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quinta-feira, 8 de maio de 2014

Lúcifer, Prometeu e Trismegisto

Escreve: Eugenio Lara
Em: Outubro de 2013


Toda forma de desobediência é, sobretudo, um ato de liberdade, expressão do livre-arbítrio, derivativo da volição. É a capacidade de dizer não. É a coragem, a postura firme de quem está plenamente convicto de que é preciso exclamar: “basta!”, “chega!”. Isto se dá em todos os níveis da vivência humana, faz parte da vida e está presente tanto nas relações interpessoais, intersociais, como nas relações interexistenciais.

A origem da civilização, no dizer de Erich Fromm (1900-1980), surgiu de um ato de desobediência: “a história humana começou com um ato de desobediência, e não é improvável que termine por um ato de obediência” (“Sobre a desobediência e outros ensaios”). Não que o grande psicanalista alemão, radicado nos EUA, fosse partidário da teologia cristã. Sua assertiva tem um sentido simbólico, metafórico.

É que todo o esquema divino foi desmontado com o ato desobediente de Lúcifer, o mais belo dos anjos. É provável que o primeiro anjo criado por Deus, depois do fiat lux, tenha sido Lúcifer. Insatisfeito com o conhecimento restrito às hostes celestiais, o futuro Senhor das Trevas desejava ardentemente que Deus o compartilhasse com os seres humanos.

Segundo a mitologia judaico-cristã, Lúcifer (“o portador da luz”, do hebraico) era o formoso e poderoso querubim ungido por Deus, expulso do Paraíso pelo arcanjo Miguel e os anjos do Senhor, por tê-lo desobedecido e desafiado: “Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti”. (Ezequiel 28:17).

No Apocalipse (12:7 a 9), há a seguinte referência à expulsão divina: “E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão; e batalhavam o dragão e os seus anjos, mas não prevaleceram; nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele”.

Assim como Prometeu, na mitologia grega e Hermes Trismegisto, na mitologia egípcia, Lúcifer compartilha com a Humanidade a sabedoria, o conhecimento, tirando os seres humanos de sua ignorância primordial.

Na mitologia grega, Prometeu é o audacioso titã que roubou o fogo dos céus para os homens, símbolo da ciência e da sabedoria divinas. Punido por Zeus pela sua desobediência, foi condenado a ficar acorrentado em uma rocha no Cáucaso, onde diariamente um abutre devorava seu fígado, que se refazia e, no dia seguinte, o suplício prosseguia. Quem o libertou dessa penitência eterna foi o semideus Hércules (ou Héracles). O dramaturgo Ésquilo, pai da tragédia grega, escreveu uma peça teatral sobre o mito de Prometeu.

O titã Prometeu ofertou o fogo aos homens e Hermes, nome grego de Thoth, deus egípcio da escrita e da magia, escreveu nas famosas tábuas de esmeralda o ensinamento originário da alquimia ocidental, disponibilizando para a Humanidade o que estava oculto: “O que está embaixo, é como o que está no alto”, nos versos adaptados do músico e compositor brasileiro Jorge Ben, em seu entusiasmo com a doutrina hermética. Inspirado pelo hermetismo, o sambista brasileiro Jorge Ben lançou, em 1974, o álbum conceitual “A Tábua de Esmeralda”, em homenagem a Hermes Trismegisto.

Não é por acaso que Prometeu é bastante citado por Proudhon e Karl Marx, como modelo primordial do homem. Para Karl Marx, o mito grego de Prometeu é o símbolo do humanismo marxista, da classe oprimida. É o homem-modelo, seu herói predileto. Quando sua filha lhe perguntou qual era seu modelo pessoal, Marx respondeu: Prometeu! (Ver o capítulo “Karl Marx: Prometeu e Lúcifer” em “Rumo à Estação Finlândia”, de Edmund Wilson, trad. Paulo Henrique Britto, 1ª ed. Companhia das Letras, São Paulo-SP - 1986).

Para o anarquista Proudhon, “Prometeu, segundo a fábula, é o símbolo da atividade humana. Prometeu furta o fogo do céu e inventa as primeiras artes; Prometeu prevê o futuro e quer igualar-se a Júpiter; Prometeu é Deus. Denominemos, portanto, a sociedade de Prometeu.” (PROUDHON, Pierre-Joseph – “A filosofia da miséria - Sistema das contradições econômicas”, Tomo I, trad. J.C. Morel, Icone Editora, p.147 - São Paulo-SP - 2003).

A Humanidade agradece. Se não fosse a desobediência de Lúcifer, se não fossem Prometeu e Trismegisto, Adão e Eva ainda estariam no Paraíso, como parte do cenário paradisíaco, elementos básicos da cenografia divina, ambos criados à imagem e semelhança de Deus. Pode-se dizer que Lúcifer foi o primeiro humanista da história da Humanidade, muito bem acompanhado por Hermes e Prometeu.

Obviamente que isto tudo é uma tremenda de uma metáfora vivencial. Trata-se de um mito. E o mito, para quem o compreende e vivencia, é uma narrativa verdadeira, é a pura realidade.

Allan Kardec tentou dar uma interpretação mais filosófica desse mito, a partir das informações dos espíritos. Porém, ficou no meio do caminho, não por incompetência sua ou algum tipo de negligência filosófica, mas sim porque a origem das coisas ainda é um campo minado, indevassável, impenetrável.

Normalmente, quem tenta avançar neste quesito, se dá mal, como na interpretação da queda de Lúcifer e seus anjos, tese adotada como fundamento da teologia cristã e, de forma análoga, de algumas doutrinas monistas, como a do filósofo espiritualista italiano Pietro Ubaldi. É só conferir sua obra “O Sistema – Gênese e Estrutura do Universo”, (trad. Carlos Torres Pastorino, 2ª ed. Fundapu - Rio de Janeiro-RJ - 1984), onde Ubaldi formula a sua tese monista sobre a origem das coisas e a queda do espírito, espécie de contração evolutiva, de involução espiritual, teoria radicalmente contrária à tese kardecista da evolução contínua, que não admite a involução do ser espiritual.

Para nós, kardecistas, a Inteligência Suprema expressa, mediante suas leis (isso de modo poético, é claro), a sua vontade. E, pela sua vontade, o ser foi criado simples e ignorante. Ignorante, do ponto de vista intelectual e simples, do ponto de vista moral.

O princípio inteligente, na primordial condição hominal, é uma “tábula rasa”, no dizer de John Locke. Em seu mais famoso livro, “Ensaio acerca do entendimento humano” (1690), o filósofo inglês John Locke defende a ideia de que o ser humano é uma tábula rasa (expressão latina que significa "tábua raspada" ou papel em branco), porque nasce sem nenhum tipo de conhecimento ou informação.

Por sua vez, para o Espiritismo, o princípio inteligente, em sua condição hominal, é tábula rasa em relação à cultura, mas quanto ao seu passado reencarnatório, nos planos anteriores da evolução, ele traz consigo uma bagagem existencial, instintiva, agregada e adquirida intuitivamente nos vários níveis evolutivos. O princípio inteligente carrega consigo sua experiência agregada, na intimidade de sua consciência, nos vários estágios de seu processo evolutivo, contraditório, permanente, contínuo.

Pois, ainda sim, na primeira encarnação como espírito em corpos humanos a inocente criatura, recém-chegada à humanidade, sofre o assédio externo, tanto de espíritos bons, preocupados com seu bem-estar, como de espíritos maus, empenhados em sua derrocada intelecto-moral.

Em meio a tanto mito, tanta elucubração acerca da origem das coisas, o que fica é a capacidade de decidir, de dizer não. Ou sim.

Nessa Caixa de Pandora, o que sobra lá no fundo do baú não é a esperança, mas o livre-arbítrio, a volição, sem a qual todos seríamos meros replicantes, robozinhos teleguiados, marionetes de um Deus que, de vez em quando “joga dados”, “brincando” assim com nosso destino.


Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, é fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e articulista dos jornais Opinião (Porto Alegre-RS) e Abertura (Santos-SP). É autor do livro Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita e dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade (ensaio biográfico); Conceito Espírita de Evolução e Os Quatro Espíritos de Kardec. E-mail: eugenlara@hotmail.com

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