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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A FORTUNA DE ALLAN KARDEC

Escreve: Deolindo Amorim
Em: Julho de 2013



Já vem de muito longe a história de uma suposta fortuna de Allan Kardec. Por duas vezes, a bem dizer forçado pelas circunstâncias, escrevi sobre este assunto, não propriamente para defender a memória do Codificador do Espiritismo, porque uma vida tão impoluta não precisaria de defesa da posteridade, a esta altura de sua projeção, no tempo e no espaço; mas o fiz, confesso, por uma questão de respeito à verdade histórica.
 
Da primeira vez, toquei neste ponto, não me lembro quando, justamente para rebater uma insinuação maldosa, isto é, a de que Allan Kardec havia sido um “negociante falido”; da segunda vez, também através de um artigo de jornal, e já faz algum tempo, fiz uma réplica a certo jornalista, que, tendo passado uma temporada em Paris, de lá voltara com a “novidade”, dizendo que descobrira as origens da imensa fortuna de Allan Kardec.
 
No primeiro caso, o da falência comercial de Allan Kardec, a história já está mais do que esclarecida, a não ser para quem não tenha “olhos de ver”. Nem é preciso trabalho de erudição ou de pesquisa, pois a própria biografia de Allan Kardec, escrita por Henri Sausse, o que quase todo espírita conhece, porque está no Principiante Espírita, além de haver constituído obras especiais, conta o que se passou, na realidade, sem o mais leve deslustre para o nome do Codificador. Tinha, ele, em Paris, um Instituto de ensino, semelhante ao famoso Instituto de Pestalozzi, onde estudara na juventude, mas desse estabelecimento fazia parte na administração, como sócio de Kardec, um parente seu, com o vício de jogador incorrigível. Kardec, homem de boa fé, confiou no sócio', e este por sua vez, arruinou as finanças do Instituto. Resultado: Allan Kardec, que já estava casado com a professora Amélie Boudet, promoveu a liquidação e, não sendo homem de negócios, entregou a parte que lhe coubera, no fim de tudo, correspondendo a 45 mil francos a um amigo, aliás mau negociante. Foi esta a causa da falência de Allan Kardec. O amigo fizera maus negócios e o casal perdeu, assim, todas as suas economias.
 
Diz Henri Sausse: “Longe de desanimar com esse revés, o sr. e sra. Rivail lançaram-se corajosamente ao trabalho. Ele encontrou e pôde encarregar-se da contabilidade de três casas, que lhe produziram cerca de 7.000 francos por ano; e, terminando o seu dia, esse trabalhador infatigável escrevia à noite, ao serão, gramáticas aritméticas para estudos pedagógicos superiores e ainda fazia traduções”... Isto é o que se pode chamar uma falência honrosa.
 
Apesar disto, houve quem explorasse esse aspecto na vida de Kardec. Não há quem não saiba, por exemplo, que existe uma forma de falência fraudulenta ou intencional, promovida pelo indivíduo que não pode ou não quer liquidar os débitos e, por este meio, força a situação até chegar à falência; mas também existem muitos casos de falência por falta de jeito para o comércio. O fato, portanto, de alguém ser negociante falido não quer dizer, em todos os casos, que seja desonesto. Allan Kardec era um filósofo, um homem voltado para as coisas do espírito. Não podia, de forma alguma, dirigir os negócios de uma organização de caráter econômico. Qualquer outro, em suas condições, iria à falência, se deixasse os seus problemas filosóficos para se meter em negócios. Certos homens têm aptidão para movimentar dinheiro. Allan Kardec encerrou a transação honestamente. Como ele, vários outros homens de bem já ficaram arruinados materialmente por falta de habilidade para lidar com dinheiro. Esta circunstância é muito desvanecedora para a reputação de Allan Kardec.
 
Conheço um confrade nosso (não cito o nome), ainda bem firme entre nós, que preferiu perder tudo, ficar sem “eira nem beira”, e era negociante forte, a fim de salvar o seu nome. Houve uma crise na firma, alguns credores ainda lhe fizeram propostas de condescendência, mas o nosso confrade resolveu pagar tudo, ficar sem recurso algum, mas sair do comércio com o nome limpo, inatacável. Vive muito feliz, é um homem honrado, não tem sequer uma casa para morar, mas ninguém ousou nem ousará jamais levantar qualquer suspeita sobre o seu caráter. Era outro que não sabia negociar, e só se convenceu disto quando teve de enfrentar a crise comercial, de que se saiu com a dignidade intocável, embora sem dinheiro. Não é de admirar, portanto, que um homem como Allan Kardec, espírito afeito ao estudo, à meditação, aos problemas de educação, não tivesse êxito no comércio.
 
Vamos, agora, ao caso da riqueza de Kardec, descoberta por um jornalista. Diz ele que o codificador do Espiritismo ganhou altas somas de dinheiro com as suas obras. E se assim fosse, que mal haveria nisto? E se ele fosse realmente rico, não poderia ser um grande homem? Sim, recebeu o pagamento dos direitos autorais de seus livros didáticos, que foram muitos. É um direito.
 
Todo escritor recebe, legalmente, das casas editoras, a parte percentual dos direitos autorais. Alguns autores viviam disto. É certo que diversos escritores espíritas não recebem e nem querem receber coisa alguma pelos direitos autorais de suas obras doutrinárias. Se recebessem, não estariam cometendo nenhuma indignidade, pois os livros são produto de seu trabalho. Quando, porém, se trata de obra mediúnica, o caso muda de figura. Seja como for, os autores de obras espíritas, pelo menos no Brasil, geralmente abrem mão de qualquer vantagem financeira pelas edições de seus livros, em beneficio da Causa que abraçam. Acho que fazem muito bem.
 
É preciso notar, entretanto, que, antes de ser espírita, Allan Kardec já era autor de vários livros didáticos. Nada mais natural e mais justo, portanto, do que receber aquilo que lhe era devido pela venda de seus livros. Ainda assim, o Codificador não fez fortuna, não conseguiu acumular essa riqueza imaginária de que às vezes se fala. É verdade que, dentro de um padrão modesto vivia com independência, mas isto não é ser rico. Se não era um mendicante, também não era um abastado. Seus livros não dariam para fazer fortuna, porque nunca se ouviu dizer, em parte alguma do mundo, que um escritor ficasse rico somente com o produto de obras filosóficas ou de alta moralidade. Os livros que enriquecem de uma hora para outra, como os chamados “sucessos de livraria”, são de outro gênero, não cuidam de problemas profundos, não cogitam de coisas sérias, como educação, reforma moral do homem, vida espiritual etc.
 
No entanto, até hoje, depois de um século, ainda não falta, lá uma vez por outra, quem diga que Allan Kardec enriqueceu com as obras espíritas o que é uma inverdade gritante: Agora mesmo estou lendo a excelente edição especial da Revista Espírita, de Allan Kardec, traduzida pelo dr. Júlio Abreu Filho e publicada, em boa hora, pela Livraria Allan Kardec Editora (LAKE), de São Paulo. O volume correspondente a 1862 traz um artigo exatamente sobre Os Milhões do Sr. Allan Kardec. A história da suposta fortuna aparece aí, por inteiro, com toda a fidelidade. Pena é que não seja possível transcrever aqui todo o artigo.
 
Foi um padre, contemporâneo de Kardec, na França, o responsável pela falsidade. Disse o padre que conhecera Allan Kardec ainda pobre, vivendo em Lião (sua cidade natal), e agora, depois que se fizera espírita, ia encontrá-lo como um nababo, em Paris: carruagem com quatro cavalos, possuindo milhões em dinheiro, pisando “belos tapetes ‘Aubusson’”.
 
Dando resposta sobre a pessoa que lhe transmitira a notícia, Allan Kardec começa justamente assim: “Meu caro Sr., ri muito dos milhões com que, tão generosamente, me gratifica o sr. Padre V... Mais adiante, em termos um tanto incisivos, frisou o Codificador: Espiritismo não é, nem poderia ser um meio de enriquecer; ele repudia toda especulação de que pudesse ser objeto; ensina a fazer pouco caso do temporal (bens materiais), a contentar-se com o necessário e não procurar alegrias supérfluas, que não são o caminho do céu; se todos os homens fossem espíritas não teriam inveja, nem ciúmes, nem se despojariam uns aos outros.”
 
E o Codificador arrasa todos os pontos da história, fazendo ver, logo de início, que, embora filho de Lião, nunca residira naquela Cidade depois de adulto, pois passara a vida toda em Paris. Como poderia o sacerdote ter conhecido Kardec, pobremente, em Lião?...
 
Falando, especialmente, sobre a venda dos direitos autorais, que tem sido um motivo de insinuações descabidas até hoje, Allan Kardec respondeu de um modo categórico: “Não tenho que dar satisfação de meus negócios a ninguém”. Certo. Em todo caso, e para que não se ficasse pensando que ele realmente ganhara dinheiro com os seus trabalhos, Kardec esclareceu claramente: “Entretanto, para contentar um pouco os curiosos, que se deveriam meter apenas com o que é de sua conta, direi que, se tivesse vendido meus manuscritos, apenas teria usado do direito que todo trabalhador tem de vender o produto de seu trabalho; mas não vendi nenhum; alguns até dei pura e simplesmente, no interesse da causa, e que são vendidos como querem sem que me venha um tostão”.
 
Eis aí uma prova de que Allan Kardec era um homem sem ambições materiais, um espírito desprendido. Veja-se, ainda, esta enobrecedora declaração: “Para dar uma ideia de meus grandes lucros, direi que a 1.ª edição de ‘O Livro dos Espíritos’, que fiz POR MINHA CONTA e risco, não teve editor que dela quisesse encarregar-se e feitas as contas, esgotada a edição, vendidos uns exemplares, dados outros, rendeu-me cerca de quinhentos francos, como possa provar documentadamente”. E arremata: “Não sei que tipo de carruagem poderia ser comprada com isto”.
 
Antes de encerrar este artigo creio que é oportuno extrair da “Revista Espírita”, vol. de 1862, pág. 179, mais um trecho interessante e judicioso. Disse Allan Kardec: “Quanto ao lucro, que me pode vir da venda de minhas obras, não tenho que dar conta de seu montante, nem do emprego que lhe faço”. (Não nos esqueçamos de que ele era autor de outras obras, não-espíritas). “Certamente — continua Kardec —assiste-me o direito de o gastar como entender; entretanto, não sabem se tal produto tem uma destinação determinada, da qual não pode ser desviada; é o que saberão mais tarde... Por isso, deixarei memórias circunstanciadas sobre todas as minhas relações e todos os meus negócios. SOBRE TUDO NO QUE CONCERNE AO ESPIRITISMO, a fim de poupar aos cronistas os equívocos em que muitas vezes caem, ouvindo diz-que diz-ques de criaturas estúrdias, de más línguas, de gente interessada em alterar a verdade, às quais deixo o prazer de deblaterar à vontade, para que se torne mais evidente a sua má-fé”. (O que está em “caixa alta” é da iniciativa do autor deste artigo, não está na fonte).
 
Não há caráter mais puro, principalmente quando se trata de um idealista, que não esteja sujeito à maldade humana. É o ônus moral que recai sobre as almas sinceras. Eis aí, finalmente, contada por ele próprio, a história, ou lenda, da grande fortuna de Allan Kardec. Tinha Kardec realmente uma riqueza pouco comum: a riqueza do espírito, que é eterna.

Fonte: Anuário Espírita 1967, ano IV, nº 4. Órgão do Instituto de Difusão Espírita (IDE) – Araras-SP.
 
Deolindo Amorim nasceu em Baixa Grande-BA, em 23 de janeiro de1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.

Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras

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Planeta ELIO'S (Temas Espíritas)http://emollo.blogspot.com.br/
 

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