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domingo, 22 de novembro de 2020

Alma imortal. Sergio F. Aleixo

 Disse um físico que adoraria ter alma e, quando seu corpo pifasse, renascer em outro; que histórias de espiritismo, vida após a morte e as várias versões das religiões seriam apenas mecanismos que criamos para lidar com nosso problema fundamental: a mortalidade. Seus amigos espíritas lembraram-lhe que a maneira científica de pensar o mundo é só uma entre tantas. Ele objetou que usar a ciência para justificar a existência, ou não, da alma, nunca dará certo. E assegurou que se sabe, agora, não haver alma; o cérebro é que seria, segundo ele, um organismo ao extremo complexo. Com fundamento em quê, afinal, poder-se-ia dizer que se sabe, hoje, realmente não haver alma? Numa ciência que sequer provou o materialismo? Tudo é energia. O físico não tinha declarado, por outra, que usar a ciência para justificar a existência, ou não, da alma, nunca daria certo? Não estaria usando essa ciência, ou o que aprendeu nela, ou, pelo menos, a posição de que desfruta perante a mesma, para conferir preferência à complexidade cerebral e negar a alma, essa arte, pois, que criaríamos para lidar com nossa mortalidade? 


A ciência é a ciência de um estado de consciência, oficializada pelos que convergem num consenso mais amplo sobre algo; mas, nesse caso, conforme Kardec, fora de competência. Para além desse consenso, já afirmaram, certos cientistas, existir uma alma em nós. 1930. Universidade de Duke. Estados Unidos da América. O lendário prof. Rhyne sustentou que o cérebro não explicaria a mente e que esta não seria física, embora pudesse agir, segundo ele, no mundo físico por vias não físicas. A supervivência após a morte foi defendida em Cambridge, Oxford e Londres, por Carington, Price, Soal e, na própria Duke, pelos Rhyne e por Pratt. 

Antes disso, Bozzano estabeleceu a interessante tese de que a crença na sobrevivência à morte não teria surgido do pensamento abstrato, sim da experiência vital com fenômenos supranormais. À medida que ordenava imagens refletidas em espelhos d’água, sombras, ecos, etc., a razão humana teria preenchido categorias prévias com repercussões supervenientes dessas experiências, muitas delas, objetivas, sensoriais, de efeitos físicos.[1] Bozzano declarou, por fim, constituírem os fenômenos supranormais admirável complexo de provas anímicas e espiríticas, todas convergentes para um centro favorável à demonstração “científica” da existência e sobrevivência do espírito.[2]

Fazia cerca de sessenta anos, o descobridor do tálio, inventor do radiômetro e do tubo de raios catódicos, sir Crookes, inferira a existência da matéria radiante em meio a investigações de faculdades mediúnicas da srta. Cook — experimentos com aparições tangíveis de um espírito, por mais de três anos, no lar do próprio cientista britânico.[3] Para Denis,[4] teria advindo desse fato espírita toda uma série de descobertas, uma revolução na físico-química. Crookes afirmou que fora absolutamente verdadeira a conexão estabelecida entre este mundo e o outro.[5]

Outros atingiram tal convicção, independentemente das corporações oficiais de que eram membros, como o naturalista inglês Wallace, coautor da teoria de evolução e seleção das espécies, que publicou O Aspecto Científico do Sobrenatural;[6] o astrônomo alemão Zöllner, que editou Provas Científicas da Sobrevivência,[7] e o criminalista italiano Lombroso, que escreveu Hipnotismo e Mediunidade.[8] 

Igualmente o descobridor do agente da raiva e do pênfigo agudo, diretor do Instituto Bacteriológico de Nova York, dr. Gibier, depois de observar pelo menos quinhentas vezes a escrita direta dos espíritos, fez publicar Análise das Coisas.[9] Não satisfeito, ao IV Congresso Internacional de Psicologia,[10] dirigiu detalhado relato de suas repetidas experiências espíritas: As Materializações de Fantasmas, a Penetrabilidade da Matéria e Outros Fenômenos Psíquicos. 

Já na segunda metade do século 20, o ilmo. prof. dr. Sabom, cardiologista, relacionou 116 casos de estranhas vivências de seus pacientes entre 1976/81. Os insólitos teriam evidenciado uma dissociação entre cérebro e espírito.[11] Corroboram-no as casuísticas dos ph.d. Moody Jr., Ring, Ritchia, Kübler-Ross, Morse, etc. Após anestesia geral, coma e até morte clínica, muitos afirmavam haver estado fora do seu próprio corpo, testemunhando, no ínterim, o que sucedia nas salas em que estavam ou mesmo para além desses lugares; não raro, conversavam com defuntos acerca do presente, do passado e... do futuro. As EQM, experiências de quase morte, ou de morte aproximada, seriam estados especiais dos órgãos e evidenciariam algo mais que o corpo; o organismo não funciona, ou mal funciona; porém o espírito se mostraria ativo.[12]

Da psicologia analítica, o dr. Jung não acreditava ser possível a morte da mente. Esta não conheceria passado, presente ou futuro; segundo ele, se a mente prevê o devir, estaria acima do tempo e, assim, não se poderia limitar a um corpo. Para o dr. Jung, a plenitude da vida exigiria algo mais que um ser; necessitaria do espírito, espécie de complexo independente e superior, que seria o único capaz de chamar à vida as possibilidades psíquicas que a consciência — ego — jamais alcançaria por si.[13]

E atestam o quê, tão vastos acervos de regressões de memória, senão essas possibilidades? Centenas de casos documentados por Banerjee, Stevenson, Drouot, Weiss, etc., mereceriam só conspirações de silêncio? Weiss foi contundente afirmando que, talvez, o mais importante não seja a cessação de sintomas físicos e emocionais, sim o conhecimento de que não findamos com o corpo.[14] Drouot escreveu que a exploração de vidas anteriores não é apenas psicológica, mas espiritual.[15]

Nos congressos espíritas de 1889 e 1900 é que se falou pela vez primeira da regressão de memória a outras vidas; trabalhos apresentados pelo sr. Colavida, do grupo de estudos psíquicos de Barcelona, e pelo sr. Marata, da união espírita de Catalunha, conforme Denis e Delanne.[16] Sobre tais regressões, verificadas, contudo, num espírito, existiam dois artigos no jornal de estudos psicológicos de Allan Kardec, a Revista Espírita (1858/69):[17] “repertório mais completo do espiritismo em seu tríplice aspecto: histórico, dogmático e crítico”.[18]

O Livro dos Espíritos assinalou que viria um tempo em que disporíamos de meios mais diretos e acessíveis aos sentidos nas comunicações com o além-túmulo.[19] Era a profecia das TCI? Como quer que haja sido, contatos desafiadores estão disponíveis a toda análise. 

Verifica-se que muito do que se diz parte dos que tudo ignoram acerca dos fatos espíritas, sejam anímicos, sejam mediúnicos.[20] Ante uma tão vasta documentação, dentro e fora das universidades e por todo o mundo, os mais sensatos podem hesitar talvez, mas não resolver pela negação pura e simples. 

O pensamento kardeciano rompe com o reducionismo de um dado modelo de ciência, não com seu escopo: o conhecimento exato da realidade. Muito por força do discurso positivista de persuasão, Kardec insistia na cientificidade do espiritismo. Mais exato que se veja na base prático-filosófica de sua formulação doutrinária a tentativa mais ambiciosa de uma aliança entre a ciência e a religião, visando pulverizar a dicotomia entre razão e fé. 

A doutrina dos espíritos sistematizada por Kardec em tão acurados escrutínios tem na mais alta consideração quanto, fora de si, resulte científico e é também nesses termos que pensa o mundo; todavia forçosa necessidade lógica e prática faz que lhes adicione o que vem de seu próprio estudo do princípio espiritual. 

Kardec constatou vários fenômenos in loco: tiptologia (comunicação dos espíritos por batidas); sematologia (por letras e/ou sinais); psicografia mediata ou indireta (lápis adaptado a cestas e pranchetas); psicografia imediata ou direta (lápis retido na mão do médium); vidência (possivelmente aferida na companhia doutro sensitivo);[21] cura por passes magnéticos (desenganado, o próprio mestre, de um mal que lhe acometia as vistas),[22] etc. 

Na casa da família Baudin, Kardec chegou a formular perguntas aos espíritos em vários idiomas desconhecidos dos jovens médiuns; algumas até sem palavras, e ainda assim respostas nasciam poliglotas, profundas e lógicas por debaixo da cesta sobre os bordos da qual as meninas impunham suas mãos adolescentes. Desse modo foi capturada boa parte d’O Livro dos Espíritos, mais que fundamental, obra-fundamento da doutrina espírita.[23]

Quanto à psicografia imediata, Kardec se reporta, instigante, à mudança radical das caligrafias de acordo com a identidade dos espíritos, que conservavam a mesma escrita quando voltavam a se manifestar, ainda que de modo alternado, ao ponto de se verificar flagrante semelhança de certas escritas mediúnicas com a correspondente caligrafia de algumas pessoas quando vivas, obtidas assinaturas de exatidão perfeita, sobretudo de mortos havia pouco tempo.[24]

Esse tipo de fenômeno, aliás, foi constatado no Brasil. Chico Xavier, em 22/07/78, psicografou carta da sra. Ilda Mascaro Saullo, italiana falecida em Roma a 20/12/77. Como já ressaltara Kardec, pessoa morta recentemente. Porém, havia um complicador: no italiano. Titular de identificação datiloscópica e grafotécnica da Universidade Estadual de Londrina, o prof. Perandréa atestou que a escrita mediúnica, em número e qualidade, possuía consideráveis e irrefutáveis características de gênese gráfica suficientes para revelação e identificação da defunta como autora da mensagem.[25]

Disse-o Léon Denis que, se alguém possui alguma experiência dos fenômenos psíquicos, fica pasmado ante a penúria de raciocínio dos críticos científicos do espiritismo; que escolhem, na multidão dos fatos, sempre alguns casos que se aproximem de suas teorias, silenciando sobre os que as contradigam. Denis pergunta se esse, afinal, seria um procedimento digno de verdadeiros sábios.[26]

Kardec asseverou que a ciência era incompetente para se pronunciar sobre o espiritismo. Defendeu que o método experimental, no entanto, podia ser aplicado à metafísica e que, sem a ciência, faltaria ao espiritismo comprovação.[27] Quis dizer que não podia o espiritismo abdicar de sua parte prática, porque a ciência, sem ele, estaria impotente para explicar o que lhe exorbitaria da alçada. Kardec propôs, desse modo, um regime de complementação entre um e outra. Mas a ciência não se há suposto necessitada de nada que seu projeto exclua. O físico S. Hawking decretou, por isso, o fim da filosofia e adotou o cientismo. Para ele, Deus não é necessário à criação. Nem, por efeito, o espírito, ao corpo. 

Os espíritas, porém, não dependem do parecer da ciência para crer no espírito e em Deus; o que não significa que a desprezem ou a entendam, hoje, necessariamente equivocada quanto ao espiritismo, porquanto ela, na verdade, só está sendo coerente com seu projeto particular. Seguem, os espíritas, com suas práticas, e surpreendidos, vez por outra, com provas de identidade dos espíritos. Como disse o mestre, cada um pode chegar a essa convicção individualmente.[28] Que parte toma nisso a ciência? 


[1] Povos Primitivos e Manifestações Supranormais. [1925.] 

[2] International Psychic Gazette, mai/1930. 

[3] Fatos Espíritas. 

[4] O Além e a Sobrevivência do Ser. 

[5] International psychic gazette, 1917. 

[6] 1866. 

[7] 1878. 

[8] 1909. 

[9] 1890. 

[10] Paris, 1900. 

[11] Recollection of Death. 

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 422-a. 

[13] SANTOS, Jorge Andréa dos. Palingênese, a Grande Lei. Reencarnação. Cap. V. pp. 129/30. 

[14] A Cura Através da Terapia de Vidas Passadas. [1996.] 

[15] Reencarnação e Imortalidade. [1989.] 

[16] O Problema do Ser, XIV; A Reencarnação, VII. 

[17] Revista Espírita. Jun/1866: Visão retrospectiva das várias encarnações de um espírito. Sono dos espíritos. Jul/1866: Visão retrospectiva das existências do espírito. A propósito do dr. Cailleaux. 

[18] KARDEC, Allan. Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas. Introdução. 

[19] O Livro dos Espíritos, 934. 

[20] KARDEC, Allan. A Gênese, XIII: 9. [Paris, 1868.] 

[21] Cf. item 18.2 deste trabalho. 

[22] Afirma Kardec haver ficado quase cego por volta do ano de 1852. Não lia, não escrevia nem ao menos reconhecia quem lhe desse a mão. Após consultas com os maiores especialistas, foi declarado que sofria de amaurose e que devia resignar-se. Uma sonâmbula é que lhe disse não ser amaurose, mas apoplexia que poderia resultar em amaurose. Tratou-o garantindo-lhe que em quinze dias experimentaria discreta melhora; em um mês, começaria a ver novamente e, em dois ou três meses, estaria curado. E assim lhe sobreveio, diz o mestre. (Cf. Revista Espírita. Ago/1862. Conferências do Sr. Trousseau.) 

[23] 1857, a primeira edição. 1860, a definitiva, uma “nova obra” no dizer de Kardec. 

[24] O Livro dos Espíritos. Introdução: XII. 

[25] A Psicografia à Luz da Grafoscopia. [1991.] 

[26] No Invisível. Prefácio. [1911.] 

[27] O Livro dos Espíritos. Introdução: VII. A Gênese. I:14. 

[28] O Livro dos Espíritos. Introdução: VII.

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