a partir de maio 2011

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A REVISTA ESPÍRITA DE KARDEC, SOB A LENTE DE HERCULANO

Marcelo Henrique Pereira (*)
Celebrar Kardec é sempre muito oportuno, especialmente por ocasião da data do natalício de Rivail (3 de outubro), sua identidade encarnatória mais recente. E entender Kardec, lendo a sua produção literária espirita por meio da lente do Professor Herculano (outro homenageado neste momento, em razão do seu centenário, comemorado em 25 de setembro de 2014) é extremamente útil para quem deseja entender melhor o seu papel de organizador e gerente do Espiritismo nascente.

Vale dizer que uma de suas principais obras, a Revue Spirite (Revista Espírita) é bastante desconhecida da porção majoritária dos que se dizem espíritas. Muitos sabem de sua existência, porque ela se inscreve no rol dos livros publicados por Kardec, mas não o compulsam, estudam ou sequer leem. A Revue, em verdade, é o periódico que ele editou em 12 volumes, de janeiro de 1858 (menos de um ano, portanto, do lançamento da primeira – e simplificada – edição de “O Livro dos Espíritos”, em 18 de abril de 1857, a qual continha 501 perguntas e respostas, diferentemente da versão revisada e definitiva, que é a segunda edição francesa, divulgada em 16 de março de 1860 que, por sua vez, contempla 1018, mais que o dobro da quantidade originária. O primeiro volume foi, assim, lançado no dia 1º de janeiro de 1858.

É na revista que Kardec empunha sua condição de gerenciador de todo o processo espírita, posto que utiliza as páginas dos, hoje, doze volumes anuais para apresentar suas experiências à frente do movimento de divulgação da Doutrina dos Espíritos (DE), marcantemente centrado nas viagens que empreendeu pela Europa àquele tempo, sua vasta correspondência com espíritas de várias partes do mundo, os diálogos travados, também por carta, com os críticos e os opositores da doutrina nascente e, mais do que isso, a verdadeira “experimentação” espiritista, cenário para a preparação e o surgimento de suas outras obras e a importante revisão das que ele havia publicado antes.

É por isso que, somando-nos a alguns estudiosos da missão do professor francês, já Codificador e Sistematizador da DE, cognominamos a Revue como O LABORATÓRIO DE KARDEC. No cadinho de suas páginas, meticulosa e carinhosamente compostas pelo Mestre – vale salientar, com as inúmeras dificuldades impostas pela limitação de equipamentos de seu tempo, a relativa precariedade econômica para um projeto editorial constante (como o vivenciado naqueles quase doze anos de publicação de obras) e a dependência da tração animal para o envio e recebimento de correspondências ou para o deslocamento físico daquele magistral homem pelas cercanias da França.

Kardec se revela na Revue em sua magnitude e excelência, caracterizadas pelo rigor metodológico (já por ele apresentado na composição da obra primeva, “O Livro dos Espíritos”, calcado no Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos – CUEE), verdade jornalística (pela transcrição verossímil das experiências e dos diálogos), postura dialógica (porquanto apresentava em resumo as ideias conflitantes ou antepostas ao Espiritismo para declinar, em seguida, o contraponto para permitir ao leitor a formação de sua convicção) e atitude corajosa (para lutar e defender os princípios que, pela lógica racional, havia abraçado). Acrescente-se a isso a vivência de valores genuinamente humanistas como o amor e o respeito ao próximo que se somam à sua vasta cultura de homem de letras e ciências, expressado em cada exemplar da Revue.

Nos seus milhares de páginas, Kardec descreve, uma a uma, suas lutas (dentro e fora do meio espírita) e suas vitórias, assim como sua resistência à calúnia, à mentira e à difamação, sobretudo por líderes religiosos católicos e protestantes (os seculares “inimigos” da filosofia espiritista), com destaque para a fé inabalável do Codificador (“só aquela que pode encarar frente a frente a razão em todas as épocas da Humanidade”). Todo o leitor que se debruça sobre os volumes da Revue tem a nítida impressão de estar vivendo ao lado do Codificador – e se indignando com muitas situações por ele enfrentadas e aplaudindo suas respostas e atitudes.

É com a Revue que Kardec assume a sua veia jornalística, pelo fato dele utilizar as páginas para explicar, à luz do conhecimento espiritista, os fatos que ocorriam à época, escrevia artigos doutrinários, refutava os detratores do Espiritismo e publicava novas mensagens mediúnicas. Costuma-se dizer que a coleção da Revue constitui a mais prodigiosa fonte de informações sobre o Espiritismo e o mais completo compêndio de instruções doutrinárias ao movimento.

Pode-se dizer com propriedade que a Revue foi um oportuno e essencial meio de divulgação da DE, utilizado como forma de expressão jornalístico-literária das novas ideias que vinham surgindo a partir da continuada pesquisa kardeciana, renovados ensinamentos e teorias, sempre colocados sob análise e discussão, antes de se constituírem em princípios ou axiomas.

Mais que sua mera leitura, tem-se como impossível o real conhecimento dos fundamentos espiritistas sem seu estudo, inclusive remissivo, já que em determinados momentos torna-se necessário compulsar as demais obras assinadas por Kardec para verificar em que pontos as mesmas foram organizadas ou revisadas. É aqui que devemos mencionar, novamente, o Professor Herculano Pires que, ao traduzir as obras kardecianas, diretamente do francês e com respeito ao pensamento do Professor Lionês, apõe observações, notas explicativas e textos complementares situando o leitor em relação à própria evolução, não só do pensamento, como da prática espírita de Monsieur Allan Kardec.

Acerca da Revue, assim ilustra o Professor Herculano (“A Pedra e o Joio”): “Só agora dispomos da coleção daRevista Espírita do tempo de Kardec, tão importante que ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessárias para o bom conhecimento da doutrina”.

É o próprio Kardec quem indica, no capítulo 3º, de “O Livro dos Médiuns”, a Revue como obra indispensável para o estudo da doutrina, aconselhando como ordem sequencial para tal estudo: 1º) “O que é o Espiritismo”; 2º)“O Livro dos Espíritos”; 3º) “O Livro dos Médiuns”; e, 4º) A coleção da “Revista Espírita”.

Neste particular, o primeiro dos livros indicados como de verdadeira introdução ao conhecimento espírita, os dois seguintes como fundamentais e, por fim, a Revista como obra complementar, no estrito sentido desta palavra, isto é, aquela que é direcionada a completar o ensino básico contido em “O Livro dos Espíritos” e em “O Livro dos Médiuns”.

Nas próprias palavras do Codificador, temos que a Revue é “Variada coletânea de fatos, de explicações teóricas e de trechos destacados que completam a exposição das duas obras precedentes, e que representa de alguma maneira a sua aplicação. Sua leitura pode ser feita ao mesmo tempo que a daquelas obras, mas será mais proveitosa e sobretudo mais compreensível após a leitura do Livro dos Espíritos” (grifos nossos).

A expressão grifada confere à Revista Espírita uma posição excepcional no conjunto da Codificação, qual seja a de um vero documentário, com caráter de relatório científico e histórico, praticamente os “Anais da Pesquisa Espírita” ao tempo de Kardec. E não somos nós que “inventamos” isso, pois ele mesmo iria declarar mais tarde, no resgate contido em “Obras Póstumas”: “A Revista foi até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte de nossas obras doutrinárias, constituindo os Anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário conservar o seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade” (Capítulo X, “Da Constituição do Espiritismo”).

Gostaríamos de salientar com muita ênfase esta referência do Codificador ao singular fato de que ele não recebeu a doutrina “pronta” do Mundo Espiritual, como muitos parecem supor – e, até, erroneamente, afirmam aqui ou alhures. A partir do contato com as mensagens espirituais recebidas em distintos momentos e por variados médiuns, cabendo o destaque, neste contexto, para a utilização de pessoas muito jovens, adolescentes até, como as Senhoritas Irmãs Baudin (Caroline e Julie), Ruth Celine Japhet e Ermance Dufaux, as quais se situavam dele fisicamente próximas, o mesmo foi estabelecendo racionalmente o conjunto de axiomas e princípios que depois ganharam o corpo de doutrina. Isto fica patente na expressão “todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo” para demonstrar a construção paulatina e sequencial do Espiritismo, a grande obra de Allan Kardec.

Merece menção a oportuníssima iniciativa da Federação Espírita Brasileira – que, a exemplo da Edicel detém direitos de publicação dos volumes da revista – em disponibilizar os arquivos digitais para download em seu site (www.febnet.org.br) toda a coleção (1858-1869) facilitando a disseminação desse importante conhecimento. No papel, isto é em edição física, são quase 7.000 páginas, o que torna sua aquisição, muitas vezes inviável economicamente para grande parte dos espíritas, já que se atesta este conjunto como conhecimento fundamental e indispensável à boa compreensão da Codificação Espírita.

Nestes nossos quase 32 anos de vivência espírita, posto que aderimos à Filosofia Espírita em 1981, já ouvimos de alguns companheiros atentos e estudiosos a seguinte expressão: “- Precisamos esclarecer essa questão. Nem que tenhamos de ler a Revista Espírita toda!”. Esta é a real dimensão da importância dos escritos kardecianos (uma produção genuína do Codificador, calcada em suas inúmeras reflexões sobre pontos tanto doutrinários como organizacionais, relativas ao – ainda incipiente – movimento espírita).

Durante mais de século, considerando que a introdução do Brasil no quadrante espírita se deu a partir de setembro de 1865 (com a publicação de artigos em jornal assinados por Teles de Menezes e a fundação, com a orientação deste, do primeiro centro espírita brasileiro, o “Grupo Familiar de Espiritismo”, no dia 17 desse mesmo mês) e a primeira edição da Revue com a tradução para o nosso vernáculo ocorreu apenas em 1966, o conjunto desses doze volumes foi tratado como simples raridade bibliográfica, acessível apenas a poucos privilegiados que a possuíam no original francês e dominavam este idioma. Mas a pobreza cultural do espiritismo brasileiro não para por aí. A indigência do movimento espírita está centrada no fato de que poucos conhecem sequer as chamadas “obras básicas” (mesmo considerando inapropriada essa expressão para enquadrar os cinco “principais” livros considerados pelos espíritas em geral [1]. E, os que conhecem, acabam compondo particularmente uma sequência de “importância” dos livros totalmente diversa da classificação dada pelo Mestre lionês, já referida neste ensaio. Outros tantos, ainda, são “espíritas de Evangelho” posto que, sem qualquer demérito ou redução da importância desse livro para o contexto total da DE, não guardam o salutar hábito de ler e estudar constantemente nem “O Livro dos Espíritos” nem “O Livro dos Médiuns” – repetimos, considerados essenciais para quem pretende ser versado no conhecimento espírita e a quase totalidade sequer abriu as páginas de “O que é o Espiritismo”. Imaginemos que uma pessoa que tivesse ouvido falar da DE e estivesse numa livraria qualquer, ao visualizar a capa com tais dizeres não ficaria provocada a comprar a obra, justamente porque ela, como o próprio título assim o indica, seria para quem desejasse conhecer “o que seria” o Espiritismo. Recordo-me, ainda, de quando estudante de primeiro grau, por analogia, ter sido apresentado à coleção “Primeiros Passos” da Editora Brasiliense, livros de bolso e bem resumidos, cujos títulos, em profusão de temas e alcance, eram justamente “O que é...” e havia um justamente sobre o Espiritismo.

Também soa curioso e, até, inacreditável que o Brasil, país onde se encontra o maior contingente populacional de espíritas no Mundo, mesmo que nem todos se afirmem como tal nem se qualifiquem em diferentes cenários e documentos essa condição, “[...] só agora a Revista Espírita seja colocada ao alcance do público, em tradução para a nossa língua” (diria Herculano, lá pelos meados da década de 1960).

Para Júlio de Abreu, o tradutor da Revue para a Editora Edicel, ela “[...] foi o seu mais importante instrumento de pesquisa, verdadeira sonda para a captação das reações do público, ao mesmo tempo que instrumento de divulgação e defesa da Doutrina. Mais do que isso, porém, constitui- se numa espécie de laboratório em que as manifestações mediúnicas, colhidas por todo o mundo, eram examinadas à luz dos princípios de O Livro dos Espíritos e controladas pelas experiências da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e pelas novas manifestações espirituais recebidas”, o que corrobora o que já afirmamos no presente texto.

Para ele, nós que ainda hoje nos maravilhamos ante algumas manifestações mediúnicas podemos encontrar os registros precedentes feitos à época do Codificador, com as judiciosas interpretações e as soluções para algumas problemáticas interpretativas. Foram onze anos e quatro meses de trabalho intensivo, sobretudo na sede do primeiro centro espírita do mundo, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE (mas não resumidas e subsumidas nela, já que o professor francês recebia documentos e informações tanto de grupos familiares quanto de centros e sociedades estrangeiras a ela ligadas) e Kardec nos ofertou a vivência diuturna que marca a História do Espiritismo, dentro do detalhado processo de seu desenvolvimento e propagação, ainda no século dezenove.

Retomando, ainda, à Abreu, podemos constatar a partir de sua explicação sobre o conjunto da Revue, que Kardec trata amplamente e de modo exaustivo várias das questões que haviam sido apenas “afloradas” nos livros iniciais da Codificação. E, pontua:

Problemas como os referentes à mediunidade curadora em seus vários aspectos; aos casos de obsessão e possessão; ao desenvolvimento mediúnico; aos métodos de trabalho prático e teórico; à legitimidade das comunicações e à prevenção das mistificações (que não são um problema espírita das atividades humanas na Terra); das vidas sucessivas e das formas de reencarnação consciente e inconsciente, neste e em outros mundos; da existência de espíritos não- humanos (que tem servido de arma para ataques de espiritualistas diversos contra o Espiritismo, simplesmente por desconhecerem a posição doutrinária no assunto) são todos esclarecidos de maneira viva na Revista”. [2]

Isto tanto pela transcrição de comunicações mediúnicas recebidas quanto pela análise ponderada e explicativa de Rivail, com inúmeros exemplos para as teses descortinadas.

Um valiosíssimo resgate que só o exame detalhado da Revista Espírita pode promover é o de que a prática genuinamente espírita, introduzida como sistemática e metódica pelo Codificador é a da EVOCAÇÃO de Espíritos, contrariando a “tese” do “espiritismo de senso comum” ou do “espiritismo de ouvi dizer” de que “o telefone só toca de lá (mundo espiritual) para cá”.

Kardec praticamente faz uma ATA das sessões da SPEE, registradas ao vivo por ele, resgatando as evocações experimentais, havendo registros minuciosos compostos por todas as perguntas e respostas no diálogo entre Kardec e cada Espírito manifestante, aduzindo todas as informações cruciais ao esclarecimento do assunto.

É por tudo isso que concitamos os espíritas para o resgate da Revue, justamente pelo manancial de informações que ela contém. Herculano, se vivo fosse, estaria escrevendo e palestrando sobre ela, alertando severamente os frequentadores e dirigentes espiritistas em face do abandono da coleção, com destacados prejuízos para o movimento espírita.

Nossa intenção, com este texto, é provocar o interesse dos espíritas sérios e dedicados para a eliminação desta lamentável lacuna. Esperamos atingir este objetivo e desejamos uma atenta leitura e investigação do conteúdo daRevue!



[1] “O Livro dos Espíritos”, “O Livro dos Médiuns”, “O Evangelho segundo o Espiritismo”“O Céu e o Inferno” e “A Gênese”.
[2] Interessante apor que Júlio de Abreu resgata itens preciosos contidos na coleção, como “[...] as comunicações de Espíritos que se apresentam como Gênio das Flores, Anjo das Crianças, os chamados elementares da Teosofia e do ocultismo. Capítulo dos mais importantes e estreitamento ligado às pesquisas parapsicológicas atuais, é o das manifestações de pessoas vivas”.


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