensino do Sr. Jean Macé, afirmou Kardec ter guardado silêncio a propósito para “não prejulgar a questão e a cada um deixar a mais inteira liberdade”. Instado a manifestar o motivo de sua “abstenção pessoal”, o mestre asseverou: “[...] não temos razão de o calar; e, desde que desejam conhecê-lo, di-lo-emos francamente”.[1] O objetivo da Liga era “fazer instrução pura e simples, fora de qualquer preocupação de seita e de partido”. Mas Kardec houve por bem concluir: “Associamo-nos de boa vontade à ideia matriz, mas não ao seu modo de execução”.[2]
Após analisar a proposta, o mestre entendeu que a Liga não oferecia “nenhum programa definido, nenhum plano traçado, nenhum objetivo preciso”,[3] e afirmou: “Do vago que reina na economia do projeto, resulta que, subscrevendo-o, ninguém sabe a que nem porque se empenha”.[4]
Apesar do relativo êxito que a Liga, aperfeiçoada pela experiência, alcançou posteriormente, que espírita sério poderia condenar as justas razões da abstenção de Kardec ao início; aliás, confessada pessoal? Que tem um assunto deste jaez a ver com a exatidão do controle do ensino dos espíritos? Este tipo de ironia: “Pode-se ter um criterium universal e não se saber tudo, nem tudo prever”,[5] aplicada assim, de modo totalmente descabido, a assunto temporal, poderia vir de partidários do Espiritismo, leais à nossa Causa e amigos de Kardec?
O que se constata é a total incompatibilidade da “escola” divinatória de Roustaing com o Espiritismo, o erro fragoroso que é propagar-lhe o ensino deturpador, quiçá discriminar-lhe distinção regimental, a exemplo do que ainda ocorre à F.E.B. no parágrafo único do art. 1.º de seu estatuto.[6]



[1] Revista Espírita. Mar/1867. A Liga do Ensino. Edicel.
[2] Revista Espírita. Abr/1867. A Liga do Ensino [2.º Artigo]. Reflexões Sobre as Cartas Precedentes. Edicel.
[3] Revista Espírita. Mar/1867. A Liga do Ensino. Edicel.
[4] Revista Espírita. Abr/1867. A Liga do Ensino [2.º Artigo]. Reflexões Sobre as Cartas Precedentes. Edicel.
[5] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 48.

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