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terça-feira, 10 de abril de 2012

LIVRO:O PRIMADO DE KARDEC:Sergio Aleixo 5

Metodologia espírita e cisma rustenista

Capítulo 7: O RUSTENISMO E A INFALIBILIDADE BÍBLICA

Roustaing e seus discípulos ainda não haviam chegado à Era da Razão, porque se mostraram por demais entusiastas de teorias mirabolantes, vertidas na linguagem prolixa de espíritos enganadores, que só fizeram lançá-los às vagas místicas dos tempos mágicos da antiga Era Mitológica.
Eles julgavam que textos bíblicos, como os versículos da revelação do anjo a Maria e depois a José, por exemplo, “não podem e não devem ser recusados”.[1] E por esta pseudorrazão, para eles, “o que de Maria nasceu se formou por obra do Espírito Santo”; entendiam que a concepção, a gravidez e o parto “não podiam ser e não foram reais”, mas “apenas aparentes”, porque, “se reais tivessem sido, estaríamos em presença de um fato contrário às leis naturais que presidem à geração dos corpos no seio da humanidade terrena”.[2]
Bem se vê a opção do misticismo roustainguista: desumanizar o Cristo, “coisificar” Jesus (“o que” de Maria nasceu). Roustaing e seus discípulos, pois, rejeitaram a ordem natural biológica, criada por Deus e atestada pela Ciência, em favor da infalibilidade das Escrituras, dogma humano. Não surpreende que tenham a concepção delirante de que, até que se verifique a chegada de um certo “Espírito Regenerador”, bem como sua influência sobre o Papa, os médiuns “obterão somente fatos isolados, estranhos à ordem comum dos fatos”.[3]
Ao oposto da racionalidade do Espiritismo, a “escola” de Roustaing acredita que, por estar escrito na Bíblia, um texto possui valor de dogma, abrigando necessariamente um suposto significado espiritual. Seria o caso das palavras bíblicas que dizem não ter Jesus pai, ou mãe, ou mesmo genealogia.[4] Evidentemente, foram escritas numa preocupação com a tese do pecado original. Como subtrair Jesus a uma tal maldição? Negar-lhe a genealogia, a natureza biológica.
Acreditando que se empenhava em autenticar o texto evangélico, Roustaing afirmou que a influência “magneto-espírita” produziu “ilusão completa na mulher virgem e em todos os que testemunharam o fato”, ou seja, que “a concepção, a gravidez, o parto podem ser imitados”.[5] O magnetizador, segundo ele, foi o próprio Jesus, que “se serviu da faculdade mediúnica da Virgem Maria para, fluidicamente, simular nela a gravidez”; e esta ideia absurda foi justificada — pasmem — pela necessidade de o Messias vir ao planeta Terra “respeitando as tradições e os preconceitos da nação judaica”.[6]
Então, diziam Roustaing e seus discípulos que “Jesus Cristo não foi um homem carnal, revestido de um corpo material humano, qual o do homem terreno, sujeito como este à morte; não, ele não morreu efetivamente no Gólgota”.[7]
Ensinavam estas excrescências e depois acusavam Kardec e os espíritas de ser-lhes “indispensável um Jesus sangrento, choroso, gemebundo, andrajoso e ofegante”; invertendo a ordem natural, a “escola” de Roustaing afiançava que “há dois mil anos o populacho e os crentes tudo sacrificam para gozar desse espetáculo fictício e legendário, mas que para um e outros é real”; e decretava que “o Cristo, natureza superior, não podia sofrer segundo o nosso modo de entender material e terra a terra, eis o que, daqui por diante, devemos aceitar como verdade”. [8]
Herdeiros do melhor do Iluminismo, acostumados à análise crítica e ao raciocínio lógico-naturalista de Allan Kardec e de seus elevados Protetores, os espíritas deveriam preferir, segundo os rustenistas, a impostura à verdade; deveriam considerar como realidade histórica a mal-acabada reedição de um simples mito delirante concebido por longínqua seita gnóstica.
Aliás, risível é que se diga no opúsculo rustenista que “a tradição mais bela e generosa é a que nos legaram os grandes missionários da humanidade, sacrificando suas vidas”,[9]pois o rustenismo nega o sacrifício do maior de todos estes missionários ao dizer que Jesus “não morreu efetivamente”; que, neste sentido, tudo não passou de “um espetáculo fictício e legendário”, destinado a entreter “o populacho e os crentes”. Tática semelhante à do ladrão astuto que grita: “Pega ladrão!”.



[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 58.
[2] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 59.
[3] Os Quatro Evangelhos. Vol. III, n. 196. F.E.B., 5.ª ed., 1971, pp. 65-66.
[4] Hebreus 7:3.
[5] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 55.
[6] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 61.
[7] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 59.
[8] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 68.
[9] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 76.


Capítulo 8: JESUS NÃO ERA UM AGÊNERE

Roustaing e seus discípulos se apoderaram de resultados de pesquisas inglesas e alemães, assim como das palavras atribuídas ao apóstolo Paulo em Hebreus 7:3, para ajustá-los à “hipótese espiritualista” do Jesus fluídico.[1] Propagavam a inverdade de que os resultados de tais pesquisas teriam causado a Kardec “fundas decepções se vivera bastante para ver provado por R. Wallace, Hare, Varley, Crookes, Webert, Zöllner, etc., que um Espírito, sem ser um agênere, pode tomar um corpo fluídico, concretizado, tangível, e no qual se observam a circulação do sangue e todas as aparências da vida”.[2]
Em absoluta desfaçatez, diziam que Kardec e “seus adeptos” alimentavam “um santo horror” às manifestações físicas, e que o mestre “pretendia que o corpo de um Espírito não podia ser senão uma aparência fluídica e que a nossa mão nenhuma resistência experimentaria tocando a aparição”.[3]
Não leram, decerto, o item 125 de O Livro dos Médiuns, no qual Kardec afirmou que o fenômeno dos agêneres “é uma variedade de aparições tangíveis”. (Grifo meu.) Logo, pode ser tocada. No seu artigo “Os Agêneres”, publicado na Revista Espírita de fevereiro de 1859, o mestre explicou com clareza meridiana:

Se um Espírito tem o poder de tornar visível e palpável uma parte qualquer de seu corpo etéreo, não há razão para que não o possa fazer com os outros órgãos. [...] Se, para certos espíritos, é limitada a duração da aparência corporal, podemos dizer que, em princípio, ela é variável, podendo persistir mais ou menos tempo; pode produzir-se a qualquer tempo e a toda hora. Um Espírito cujo corpo fosse assim visível e palpável teria, para nós, toda a aparência de um ser humano; poderia conversar conosco e sentar-se em nosso lar qual se fora uma pessoa qualquer, pois o tomaríamos como um de nossos semelhantes. [...] Como, para nos entendermos, precisamos dar um nome para cada coisa, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas os chama agêneres, assim indicando que sua origem não é o resultado de uma geração.

Ante o exposto, o que Roustaing teria querido dizer ao afirmar “que um Espírito, sem ser um agênere, pode tomar um corpo fluídico”? Em quê, afinal de contas, a teoria basilar da sua revelação difere da dos agêneres? Na duração? Mas o Codificador afirmou que, “em princípio”, a duração do fenômeno pode persistir “mais ou menos tempo”. Em sua crítica a esta tese do corpo fluídico tangível de Jesus, Kardec afiançou ainda: “Sem dúvida nada há nisso de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do invólucro perispiritual”.[4]
Demais, em relação a esta nuança exclusivamente fenomênica, bem como no que se refere unicamente à interpretação das máximas morais do Cristo, é que Kardec disse, no princípio de seu artigo (de junho de 1866), não estar a obra de Roustaing, “em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns”. Importa-me ressaltá-lo, porque estas palavras foram e são mais de uma vez deturpadas pela propaganda rustenista, que lhes atribui uma extensão que não possuem. Kardec foi bem explícito:

Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios de O Livro dos Espíritos e de O Livro dos Médiuns. Nossas observações assentam sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos. É assim, por exemplo, que ele dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico. (Grifos meus.)

Apenas quanto “à interpretação de certos fatos” é que a tese de que o corpo de Jesus era fluídico não se afasta dos princípios exarados em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns; afinal, agêneres ocorrem. No que disse, Kardec focalizou, portanto, apenas e tão somente o viés fenomênico. Todavia, a tese rustenista se afasta, sim, e muito, de O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns no que respeita à sua motivação. Segundo ela, “Jesus era demasiadamente puro para vestir a libré do culpado; sua natureza espiritual era incompatível com a encarnação material”.[5]
Assim, o Cristo haveria tomado um corpo fluídico concretizado porque teria sofrido processo diferenciado de evolução. A encarnação humana seria exclusivamente um castigo resultante de uma queda, de verdadeira involução do Espírito. Jesus, pois, não se teria manifestado num corpo fluídico porque assim o quis, mas porque lhe era impossível encarnar num corpo normal, porquanto este se destinaria apenas a espíritos falidos. Logo, no Jesus de Roustaing, o princípio do corpo fluídico justifica-se pelo da degradação de certos espíritos, reedição do mito da queda angélica.
Kardec, por outro lado, deixou clara sua rejeição à tese rustenista por ser inviável moralmente, em função de preconizar um Jesus de aparência, a produzir ilusões aos olhos humanos e que não hesitou sequer em simular a gravidez em sua própria mãe. Em razão disto, desde sua crítica de junho de 1866, o Codificador manifestou-se contrariamente a esta ideia; “em nossa opinião”, disse ele, “em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal”.
Em 1868, no cap. XV, n. 66, de seu último livro, o mestre estabeleceu a posição espírita sobre o corpo de Jesus. E não estava mais apoiado apenas em sua opinião, e sim na “sanção do controle universal”. Já havia “recolhido documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar de acordo com a maioria”, como prometera no artigo de análise dos volumes rustenistas, quase dois anos antes.
Em sua crítica de junho de 1866, o Codificador dissera que iria esperar os “numerosos comentários” que a tese de Os Quatro Evangelhos não deixaria de “provocar da parte dos espíritos”. Como à época o movimento espírita não era paroquiano e não havia censura acerca de assuntos polêmicos, os “numerosos comentários da parte dos espíritos” hão de ter ocorrido sem muita demora e as “objeções sérias” que, segundo Kardec, já em 1866, tinham sido feitas à tese roustainguista foram, por certo, confirmadas. Roustaing mesmo nos leva a este entendimento, por meio de sua ironia sarcástica, mas patética, contida nesta declaração estapafúrdia:

Na França, em geral, pouco se lê. Os espíritas, habituados, na sua maioria, a aceitar tudo, disseram: O chefe, o mestre certamente aplicou a sua contraprova universal aos três volumes de J.-B. Roustaing; não podemos, por conseguinte, comprar nem ler uma obra inútil.[6]

Possível também é inferir-se disto que até aqueles dissidentes declarados não duvidaram de que Kardec houvesse aplicado seu criterium à pretensa Revelação da Revelação; tanto que a crítica, por um breve momento, só incidiu sobre a sua suposta “carência de exatidão”; disseram que o emprego que Kardec fazia de seu método era “prudente e judicioso”, embora não fosse o mestre por ele “esclarecido de um modo seguro”.[7] Oras! Acaso J.-B. Roustaing obteve suaRevelação de forma mais confiável, ao acatar o que por uma única médium foi transmitido? Aliás, não se há procedido deste jeito absolutamente temerário? Presentemente, não se aceita tudo com base apenas na “alta” confiabilidade de alguns poucos médiuns?
Nas páginas que foram suprimidas, do prefácio de Os Quatro Evangelhos de 1920, se encontra, pois, a prova de que a universalidade do ensino dos espíritos repeliu, sim, logo em seu nascedouro, as teses rustenistas. É o que se pretende negar hoje mediante o fabrico mal-acabado de uma pseudouniversalidade para estes conceitos, na qual uma quantidade ínfima de médiuns, que se encontram sob idêntica influência institucional, recebe confirmações às fantasias rustenistas.
Em A Gênese, XV, 66, não se trata mais, portanto, da opinião do Codificador sobre a natureza do corpo de Jesus, mas da concordância universal do ensino dos espíritos a rejeitá-la em sua versão fluídica; donde o mestre estabelecer inapelavelmente sobre este sistema neodocetista:

[...] tudo, até ao último brado, no momento de entregar o seu espírito, não teria passado de um vão simulacro, para enganar quanto à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, numa comédia indigna de um simples homem honesto, e com mais forte razão de um ser tão superior. Numa palavra: Jesus teria abusado da boa-fé dos seus contemporâneos e da posteridade. Essas são as consequências lógicas dessa teoria, consequências que não são admissíveis, porque o rebaixariam moralmente, em lugar de o elevarem. Assim, Jesus teve, como todos nós, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é comprovado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que assinalaram a sua existência.



[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 61.
[2] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, pp. 48 e 49.
[3] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 48.
[4] Cf. Revista Espírita. Jun/1866. Os Evangelhos Explicados.
[5] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 14.
[6] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
[7] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47. Cf. Cap. 5: Os Critérios Kardecianos

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