(Recebido em 10 Abril de 2013, publicado em 15 de Maio 2013)
RESUMO
Argumenta-se que a ciência espírita deve ser compreendida dentro de noções modernas de ciência, com abandono completo de ideias indutivistas (que pregam a ciência começa com uma observação) ou de método infalível de geração de conhecimento científico. Expõe-se uma discussão sobre o objeto da ciência espírita, que não deve ser confundido com o objeto das ciências comuns e do escopo dessa nova ciência. Usando conceitos mais recentes sobre a importância dos paradigmas e teorias no desenvolvimento científico, argumenta-se que apenas quando os princípios espíritas forem aceitos em sua totalidade é que desenvolvimento dessa nova ciência poderá ser plenamente facultado. Um exemplo é dado de desenvolvimento em ciência espírita. Discute-se o objeto, o escopo e os obstáculos ao desenvolvimento da ciência.
Palavras-Chave
: ciência espírita, epistemologia da ciência, paradigmas, mediunidade, teorias epistemológicas.
I - INTRODUÇÃO
Segundo Kardec, "o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal" (Kardec, 2008). Essa colocação identifica como objeto dessa nova ciência o Espírito, entendido com "uma das forças da Natureza", questão #87 de (Kardec, 1994) e que pode ser analisado empiricamente por meio dos efeitos de sua atuação no chamado "mundo corporal" ou "universo material". Nessa definição simples e concisa de ciência espírita (Chibeni, 1991, 1988a,b), a existência do espírito como elemento organizador é admitida como princípio, embora a inexistência de evidências diretas desse novo elemento, por causa de sua natureza essencialmente diferente da natureza material. Essa enorme "diferença de densidade" e "independência causal" entre o espírito e as coisas do mundo material são a razão porque Kardec afirmou que "a ciência propriamente dita é incompetente para se pronunciar a respeito de questões do Espiritismo" (ver Introdução, Parte VII de Kardec (1994)). Ao afirmar isso, Kardec estava várias décadas à frente das concepções epistêmicas de seus contemporâneos (Chibeni, 1988a, b) que se agarravam a noções meramente indutivistas da ciência e que acreditavam que qualquer fenômeno observado poderia ser reduzido a interações mecânicas entre átomos ou princípios materiais elementares. Portanto, só tem sentido falar em ciência espírita se as direções preliminares dadas por Kardec forem seguidas, o que implica em ter consciência da natureza peculiar do novo objeto de estudo proposto, para o qual metodologias importadas diretamente das ciências ordinárias jamais levariam ao progresso científico sobre tais questões.
Neste texto, nosso objetivo é esclarecer detalhes sobre o novo método de pesquisa proposto por Kardec, a fim de que o conhecimento espírita possa ser usado de forma eficiente na busca de novos fenômenos da Natureza, promovendo, assim, o progresso de conhecimento e não a sua estagnação. Para isso, é importante ressaltar que o Espiritismo dispõe de um conjunto de princípios avançados que podem ser utilizados na explicação de grande quantidade de fenômenos ainda considerados anômalos. Para adquirir essa competência é necessário seriamente assumir a teoria kardequiana, como é praxe no desenvolvimento de qualquer ciência, e não considerá-la como "mera hipótese" ou pior, distanciar-se dela, a partir de um processo autorreferente de "revisão". "Começar de novo" ou "rever" os princípios espíritas é equivalente a "andar de marcha ré" na pesquisa científica dos fenômenos espíritas e essa conclusão vale para qualquer tipo de conhecimento científico heuristicamente fértil.
II - DEFINIÇÕES DE CIÊNCIA: O PAPEL DAS TEORIAS E O MITO DO “MÉTODO CIENTÍFICO”
A ciência conhecida modernamente [
1] é uma construção social e epistêmica complexa para a qual poucas conclusões pretensamente absolutas podem ser sustentadas com êxito. Há um grande debate entre acadêmicos sobre a natureza e fundamentação da ciência, debate que ainda avança e cujos ecos passados no caso das ciências naturais podem ser conhecidos ao se analisar com rigor a grande quantidade de trabalhos em epistemologia de filósofos como Karl Popper (Popper, 2002), Imre Lakatos (Worrall & Currie, 1989), Thomas Kuhn (Kuhn, 1970) e muitos outros (Losee, 1993; Chalmers, 1999). No que segue, trataremos de forma resumida algumas conclusões desse debate que foi antevisto por Kardec na época da codificação.
Uma das motivações para trabalhos em epistemologia da Ciência sempre foi a ideia de que seria possível dispor de um método infalível a partir do qual conhecimento objetivo, genuíno e verdadeiro seria extraído da Natureza. Esse é o “método científico”, sobre o qual muito se fala nos meios populares e laicos (
Pinto, 2012), que acreditam que a experiência é a origem e até mesmo o objeto do conhecimento científico (Haak, 2012). Essa concepção popular também descreve o trabalho científico com supostamente “objetivo e metódico”, apenas se identificado com aquilo que poderia ser observável e isento de qualquer interferência em sua gênese. Tal “concepção indutivista”, ver Capítulo 4 em (Chalmers, 1999), está ligada a ideias arcaicas da ciência, quando seu objeto de estudo se limitava a coisas apreendidas pela observação direta dos sentidos. Assim, muitas vezes, essa “objetividade” é confundida com “evidência direta” ou “evidência dos sentidos”, ver Capítulo 1 de (Chalmers, 1999). Além disso, hoje é consenso entre especialistas que é difícil defender a existência de um método científico, e que nem se consiga eliminar do labor científico a influência de fatores subjetivos como preferências pessoais, gostos, culturas e até mesmo inclinações religiosas (Chalmers, 1999). Tais conclusões nascem de uma análise rigorosa de fatos históricos e da postura dos cientistas ao longo da história.
Por outro lado, é fato que tais influências não são obstáculo para a produção de conhecimento científico. Pode-se argumentar o contrário, que é justamente pela influência de fatores considerados “irracionais” (experiência de vida, interpretações pessoais, tradição científica, memórias, etc., ver (
Tatón, 1957) que os responsáveis por gerar o conhecimento científico conseguem um necessário nível de criatividade para garantir o pleno desenvolvimento da Ciência. Afinal, a Ciência é construída por cientistas que são, eles mesmos, seres sociais em constante interação e modificação com o tempo. Propostas de explicações radicais e em total confronto com as concepções estabelecidas sempre estiveram presente nas revoluções científicas.
Hoje, há também consenso entre especialistas da área de que a ciência não começa com um experimento, mas com uma teoria [
2] (Chalmers, 1999; Kuhn, 1970). São as teorias que orientam explicitamente as propostas experimentais que permitem que se projetem equipamentos para observação indireta de fenômenos (sem os quais não haveria a observação) e que determinam o limite das próprias observações. Quando fatos novos são observados, é necessário que uma teoria apareça para orientar a pesquisa de forma satisfatória. Como e porque meios essa teoria aparecerá é algo que não pode ser enquadrado em nenhum discurso metodológico, pois não há um método de se “gerar” teorias. Porém, falta da teoria é razão suficiente para condenar um novo objeto ao esquecimento ou à sua marginalização [3]. Na falta de uma teoria, qualquer resultado experimental mal feito poderá ser interpretado de forma incorreta. Por isso, é incorreto sustentar que o experimento é base do conhecimento científico, mas que o alvo da ciência é o estudo de um objeto através de teorias que devem obedecer a um conjunto de características, a adequações empírica sendo apenas uma delas. Essa “adequação empírica”, porém, depende do objeto em apreço, variando de objeto a objeto. Um exemplo simples seria defender a adequação empírica para a existência de átomos que não está sujeito, por exemplo, as mesmas regras com que observamos fenômenos na superfície de outros planetas.
A diversidade e variedade de objetos de estudo na Natureza é tão grande que é impossível generalizar quanto ao grau com que se fará tal “adequação”. Assim, por exemplo, enquanto inexistem quaisquer evidências empíricas sobre vida em outros planetas, a comunidade científica crê na existência dessa vida e está seriamente empenhada em desenvolver teorias e métodos experimentais [
4] para sua investigação (Kitchin, 2012). Seria estranho que apenas quando essa vida fosse efetivamente observada é que essa comunidade se interessasse em abrir uma nova linha investigativa, mas essa é a conclusão natural da ideia popular de que a ciência começa com a observação de um fato (relacionada por exigência de um equivocado conceito de “objetividade”) ou das vozes que pregam uma restrita adequação empírica, sem se observar inúmeros outros detalhes importantes.
Por outro lado, a teoria epistemológica em (
Kuhn, 1970), por exemplo, demonstrou com sucesso que a atividade de pesquisa consolidada se dá por meio de um paradigma [5] que pode ser entendido como o conjunto de teorias (ou a teoria) bem estruturada capaz de congregar gerações de cientistas em torno de um tema. Um paradigma forma um tipo de “passaporte confiável” para solução de determinados problemas. Ele permite escolher - de uma ampla gama de fenômenos e aparentes problemas científicos - quais devem ser estudados daqueles que devem ser desprezados. Na existência de um paradigma, a atividade científica se aproxima de uma “solução de quebra-cabeças”, quando se tem certeza que uma solução será alcançada. O preço óbvio pago por essas vantagens é a restrição de escopo: cientistas não precisam (e nem devem) se interessar por qualquer tipo de problema, mas apenas por aqueles garantidamente tratáveis pelos paradigmas a que eles aderem. A atividade científica torna-se uma tarefa monótona (frequentemente envolve a busca ou aperfeiçoamento de soluções para problemas já resolvidos) e são raríssimas as ocasiões em que “soluções para problemas fundamentais” são sequer procuradas. Como ressaltado por Kuhn, para que a ciência dê resultados, não é possível se dedicar a qualquer tema ou problema que apareça, mas apenas aqueles para os quais exista um paradigma ou teoria bem estruturada que permita que a pesquisa seja organizada de forma eficiente. Isso envolve não só a escolha de uma teoria favorita, mas de uma ampla gama de conceitos chave na forma de uma linguagem própria. O paradigma propicia o progresso, evitando que sempre se tenha que começar “do zero”, quando surge a necessidade de dar solução a um novo problema pertencente ao tema de escopo do paradigma.
A noção de que ciência não se estabelece tão só pelo conhecimento empírico foi sentida por Poincaré (1854-1912) ao proferir que os cientistas “fazem ciência com os fatos, assim como uma casa é feita de tijolos; mas uma acumulação de fatos não é ciência, assim como um conjunto de tijolos não é uma casa” (
Poincaré, 1908). Isso porque é a teoria ou paradigma que confere status de ciência a um conjunto de fatos observados, é o paradigma que estipula as regras e procedimentos que devem ser seguidos para se montar experimentos, propor instâncias de observação etc. E, conforme a teoria, tal é a visão que se tem dos fatos. Na grande maioria dos empreendimentos científicos, foi a assunção preliminar de hipóteses e a tentativa de elaboração de teorias que permitiram a construção de novos equipamentos e métodos de investigação. Um exemplo clássico foi o desenvolvimento da teoria atômica na química, não obstante os blocos constituintes da matéria - os átomos - (que são hoje os ingredientes funda- mentais de qualquer descrição química da Natureza), não tivessem sido “observados” experimentalmente até a década de 1930. A doutrina do atomismo (Whyte, 1961), desenvolvida a partir de noções elementares de antigos filósofos gregos, tornou-se crença científica nos séculos que se seguiram ao renascimento na Europa. Reações químicas eram vistas como evidência indireta da natureza fragmentada da matéria a partir de elementos que se combinavam microscopicamente [6], embora provas diretas dos átomos jamais existissem.
Do ponto de vista operacional, muito das publicações em pesquisa moderna é orientado por um processo conhecido como “avaliação por pares” que consiste na verificação da adequação dos resultados de uma pesquisa ao paradigma vigente por pessoas supostamente qualificadas [
7] na área de que trata a pesquisa. Seria talvez possível argumentar que esse processo conferiria “objetividade” à prática científica. Porém, esse processo não está isento de subjetividade, uma vez que são conhecidos inúmeros exemplos em história da ciência em que trabalhos com conclusões perfeitamente corretas fo- ram rejeitados, enquanto que trabalhos com conclusões incorretas foram aceitos (Barber, 1961; Löwy, 2002; Townes, 2002). O processo de avaliação por pares é assim um meio aproximado de garantir a qualidade do conhecimento científico [8] gerado e não um método infalível. Sua existência está ligada à questão da qualidade de publicação de resultados e relatórios científicos e não diretamente ao processo de gênese científica.
A compreensão do labor científico como organizado e dirigido por teorias e paradigmas permite compreender diversos outros aspectos associados à gênese, escopo, abrangência, evolução e ceticismo na Ciência. Em particular no que tange à evolução, ela não é uma construção “linear” ou “assintótica” como sugerido por (
Pinto, 2012) e imaginado ordinariamente, onde o conhecimento é acumulado gradativamente de um estado de não ciência para ciência total. Essa ideia é falsa e está ligada à concepção popular de ciência, fruto da crença de que a ciência se dá por um processo objetivo, gradual e absolutamente isento de falhas. A história da ciência fala de épocas de estagnação no conhecimento científico seguida por surtos de desenvolvimento admirável [9] que são difíceis de serem explicados se a ciência for entendida como um processo linear. Ao contrário, ao se compreender a importância das teorias é que entendemos que apenas aqueles que dispõem da teoria tem competência para fazer a ciência avançar. Como a gênese das teorias, em última análise, é um processo subjetivo (sujeito a inúmeros fatores de coincidência, contexto e motivação), sua evolução jamais será um processo linear.
III - DO OBJETO DA CIÊNCIA ESPÍRITA
Allan Kardec compilou e estabeleceu uma grande quantidade de princípios e leis secundárias que forneceram a base para a doutrina espírita. Essa doutrina tem três aspectos fundamentais [
10]: o aspecto científico (representado pela sua proposta de ciência espírita), o aspecto filosófico (que diz respeito às questões morais e outras de caráter filosófico) e o aspecto religioso.
Kardec compreendeu de forma admirável para o seu tempo que o escopo dessa nova ciência não se identificava em nada como aquele das ciências de sua época. Por isso, escreveu este famoso parágrafo:
“As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livre- mente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, por- tanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.” (Kardec (1994), Introdução, VII, grifos nossos).
Dizendo isso, não rompeu com nenhuma tradição científica existente. Ao contrário, ao propor que os fenômenos psíquicos poderiam ser explicados com bases em uma nova teoria com suporte experimental, ele fez com que fatos até então considerados como pertencentes ao reino do sobrenatural e da religião pudessem ser tratados como fatos científicos legítimos por razões que veremos abaixo. A nova ciência espírita já nascia em consonância com ideias modernas de ciência que concluíram pela inutilidade de conceitos de “método científico”, “indutivismo ingênuo”, e uma equivocada “objetividade”, conceitos que seriam demonstrados como obsoletos por uma plêiade de epistemologistas no século XX (
Chalmers, 1999). A justificativa dada por Kardec na citação acima é suficientemente concisa e clara, dispensando maiores detalhamentos.
E, ainda hoje, se muitas pessoas pensam que o conhecimento científico é superior a outros tipos de conhecimento ou práticas (tais como a arte, a filosofia etc) é porque ainda trazem concepções ultrapassadas de ciência, justamente aquelas que acreditam que o conhecimento científico é mais “objetivo”, “quantificável”, “independente de qualquer referência a interpretações subjetivas” como sugere (
Pinto, 2012) e, portanto, mais “certo” do que qualquer outro, o que seria suficiente para caracterizá-lo como “superior” diante de outros tipos de conhecimento (Haak, 2012). Ao criar uma ciência já em conformidade com as noções epistemológicas recentes, Kardec estabeleceu também um justo valor a esse conhecimento, o que implica na certeza da existência de limites para ele. Esses limites são definidos dentro do paradigma espírita (Chibeni,1988a,b, 1994) que, como qualquer paradigma, estabelece restrições severas ao que pode ser pesquisado. A proposta de ciência feita por Kardec também não fere nenhuma premissa do labor científico, uma vez que seu objeto de estudo não guarda relação com aqueles que são estudados pelas ciências ordinárias.
Antes, porém, de discutir essa questão, convém que detalhemos um pouco mais a questão do “objeto” de pesquisa. Em princípio, seríamos levados a pensar que o objeto de uma ciência qualquer diz respeito aos fenômenos tangíveis ou replicáveis que essa ciência pode experimentar no laboratório. A ideia que em geral se faz do “objeto de estudo” de uma certa ciência está fortemente ligada à concepção de ciência que se tem. Assim, para um indutivista extremado (que acredita que conhecimento científico pode ser gerado por um método e começa com uma observação), o objeto de estudo se identifica plenamente com os fenômenos. Se esses não puderem ser diretamente acessados, reproduzidos à vontade ou manipulados em laboratório, haverá compreensão equivocada do status científico de qualquer disciplina que se proponha a estudar algo que não seja diretamente observável, replicável diretamente ou que não se dobre a requisitos de laboratório [
11].
Para as teorias modernas do conhecimento, em que uma teoria ou paradigma têm papel fundamental, não se pode falar no objeto de estudo sem referência as construções teóricas, o que implica perda de referência absoluta com os fenômenos. Há uma simbiose entre teoria e experimento, não tem sentido falar de um aspecto sem o outro. Citemos um exemplo: qual seria o objeto de estudo da física quântica? Uma vez que essa ciência postula a existência de partículas e átomos ou entidades microscópicas não acessíveis à observação direta, distanciamo
-nos naturalmente da definição meramente fenomenológica na compreensão desse objeto. Assim, a física quântica tem como objeto de estudo entidades postuladas em um mundo microscópico que causam indiretamente determinados fenômenos. A física quântica objetiva estudar as regras e leis que regem o comportamento dessas entidades microscópicas com base nas consequências fenomenológicas observadas seja diretamente [12], indiretamente ou por meio de equipamentos especiais. O mesmo se pode dizer da genética, que postulou a existência de entidades microscópicas, os genes, e que espera inferir um conjunto de previsões de observação para aspectos apreensíveis de seres vivos (objetos macroscópicos) com base na combinação desses genes e regras ou leis específicas que regulamentam essas combinações. Assim, é plenamente possível que o “objeto de pesquisa” de uma ciência, por causa de sua inacessibilidade direta, tenha que ser inicialmente postulado ou inferido por via indireta onde a teoria tem um papel fundamental. Essa inferência indireta é mais a regra do que a exceção. E nem é necessário que o objeto seja muito pequeno ou intangível. Consideremos, mais uma vez, a questão da existência de vida em outros planetas. O fato de não se dispor de uma evidência direta ou observação sobre essa vida não impede que cientistas postulem sua existência e desenvolvam teorias e métodos (Kitchin, 2012) para sua futura investigação [13].
Essa constatação da importância da teoria fez com que se abandonassem radicalmente as descrições de ciência que desprezam ou não consideram o papel das teorias ou paradigmas. Portanto, não se pode falar jamais que o objeto de estudo de uma ciência seja simplesmente o seu fenômeno. Tendo em vista essa nova concepção, podemos compreender com novas luzes o fato de Kardec ter identificado no espírito o objeto de estudo da ciência espírita.
Detalhamos aqui um pouco mais essa identificação. Do ponto de vista dos tipos de manifestação dos objetos a nossa volta, podemos dividir em duas grandes classes fenomenológicas (
Chibeni, 2010):1. Fenômenos materiais ordinários (causa subjacente: constituintes da matéria)
· Cores;·Sons;·Formas;·Movimentos;·Calor ou frio;·Odores e sabores;
2. Fenômenos inteligentes (causa subjacente: espírito)
· Pensamentos;·Vontade;·Sentimentos;
Essa divisão é geral. Não estamos aqui falando de manifestações mediúnicas (que abordaremos mais a frente), mas sim de efeitos quaisquer que estãopublicamente disponíveis a um observador. Para um subconjunto de fenômenos materiais [14], as manifestações exigem que lancemos mão de causas materiais que serão específicas ao tipo e a classe. Átomos, moléculas e partículas estão na natureza íntima de muitas manifestações materiais, enquanto que o espírito está ligado às manifestações inteligentes. Assim, embora os efeitos estejam publicamente disponíveis, as causas subjacentes ou origens fenomenológicas não estão. Não temos acesso direto a átomos, partículas reais, moléculas, processo de degustação, processos íntimos de registro de imagem dentro do cérebro, vias neurais de conexão, radiações eletromagnéticas específicas, campos elétricos, campos magnéticos, partículas virtuais etc; temos apenas as apreensões que são conectadas a essas causas intangíveis por meio de teorias que permitem elaborar métodos experimentais (equipamentos) de registro. Da mesma forma, embora possamos identificar um efeito inteligente (sei que minha mãe me liga quando ouço a sua voz ao telefone ou quando recebo uma mensagem dela por e-mail), não temos acesso direto a sua causa íntima. Se me encontro com ela, os sinais de seu corpo e aparência física não me dão nenhum direito de duvidar que não seja ela, embora saiba, fenomenologicamente falando, que estou apenas diante de seu corpo que emite determinados sinais etc. Dentro do arcabouço filosófico em que se insere a ciência espírita, convém que essa causa inteligente seja identificada e separada das causas materiais, da mesma forma como separamos diversos tipos de partículas ou átomos nas descrições físicas da Natureza ou da mesma forma como separamos fenômenos autônomos da Natureza daqueles provocados pelos seres humanos [15]. Do ponto de vista filosófico, pode-se argumentar (Chibeni, 2010) que a questão da separação entre “substâncias” não pode ser decidida por meio de argumentos lógicos ou evidências experimentais [16], o que não significa que essa diferença não exista e que não se possa, pragmaticamente, separar essas causas, principalmente quando consideramos fenômenos de ordem diferente como os fenômenos espíritas.
Assim, quando se toma como ponto de partida a existência do espírito com causa fenomenológica independente dos constituintes materiais e não diretamente acessível, estamos em consonância com a prática de muitas ciências modernas que são obrigadas a postular a existência de entidades não diretamente observáveis também e independentes entre si a fim de que leis e regras sejam descobertas e tornem possível a explicação de muitos fenômenos. Veja que essa inferência indireta não pode ser confundida com falta de “objetividade”, o que é acessível são os fenômenos e não as causas subjacentes. Logo, a adequação empírica se dará por meio de regras específicas que dirão como os fenômenos devem estar conectados às causas inacessíveis. Boa parte, portanto, do trabalho na ciência espírita deverá elucidar em detalhes essas regras, um trabalho que será inútil se seu objeto de estudo não for sustentado como causa suficiente para uma classe de fenômenos e antes que se consiga uma “prova” direta de sua existência. Justificamos, assim, nossa afirmativa anterior de que Kardec estava adiantado na sua época ao ter postulado o espírito como objeto de estudo da ciência espírita.
No que tange às manifestações espíritas, Kardec separou-as em duas classes:
Manifestações físicas (espíritas): movimento de objetos, produção de sons, luzes, odores etc;·
·
Manifestações inteligentes: produção de mensagens de conteúdo inteligente.
Ambos os tipos de manifestações guardam algo em comum: o fato de estarem relacionadas a uma causa invisível, mas inteligente. Pois, é fato notório que todas as manifestações espíritas sempre se caracterizaram como fenômenos de comunicação “por excelência”:
“Se os fenômenos com que nos estamos ocupando houvessem ficado restritos ao movimento dos objetos, teriam permanecido, como dissemos, no domínio das ciências físicas. Assim, entretanto, não sucedeu: estava-lhes reservado colocar-nos na pista de fatos de ordem singular. Acreditaram haver descoberto, não sabemos pela iniciativa de quem, que a impulsão dada aos objetos não era apenas o resultado de uma força mecânica cega; que havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente.” (Kardec, “O Livro dos Espíritos” Introdução ao estudo da doutrina espírita, VII, 1.º parágrafo, grifo nosso).
O fato que chamou a atenção de Kardec foi que, nas manifestações espíritas, sempre se poderia identificar um agente e um receptor, um meio e uma mensagem, o que é suficiente para caracterizar tais ocorrências como um processo de comunicação [17]. Dessa forma, Kardec jamais contrariou a ciência da sua época ao explicar as manifestações físicas como tendo origem íntima no espírito. Pois, ao identificar a voz (fenômeno acústico tangível) de minha mãe do outro lado de uma ligação telefônica, terei poucas chances de refutar a explicação de que se trata de minha mãe de fato (e, portanto, o fenômeno tem origem final em seu Espírito) do outro lado da linha. Se isso ocorre quando sei que minha mãe vive, porque não poderia ter a mesma certeza ao constatar sua manifestação, mesmo sabendo que ela é falecida? Assim, nas manifestações de efeitos físicos, embora os fenômenos sejam tangíveis, eles se devem a causas inteligentes e devem ser associados, por lógica, à causa “espírito”, que é, por isso mesmo, o objeto de estudo da ciência espírita.
Ao contrário, a falha em se aceitar essa verdadeira causa fenomenológica é razão suficiente para entendermos uma enorme quantidade de aspectos das manifestações espíritas que não são aceitos pelos antagonistas [
18] e pelo estado lamentável em que se encontram disciplinas [19] que foram criadas para dar explicação para esses fenômenos. Em primeiro lugar, temos a questão da não reprodutibilidade e o caráter esporádico dos fenômenos.
É muito claro, a partir da causa postulada, que os requisitos fundamentais para a reprodução dos fenômenos não estão disponíveis publicamente, de forma que é impossível reproduzi-los à vontade. Por isso, um fenômeno tão generalizado como o das manifestações físicas da segunda metade do século 19 (que deu inicio ao Espiritualismo nos Estados Unidos e ao Espiritismo) não pode ser observado ostensivamente hoje em dia: a raridade do fenômeno é uma consequência de seu caráter inteligente e incontrolável.
Mas, suponhamos que alguém não aceite a ideia do espírito como objeto de estudo. Que tipo de objeto poderia substituí-lo? As opções no momento caem de uma forma ou de outra no materialismo. Isso porque, se considerarmos todos os fenômenos como tendo origem última em um mesmo elemento, não haveria razões para não creditarmos essa origem aos constituintes da matéria. Mas, se são causas materiais, porque elas são irreplicáveis? As respostas levam a um emaranhado de hipóteses e teses que parece não explicarem todos os aspectos da fenomenologia psíquica. E nem poderíamos resolver o problema ao redefinir esse elemento como sendo os próprios fenômenos espíritas. Isso já foi feito no passado pela Metapsíquica [
20] (Richet, 1922), um campo de estudos que morreu com seu fundador. A Metapsíquica é um exemplo de livro texto do que se deve fazer com uma nova disciplina para transformá-la em um campo estéril e inativo em pouco tempo. Não importa se ela conseguiu alguns resultados momentâneos porque ela não conseguiu criar tradição de pesquisa. Não é difícil ver a razão para esse fracasso: seria o mesmo que dizer que à Química cabe apenas a tarefa de estudar reações químicas. Nesse exercício de pensamento, o destino dessa disciplina seria igualmente o esquecimento: ela se tornaria um campo estéril, que talvez criasse um vocabulário próprio e excêntrico para descrever as reações químicas que ela seria incapaz de prever e explicar corretamente, por rejeitar abertamente a necessidade de entidades teóricas inacessíveis diretamente (os átomos) como responsáveis pelos fenômenos químicos. Definitivamente, foi pela postulação de novas causas e a descoberta das leis que regulam as interações entre essas causas ocultas que o progresso na Química foi feito.
IV - DA ORIGEM DO CONHECIMENTO ESPÍRITA.
Tendo reconhecido a importância das teorias como orientadoras e guias de qualquer disciplina que pretenda ser uma ciência, podemos reduzir grandemente a importância de muitas querelas ou discussões em torno da origem do conhecimento espírita que qualificariam ou não esse conhecimento. Nenhum cientista sério está interessado em saber se uma dada explicação para um fenômeno natural teve como origem um sonho, uma intuição, uma sugestão de algum amigo durante uma conversa ou um acalorado debate entre especialistas (
Tatón, 1957). A origem pouco importa, o que realmente conta é o seu conteúdo e sua capacidade de explicação, o que é garantido pela sua adequação empírica e acomodação a uma teoria eficiente que é o paradigma estabelecido. Assim, apenas quando não se compreende a importância e o papel de uma teoria como orientadora do trabalho de investigação científica, é que se levantam dúvidas quanto à validade de uma hipótese ou princípio, por “herdar” esse uma característica supostamente “irracional” de sua origem. Dessa forma podemos entender porque foram aceitos os argumentos oníricos de F. Kekulé (1829-1896) para o anel da molécula de Benzeno, uma estrutura que foi “sonhada” por esse cientista (Rocke, 2010). Para os que sustentam uma visão simplória e indutivista da ciência, essas sugestões são inadmissíveis, pois elas não nasceriam de uma aplicação rigorosa de um método supostamente objetivo e isento de “interferências subjetivas”, métodos que exigiriam uma “ampla comprovação” por inúmeros outros. Como não existe tal método, não importa muito como o conhecimento é gerado [21].
Assim, o fato de Kardec ter usado uma, duas ou qualquer número de médiuns (
Kardec, 1944b) é irrelevante em nossa opinião e não pode ser usado para invalidar as consequências do trabalho final contido em “O Livro dos Espíritos”. De fato, mesmo se considerássemos que seu conteúdo veio da cabeça de Kardec [22] (o que seria um erro grave), ainda assim essa questão seria pouco relevante hoje em dia. Por quê? A razão encontra-se na própria maneira como os princípios espíritas (que formam os fundamentos da teoria espírita) estão estruturados. Como dissemos, o que realmente importa é seu conteúdo e sua capacidade de explicação. Essa “capacidade de explicação” é produto de uma consistência interna entre os princípios (eles não se contradizem reciprocamente, mas se complementam, ou seja, cada princípio adere de forma harmônica ao paradigma a que pertence) e sua habilidade de generalização. Os princípios espíritas tem fertilidade heurística, uma característica positiva que permite não só explicar, mas prever a ocorrência de certos fenômenos. Essas características positivas tornam atraente o campo de investigação sob orientação direta dos princípios dessa nova ciência que constituiriam um novo paradigma. E isso basta para justificar o valor científico de seu conteúdo.
Veja que, do fato da origem do conhecimento ser em um sentido irrelevante (diante
, depois e em relação a um paradigma plenamente estabelecido), essa questão foi tratada de forma diferente por Kardec no momento da codificação:
Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. (
Kardec (1944a), Introdução, “Autoridade da Doutrina Espírita”).
ou, mais a frente:
Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação. Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos. (Grifos meus).
Naquele momento, ele estava diante de um conjunto de princípios que acabavam de nascer e, embora tivesse empreendido uma obra admirável, Kardec não poderia absolutamente fazer ideia de todas as consequências adversas ou não que esse conhecimento teria no futuro. Assim, nesse sentido, a constatação da origem do conhecimento nos próprios Espíritos foi uma importante fonte de afirmação inicial do conhecimento espírita, diante das“milhares de vozes que se faziam ouvir simultaneamente” em todos os lugares. Se, pela aplicação dos princípios espíritas na forma de paradigma vemos hoje sua excelência metodológica, isso não contraria a importância da fonte desse conhecimento. Como a fonte, de fato, reflete a excelência dos ensinos, tanto melhor será se ela se encontra identificada como nos próprios Espíritos porque, como Kardec afirma, os homens poderiam perecer e, ainda assim, os ensinos continuariam.
Por outro lado, sabemos que Kardec se preocupou em evitar a desintegração dos princípios de sua teoria - porque sabia que muitos deles não seriam aceitos em sua totalidade - e propôs [23] um método especial de “confirmação” para esses princípios: o critério da concordância universal. A fonte clássica que descreve esse critério é:
Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares. (Kardec (1944a), Introdução, “Autoridade da Doutrina Espírita”, 11.º Parágrafo).
Entretanto, cumpre relembrar sempre o escopo desse critério, que é explicitado imediatamente no parágrafo seguinte:
Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que, quando um princípio novo tem de ser enunciado, isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo. (Grifos meus).
Portanto, o critério da concordância foi uma proposta metodológica de Kardec diante do problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos no que diz respeito aos fundamentos doutrinários, ou seja, ao núcleo dos ensinamentos [24]. Ele não pode ser usado para validar qualquer tipo de conhecimento, principalmente se tangencial a tais princípios.
Um exemplo recente de má compreensão desse escopo especial do critério (
Aleixo, 2012) são as discussões em torno da existência ou não de um planeta orbitando o sistema de Capela como proposto por Emmanuel em “A Caminho da Luz” (Xavier, 1990) e que se presume seja resolvido com a aplicação do critério da concordância universal. Ora, a afirmação “existe um planeta que abrigou ou abriga vida no sistema de Alfa Aurigae” não é uma afirmação que pertença ao escopo da doutrina espírita. Quando muito, poderíamos dizer que se trata de uma questão de “astronomia planetária” ou “astrobiologia” para o qual um método exótico de se pedir opinião aos Espíritos poderia ser usado além de inúmeros outros. E, assim, encontramos quem invoque o critério da concordância universal para validação de qualquer questão, seja a da existência de vida em outros planetas, da validade ou não de teses sobre a origem da vida, das afirmações de um Espírito sobre episódios históricos [25], etc. O que se vê, assim, é uma dogmatização irracional em torno de trechos de textos de Kardec propostos em um momento específico do trabalho de codificação, dogmatização que nada tem a ver com a “lógica rigorosa” ou o “bom senso”.
No que diz respeito às revelações secundárias [
26], adiantamos aqui observação à luz dos princípios que discutimos: como afirmamos, a “validação de novos conceitos” não pode vir exclusivamente com base em uma origem supostamente isenta, por causa da aderência a um método considerado ideal. Não é porque um novo conhecimento teve origem em um consenso é que ele seja “mais verdadeiro”. Um indivíduo ou um Espírito sozinho pode fazer uma descoberta genuína ou essa descoberta pode ser fruto de um trabalho coletivo. A razão para isso é que a noção de “verdade” de um fato não está ligado ao método através do qual esse fato é descoberto. Ou, de outra forma: a única condição necessária e suficiente para que uma afirmação corresponda a um fato é que haja correspondência entre esse fato e a afirmação [27]. Embora o truísmo dessa frase, ela é não pode ser desprezada quando se considera a validade de uma determinada revelação. Portanto, uma nova ideia deve ser ponderada também em relação à sua aderência ao paradigma, ao seu poder explicativo, capacidade heurística e outras características que somente o conhecimento aprofundado do paradigma em questão poderá facultar.
V - DO ESCOPO DA CIÊNCIA ESPÍRITA
Definido um objeto e uma teoria somos capazes de também avaliar o escopo de uma ciência. Por “escopo” entendemos um conjunto de tópicos, temas ou contextos de investigação que podem ser tratados por uma determinada disciplina científica. Por exemplo, no caso da física quântica, seu objeto de estudo são os constituintes últimos que formam a matéria. A teoria estabelecida para facultar esse estudo é a mecânica quântica (Griffiths, 2005). O escopo da física quântica é a elaboração de previsões e explicações para um conjunto de fenômenos físicos. Note que podemos não identificar o escopo, novamente, com os fenômenos. Esses são peças importantes do “quebra-cabeças” (Kuhn, 1970) cujo objetivo último é formar uma imagem consistente de como as causas (partículas, átomos etc.) se relacionam com os fenômenos.
Uma vez que na nova ciência espírita temos um objeto (o espírito) e uma teoria (a teoria espírita), podemos nos perguntar sobre qual seria seu escopo. Isso é algo muito importante, pois o escopo definirá quais fenômenos devem ser levados em consideração e quais não devem. Por outro lado, essa definição possibilita separar que tipos de estudo pertencem genuinamente à ciência espírita daqueles que não pertencem. Para que possamos compreender a questão do escopo, é preciso antes novamente lançar mão de concepções mais modernas de ciência.
Entendendo assim o conjunto dos princípios que forma a teoria espírita como um candidato natural a um paradigma futuro (que seria o paradigma espírita), a ciência orientada por ele define e restringe fortemente o escopo de aplicação. Portanto, não é tarefa dessa nova ciência dar explicação a tudo que escapa às ciências da matéria. Por quê? Novamente, isso se dá porque a existência de um paradigma restringe fortemente o escopo de uma ciência. Não são todos ou quaisquer problemas que devem ser resolvidos na ciência espírita, mas apenas aqueles que têm relação direta com seu objeto de estudo.
Mas, como se sabe quais tem e quais não tem essa relação? Nas ciências já estabelecidas, isso ocorre por conta de uma tradição de pesquisa [
28] que é valorizada, amplamente aceita e divulgada e que é aprendida por estudantes ao longo de anos e anos de estudo (a “doutrinação” a que nos referimos anteriormente). O paradigma estabelecido se reforça e tentativas de “revisão” de seus princípios não só são desprezadas como fortemente desencorajadas. Durante esse aprendizado, o aluno tem oportunidade de resolver uma grande quantidade de problemas para os quais as respostas são bem conhecidas e que exercitam o senso crítico e a noção de aderência de um determinado tema ao paradigma da sua ciência. O processo pedagógico de aprendizado científico faz largamente, assim, uso do método de “resolução de problemas”, quando as noções e princípios do paradigma são inculcados na cabeça do aluno de tal forma que, após certo tempo, ele adquire uma visão intuitiva de como proceder para dar solução a um novo problema que não pertence à sua lista de exercícios. Não só isso, essa intuição permite ao candidato a cientista desprezar aqueles que não devem ser tratados dentro do paradigma ou que, necessitam de “ajuda externa [29]” para que uma solução seja tentada.
Não parece haver conflito em se assumir que esse conhecimento também deveria advir de um processo de aprendizado contínuo e eficiente, não só nos conceitos da ciência espírita, mas, principalmente, na solução de problemas paradigmáticos que apenas esse nova teoria consegue explicar eficientemente. Mas, onde estão os que a defendem e que realmente a utilizam como potencial linguagem científica para uma nova classe de fenômenos naturais? O que vemos é o eterno levantar de dúvidas, o requerimento incessante de “provas” da existência do Espírito, de “evidências” da sobrevivência, da constatação inequívoca de seu objeto que não está diretamente acessível à observação direta, da mesma forma como uma série de outros objetos (átomos, moléculas, vida em outros planetas) também não estão. O que se vê são tentativas de criação de vocabulário exótico sob a justificativa de uma suposta necessidade de “não contaminação” com “ideias preconcebidas” dos preceitos espíritas. Nesse quadro desolador de contestações eternas dos princípios, de desmonte de uma linguagem por puro preconceito, como a ciência espírita poderá evoluir? Não apenas a nova ciência, mas qualquer outra ciência material jamais poderia progredir se a “atividade científica” se limitasse a contestação incessante dos princípios que a estabelecem.
Por outro lado, para se determinar a adequação de um tema dentro do escopo da ciência espírita é preciso, antes, considerar a relação do novo conceito com o corpo principal de ensinamentos espíritas. Assim, devemos nos perguntar se o conhecimento obrigatoriamente deve ser validado por um processo mediúnico. Já discutimos anteriormente que o Critério da Concordância Universal não pode ser invocado para sancionar esse tipo de conhecimento. Vale a pena reconsiderar os exemplos já citados no contexto do escopo da nova ciência:
Revelações sobre a existência de mundos específicos em outros planetas. Estariam esses informes exclusivamente adstritos a abordagem mediúnica? Não seria a revelação de maior interesse ao conhecimento geral (astronomia planetária, exobiologia) e, portanto, fora do escopo da ciência espírita? O argumento de se usar “médiuns abalizados de diferentes centros ou locais” não pode ser usado aqui, pois não se trata de tema relacionado aos fundamentos. No máximo, processos mediúnicos poderiam ser encarados como “métodos não ortodoxos” de acesso à informação;·
·
Revelações sobre episódios históricos. Da mesma forma, perguntamos: estariam esses informes exclusivamente adstritos à abordagem mediúnica? Não seria a revelação de maior interesse ao conhecimento geral (história, antropologia etc.) e, portanto, fora do escopo da ciência espírita? Portanto, processos mediúnicos são métodos futuros auxiliares das ciências históricas e criminalísticas e não métodos exclusivos de validação dentro do escopo da nova ciência;
·
Revelações sobre novas leis da física, astronomia, química, biologia, matemática etc. Pelas mesmas razões gerais que expusemos anteriormente, não é difícil ver que não cabe a nova ciência cuidar de problemas que não tocam diretamente ao seu objeto. No máximo, procedimentos mediúnicos seriam meios indiretos e incontroláveis de se acessar a opinião dos Espíritos sobre questões que não pertence ao escopo da ciência espírita. A opinião deles, enquanto Espíritos, é difícil de ser avaliada, uma vez que, muito provavelmente, farão em uma linguagem diferente e adaptada na descrição do que testemunham de forma limitada conforme o grau de conhecimento que eles têm e adicionalmente filtrado, em maior ou menor grau, pelo médium.
Do fato de afirmarmos que tal tema não faz parte do escopo da nova ciência não significa que não possa haver relações interdisciplinares entre ela e as outras ciências. Em determinados casos, podemos argumentar que a falta de reconhecimento explícito de uma disciplina pelos princípios espíritas pode ser responsável pela estagnação ou multiplicidade de hipóteses que se vê nessa mesma disciplina. Um exemplo que nos vem à mente é o caso da psicologia e psiquiatria. É fato inconteste a abundância de fenômenos anômalos, evidências de vidas anteriores (Stevenson, 1960a,b), todos explicáveis pelos fundamentos dos princípios espíritas que poderiam trazer novas luzes ao desenvolvimento dessas disciplinas. Esses são temas genuínos dessa nova ciência.
VI - DOS OBSTÁCULOS AO DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA ESPÍRITA
Já tivemos a oportunidade de discutir alguns empecilhos ao desenvolvimento dessa nova ciência (
Xavier, 2012). Por completeza, reproduzimos abaixo esses obstáculos apontados em nosso estudo virtual para completar com outro comentário adicional:Esse problema surge por dificuldade em se compreender a viabilidade de estudo científico da questão (espíritas). Frequentemente, ou se considera o assunto como além do que seria o normal ou verificável (e, portanto, pertencente ao domínio da metafísica), ou, diante de uma visão mística dos fatos, toda a questão é tomada como pertencente ao “reino do sobrenatural”. Assim sendo, considera-se o assunto de forma alienada à realidade;1. Considerar a questão metafísica ou “sobrenatural”:
2. Considerar que o assunto já foi analisado e a conclusão foi negativa:
esse é o erro mais comum entre os céticos. É comum também entre os que se satisfazem com uma visão superficial baseada em supostas pesquisas que não atentam para o rigor e o detalhe que o assunto exige. A respeito disso, vale um comentário de Kardec apresentado abaixo (“O ceticismo, no tocante à doutrina espírita, quando não resulta de uma oposição sistemática por interesse, origina-se quase sempre do conhecimento incompleto dos fatos, o que não impede que alguns deem a questão por encerrada, como se a conhecessem a fundo.” (Introdução, Kardec (1994));
3. Considerar que o que há de importante sobre o espírito já é investigado pela psicologia etc., dentro de um referencial materialista:
isso é uma variante algo mais sofisticada do empecilho anterior. Como uma teoria determina em último grau quais os fatos e ocorrências devem ser considerados, então ao se assumir o materialismo como arcabouço teórico de investigação, está se restringindo severamente o universo de fatos. A “prova” obtida a favor de determinado ponto de vista não é válida;
4. Considerar que esse referencial materialista foi “provado” pela ciência:
Ciência entendida como “conhecimento” nada tem a dizer sobre a questão da sobrevivência. Outra coisa bem diferente é a opinião dos cientistas. Mas essa opinião não constitui ciência, principalmente se ela versa sobre assunto que não diretamente relacionado a suas pesquisas de fato;
5. Tentar “detectar” o espírito por meios diretos:
há uma quantidade enorme de pessoas que acreditam que manifestações físicas (efeitos físicos) são “manifestações espirituais”. Outros dizem que, se o Espírito existe, ele necessariamente deve deixar rastros mensuráveis. Aqui, a falha é na compreensão do objeto de estudo: a matéria se deixa apreender por determinados tipos de sinais (cores, sons, formas, gostos etc.). O Espírito tem pensamento, vontade e sentimentos, todos atributos inacessíveis do ponto de vista sensorial (Chibeni, 2010). Não é difícil perceber que a questão não pode também ser decidida apelando-se para uma amplificação no nível de acuidade ou “precisão” do equipa- mento;
6. Tentar “mensurar” o espírito:
uma variante do erro anterior;
7. Só considerar válida a evidência “reprodutível”:
aqui temos um ponto para muitas discussões. Mas a essência é muito simples: como os fenômenos dependem de inteligências que são independentes, insistir na reprodutibilidade é condenar o estudo do assunto desde o princípio. A fonte dos fenômenos espirituais necessariamente não pode ser controlada, pois é independente, logo não está sujeita a reprodução;
8. Tratar o assunto de forma puramente experimental, sem preocupação com o desenvolvimento de uma teoria que explique os fatos:
Esse é um empecilho típico da parapsicologia (Xavier, 2013). Em toda a história da ciência, jamais se fez ciência de verdade sem teorias. Entretanto, alguns pesquisadores das "ciências psi" pretendem resolver a questão tão só apelando-se para o experimento. Para esses pesquisadores, invocar “explicações” tiraria a “neutralidade” e o “rigor” que o tema de pesquisa exige. Entretanto, isso está errado, pois "rigor" nada tem a ver com “neutralidade” e o desenvolvimento científico normal exige que se proponham experimentos baseados em hipóteses ou teorias;
9. Trabalhar com fragmentos teóricos (hipóteses isoladas):
Por outro lado, quando explicações são dadas, elas são produzidas uma para cada fenômeno e não conseguem dar conta de todos os fatos. Não se procura correlacionar um fenômeno com outro. Fatos psíquicos diferentes, que se manifestam fenomenologicamente de forma diversa, são explicados por hipóteses diferentes ou mesmo totalmente antagônicas entre si;
10. Adotar enfoque dogmático ou preconceituoso:
dogmatismo e preconceito são regras no comportamento humano e não exceções. A compreensível “neutralidade” não deve ser anulada até o ponto em que se adote uma visão clara- mente radical da questão. Há que se reconhecer que ninguém é dono da verdade;
11. Misturar ou conivir com o misticismo:
de novo, isso ocorre por falha na compreensão do caráter científico do assunto a ser estudado. Para o misticismo, não há necessidade de se envolver a Ciência, pois ele se considera uma fonte independente de conhecimento. Trata-se de um obstáculo, pois o misticismo oblitera ou impede essa compreensão científica;
12. Descuidar do rigor:
quando se fala na aplicação de um método (não necessariamente extraído ou importado das ciências ordinárias) há que se tratar do rigor sem o que é impossível chegar a conclusões válidas.
Muitos desses obstáculos estão inter-relacionados de alguma forma. É fácil ver que a falta de rigor possibilita a pesquisa orientada por “fragmentos teóricos”, assim como as abordagens puramente experimentais implicam em tentativas de se “mensurar” o Espírito, quando, de fato, se reconhece sua existência como causa fenomenológica irredutível. Por isso, a eliminação desses doze obstáculos somente será conseguida se pesquisadores da ciência espírita assumirem definitivamente o escopo e objeto de estudo dessa ciência tal qual eles se apresentam, segundo os métodos e processo modernos apontados por teorias epistemológicas maduras, em suma, sem equívocos e ideias preconcebidas como aquelas descritas em (Pinto, 2012).
VII - EM SUMA: DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA CIÊNCIA ESPÍRITA
SEM KARDEC
A ciência espírita proposta por Kardec já possui um objeto e um método adequado de investigação que ainda não brilha em sua plenitude em parte por causa da visão de mundo presente, que é manifestadamente contrária a visão espiritualista do ser. Porém, ela detém todos os requisitos iniciais de um campo investigativo futuro promissor, em que pese as pouquíssimas instâncias em que ela foi, de fato, aplicada no passado. Isso acontece porque não há “massa crítica” de pesquisadores que a levem a sério com o comprometimento e a dedicação que qualquer atividade (seja científica ou não) necessita. Ao contrário, a imensa maioria dos trabalhos pretensamente científicos feitos na área dos fenômenos psíquicos ou aplicam hipóteses de fraude para invalidar os fenômenos ou propõem explicações bastante elaboradas para desconstruir a tese espírita da sobrevivência. Para qualquer dessas alternativas, nunca houve preocupação por uma construção teórica sólida, uma teoria, que não só justificasse meia dúzia de fenômenos, mas que conseguisse explicá-los todos por meio de princípios simples e abrangente. Por essa razão, não se pode falar ainda em termos práticos na existência de um “paradigma espírita” plenamente operante em nossos dias. Para tanto, seria necessário que a teoria fosse largamente utilizada na orientação de trabalhos de investigação, constituindo-se em uma nova tradição de pesquisa. Por isso, também, seja possível afirmar que a ciência espírita, tal como antevista por Kardec, seja o maior caso de prematuridade científica já ocorrido e ainda não totalmente compreendido (
Hook, 2002).
Devemos reconhecer que as noções de fraude sempre estiveram fortemente arraigadas na mente da maioria dos pesquisadores das ciências psíquicas, por causa do vácuo teórico existente. Como não se acredita na explicação correta para a questão (a próprio princípio subjacente à teoria), a ideia da fraude será sempre a hipótese mais fácil. Seria como se, na ocorrência de um crime e da impossibilidade de se acusar o verdadeiro assassino, a investigação permanecesse no pesadelo eterno de se acumular fatos e provas e desenvolver explicações elaboradas que nunca chegarão à conclusão verdadeira. Assim, diante do caráter extraordinário de um fenômeno, a primeira explicação “de prateleira” disponível é considera-lo como fraude. Usando de uma comparação, vemos que vários grupos modernos se empenham em demonstrar, por exemplo, que a descida do homem na lua (pelo caráter extraordinário e ocorrência única na história) tratou-se também de uma farsa. Aqui estão envolvidas as mesmas forças psicológicas e limitações internas que levam a negar a fenomenologia psíquica passada. Por que não dançam novamente as mesas como elas fizeram no século 19? Por que o homem nunca mais voltou à Lua depois da década de 1970? A explicação mais fácil sempre será: porque foi tudo uma farsa...
É preciso considerar a propriedade e excelência do objeto proposto: o espírito. Tanto quanto nas ciências ordinárias considera-se a ocorrência de fenômenos observáveis como produto de causas inacessíveis, o espírito é a grande causa subjacente nos fenômenos onde ocorre manifestação de inteligência, sejam eles espíritas ou não. Assim, por meio de investigação acurada assumindo por princípio sua existência, a ciência espírita consegue fazer falar esse princípio, que é percebido nas entrelinhas das manifestações, no conteúdo de mensagem transportado, na diversidade e quantidade de informações, nas peculiaridades ocultas que passam despercebidas e que permitem entender porque o fenômeno ocorreu desta e não daquela forma.
Jamais será possível desenvolver qualquer tipo de ciência limitando o seu objeto de estudo ao que é “palpável” ou a sua parte fenomenológica. Dessa forma, qualquer tentativa de reduzir o objeto de estudo proposto por Kardec à fenomenologia mediúnica está fadada ao fracasso, como atestam provas históricas bem conhecidas [
30]. Por outro lado, o espírito tem grande afinidade com outras áreas de investigação como a psicologia e a psiquiatria, a antropologia e a sociologia, além do importante ramo das ciências da comunicação (linguística, análise de conteúdo etc.). De fato, a ciência espírita poderá se beneficiar de um intercâmbio entre métodos de investigação, por exemplo, com as áreas de comunicação, aplicando processos bem estabelecidos de análise de texto e conteúdo às manifestações inteligentes (Berelson, 1971). Até mesmo métodos da criminalística (Mena, 2003) poderão ser futuramente usados na investigação espírita, uma vez que, quando se trata da elucidação de um crime, a “causa inteligente” frequentemente está oculta e se manifesta através de inúmeras pistas espalhadas ao acaso, em quantidade limitada, que não se pode escolher ou reproduzir à vontade. Seria ridículo duvidar da existência do assassino nesses casos, só porque ele não é diretamente acessível...
VIII - DISCUSSÃO FINAL
Imagine que fosse possível propor uma revisão radical no conteúdo de qualquer ciência estabelecida, em extirpar princípios e fundamentos com base em dúvidas supostamente embasadas em nome de uma necessária “atualização” dessas disciplinas. Imagine atualizar trabalhos de cientistas como Newton, Einstein na Física, Lavoisier e Berzelius na Química, ou revisar totalmente obras de filósofos famosos de outrora como Platão, Aristóteles, Tomas de Aquino e muitos outros. Qualquer tentativa de se interpolar ou modificar trabalhos no passado sob a bandeira de uma suposta atualização seria vista como um ato ridículo pela comunidade acadêmica, que não pouparia esforços para sua marginalização.
Em vão os pretensos revisores acusariam os acadêmicos de “dogmáticos”, pois a história da ciência está repleta de casos de maior inclemência por parte dos acadêmicos contra inovadores muito melhor intencionados (
Barber, 1961). Somente uma visão estreita e ingênua da maneira como se relacionam cientistas e pesquisadores poderia achar que esse tipo de “dogmatismo” não faz parte da comunidade acadêmica e da atividade científica (Hook, 2002; Löwy, 2002; Stent, 1972a,b). Afinal, qualquer candidato a cientista sério é obrigado a cumprir uma rígida disciplina de anos de estudos para se tornar apto a exercer a atividade de investigação científica. Cientistas são “doutrinados” a fazer uma ciência em particular e “revisores revolucionários” são mal vistos (Townes, 2002).
Portanto, querer corrigir Kardec, em nome de uma pretensa “atualização” e acusar os espíritas modernos de “dogmatismo” não deixa de ser uma posição igualmente ridícula. E nem adiantaria dizer que os livros texto modernos apresentam “revisões” dos autores antigos. O conteúdo doutrinário é rigidamente o mesmo, o que muda é a maneira de se apresentar esse conteúdo (usa-se cores, apresentação gráfica e técnicas pedagógicas especiais) ou aplicações diferentes. Também, pouco efeito faz considerar o saber científico “mais exato” ou “estabelecido” do que o conhecimento espírita. Isso só pode advir de uma visão estreita do conhecimento.
Portanto, concluímos pela necessidade dos pesquisadores do psiquismo humano moderno (o que inclui psicólogos, psiquiatras, analistas etc., ver (
Moreira-Almeida, 2008, 2009)) levar em consideração os princípios de Kardec em suas pesquisas e investigações para fazer avançar realmente essa nova ciência. Isso porque são pesquisadores dessas áreas os que primeiro têm contato com essa nova força da Natureza, que é o princípio espiritual, tão antiga e tão mal compreendida.
Ciente da prematuridade das ideias que havia descoberto, não obstante sua presença em todas as culturas religiosas humanas, Kardec soube ponderar o justo valor que elas deveriam receber no futuro, não a partir do interesse de cientistas, mas quando esses, pressionados pela opinião pública, seriam obrigados a reconhecer sua importância. Cabe a nós, pelo estudo aprofundado dos mecanismos e processos que operam o desenvolvimento das ciências, tornar explícita essa prematuridade, a fim de que ela possa ser mais bem apreciada. Fazendo assim, nos distanciamos das vozes que pretendem tolher o desenvolvimento dessa nova ciência, reinterpretando de forma recordada os princípios espíritas, vozes que se escoram em ideias populares e mal informadas e que fazem coro com o ceticismo radical e dogmático que ainda parece reinar em nossos dias.
NOTAS
[1] Quando falamos em “Ciência”, referimo-nos largamente as doutrinas científicas que buscam explicações para os fenômenos da Natureza.
A fenomenologia mediúnica parece indicar claramente que o aspecto científico do Espiritismo seria mais bem apreciado ao se compará-lo com propostas teóricas para as ciências da Natureza.
[2] De forma resumida, uma teoria é um conjunto de princípios harmonizados em uma linguagem própria que tem como objetivo fornecer explicações para fenômenos direta ou indiretamente “observados”. O leitor atento também notará a diferença entre o conceito de “hipótese” e “teoria”. Uma teoria não é simplesmente uma coleção de hipóteses, embora se possa usar de uma hipótese como primeira tentativa de explicação de um fenômeno, principalmente quando ele é descoberto de forma fortuita e inesperada.
[3] Assim, fenômenos “anômalos” podem ser sumariamente varridos para debaixo do tapete por sugerirem explicações que desafiem o que é considerado conhecimento cientificamente aceito (que é o do paradigma vigente).
[4] Esse desenvolvimento avançado gera conhecimento científico genuíno mesmo quando seu objeto ainda não teve chance de se mostrar!
[5] Do grego “♣
❛r❛❞❡´ı❣♠❛” (paradeigma), “modelo, exemplo, amostra”, do verbo “♣❛r❛❞❡´ı❦♥✉♠✐” (paradeiknumi), “exibir, representar, expor” e de “♣❛r´❛” (para), “além” + “❞❡´ı❦♥✉♠✐” (deiknumi), “mostrar, apontar”.
[6] Lembramos no número de Avogadro (1776 - 1856) que contém a quantidade dessas partículas em um mol de uma determinada substância.
[7] Seriam indivíduos que tem conhecimento do paradigma. Inúmeros problemas surgem quando essa condição não acontece na prática.
[8] O melhor que se pode dispor, não obstante o fato de que muitas injustiças podem ser cometidas no processo.
[9] É o caso da óptica na Física, que sofreu com as preferências pessoais de Isaac Newton ao acreditar que luz era formada por corpúsculos.
É o caso também do desenvolvimento da mecânica quântica. Os princípios quânticos não são “frações de conhecimento” que se adicionaram à física clássica.
[10] Que também podem ser concebidos como “consequências”.
[11] Como é o caso de inúmeras ciências de observação (astronomia, cosmologia, meteorologia etc.).
[12] A observação do hélio superfluido, por exemplo, é uma observação acessível diretamente (pode ser vista com os olhos) que revela um aspecto inacessível do mundo microscópico (Dugan, 2007).
[13] De fato, métodos empíricos estão sendo desenvolvidos para, por exemplo, detectar a existência de certos gases na luz refletida pela atmosfera de planetas encontrados em outras estrelas e, assim, por via indireta, inferir uma provável ação biológica.
[14] Compreende-se que há fenômenos materiais com causa inteligente. Por exemplo, ao receber um telefonema de alguém, meu ouvido capta, no telefone, um som (fenômeno acústico), cuja origem primária é um emissor de mensagem inteligente do outro lado da linha.
[15] Quando um indivíduo morre, a parte material (corpo) se decompõe e vai fazer parte de outros elementos. Sabemos, entretanto, que sua contraparte espiritual permanece integra e consciente. Portanto, faz muito sentido separar esses dois princípios fundamentais que são independentes entre si. Chamar tudo de “matéria” simplesmente não acrescenta nada além da perda de precisão necessária ao se empregar termos científicos.
[16] Ou seja, não se pode conclusivamente refutar ou aceitar o dualismo.
[17] Enquanto isso, a imensa maioria dos outros pesquisadores (
Ferreira, 2004) tratavam os fenômenos como se estivessem diante de um gabinete de física ou laboratório de química, onde se pode experimentar à vontade. Por essa razão, Kardec foi um dos poucos pioneiros que conseguiram tratar o problema de forma correta no século 19.
[18] Onde se incluem, materialistas, ateus, pseudocéticos e, obviamente, antiespíritas.
[19] Como é o caso da parapsicologia (Xavier, 2013).
[20] Fundada na França por C. Richet (1850-1935). Pretendeu dar explicação “científica” (lê-se, que agradasse a cientistas da época) aos fenômenos psíquicos eliminando a necessidade do princípio espiritual (sobrevivência) e acreditando piamente que poderia “provar” a veracidade ou não deles pelo uso autorreferente de vocabulário excêntrico especial (o que se transformava essa “ciência” em um exercício de retórica). A metodologia de Richet usava amplamente a hipótese da fraude para desqualificar fenômenos que não se enquadrassem na sua visão particular dos fenômenos.
[21] É evidente que motivadores subjetivos são importantes para se atingir plena criatividade na atividade científica e de inovação de uma forma geral. De novo, a aderência do novo conhecimento a um paradigma torna irrelevantes os detalhes sobre como esse conhecimento foi gerado.
[22] Ou, de outra forma, pouco importa também se foi Kardec o principal responsável pela sanção dos fundamentos ou ideias principais no momento da codificação.
[23] Ou seja, ele não é propriamente um princípio da doutrina.
[24] “Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos um princípio da doutrina.” (
Kardec (1944a), Introdução, Autoridade da Doutrina Espírita, 12.º paragrafo).
[25] Imagine submeter ao critério da concordância universal os mínimos detalhes de obras como “Paulo e Estevão” (Xavier, 2010) ou “Há 2000 anos” (Xavier
, 1939). Pelo contrário afirmamos que a pesquisa histórica pode se beneficiar do testemunho dos Espíritos, mas isso não é gerar conhecimento espírita, mas fazer história... O critério da concordância não se aplicaria nunca nesse caso, anda mais porque os “testemunhos” de tais eventos não foram todos os Espíritos. (Ver também a seção Do escopo da ciência espírita adiante).
[26] Preferimos considerar apenas o que exploramos aqui para as revelações secundárias, pois as principais já gozam de excelência garantida pela sua aderência ao paradigma principal. O grau de “verdade” ou não de uma dada revelação não depende obviamente do caráter principal ou secundário dela.
[27] O que corresponde ao critério de “verdade por correspondência”. Há outros critérios de verdade em temas mais difíceis como no caso das ciências que é o da adequação de um fato ou conhecimento a um corpo teórico ou paradigma.
[28] Alimentada por verbas ou recursos financeiros especiais. Pode-se viver de pesquisa acadêmica, o que é, talvez, o mais importante elemento de estímulo à continuação da Ciência.
[29] Essa “ajuda externa” pode ser através da consulta a um especialista de outro paradigma, da busca por soluções inovadoras ou pelo uso de aproximações grosseiras que procurem explicar porque uma solução dentro de um paradigma não é possível.
[30] Como foi, de novo, o caso da Metapsíquica de
Richet (1922). É bem verdade que a França ainda guarda um centro com nome fóssil daquela época, o Institut Métapsychique International, porém a pesquisa psíquica presente praticados nele se fundamenta largamente na Parapsicologia e não nas teorias de Richet. Ver: http://www.metapsychique.org/
REFERÊNCIAS
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