a partir de maio 2011

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

SOBRE A SAÚDE E A DOENÇA

Escreve: Ademar Arthur Chioro dos Reis


INTRODUÇÃO
 
Para definir a saúde e doença há muitas definições distintas. Mesmo para quem lida com o tema como profissional ou estudioso da área de saúde, não é fácil observar posições consensuais.
 
Dos modelos biomédicos, que reduzem a doença a alterações bioquímicas em nível celular, às mais elaboradas, como a proposta em 1949 pela Organização Mundial da Saúde, que define saúde como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”, percebe-se uma insuficiência conceitual e enorme dificuldade em se compreender a complexidade representada pelo binômio saúde-doença, ainda mais quando se considera o atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico, a transição demográfica e a mudança no perfil epidemiológico em praticamente todos os países e o impacto das relações intersetoriais sobre as condições de existência dos seres humanos, do ambiente e das próprias comunidades.
 
Com a mesma dificuldade, em diferentes momentos da história da humanidade, várias teorias foram formuladas para explicar a determinação do processo saúde-doença: mítica, natural, religiosa, miasmática, da unicausalidade, da multicausalidade e da determinação social do processo saúde-doença.
 
Este trabalho procura discutir distintos modelos existentes para definir o processo saúde-doença, as teorias formuladas para explicar a sua determinação e desenvolver uma análise sobre o tema a partir da obra de Allan Kardec, fundadora de uma certa visão de mundo denominada espiritismo, capaz de ampliar os paradigmas do processo saúde-doença e de seus determinantes.
 
Os modelos teóricos utilizados para explicar o processo saúde-doença e seus determinantes resultam em práticas de intervenção e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido. Portanto, um “modelo espírita” para conceituar e explicar a determinação da doença resulta, consequentemente, em posturas e práticas de intervenção alinhadas a essa corrente de pensamento. É desta maneira que a mediunidade, a obsessão, a reencarnação, a lei de causa e efeito, terapias energéticas oriundas do magnetismo e de filosofias esotéricas, expiações coletivas, entre outros temas, têm sido utilizados de maneira absolutamente acrítica ou deturpada para explicar afoita e inadequadamente a gênese das enfermidades, dos sofrimentos físicos, mentais e morais ou propor práticas de intervenção, muitas vezes se contrapondo ou em substituição às terapêuticas instituídas de base científica.
 
Uma concepção de saúde fundamentada na filosofia espírita parte, antes de tudo, do conceito de fraternidade e justiça social, envidando esforços para promover condições dignas de vida e acesso aos serviços de atenção à saúde (prevenção, promoção, assistência e reabilitação) a todos os cidadãos.
 
Entendo a saúde como uma responsabilidade do Estado, da sociedade e de cada um de nós, a quem cabe empreender mecanismos solidários de cuidado, individuais e coletivos, inclusive no tocante à proteção da natureza, destinados à promoção da saúde e ao alívio da dor e do sofrimento.
 
Sobretudo, o espiritismo se diferencia de outras correntes humanistas comprometidas com a vida, na medida em que agrega à nossa estrutura físico-mental a dimensão energética e espiritual, uma visão mais ampla da vida, capaz de trazer uma significativa contribuição para o progresso da humanidade.
 
Estas são algumas das abordagens relativas ao tema da saúde e da doença — sem nenhuma pretensão de esgotá-las ou tratá-las em toda a potencialidade — que pretendemos aqui analisar como nossa contribuição ao 10° Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita.
 
CONCEITO DE SAÚDE E DE DOENÇA
 
Usualmente, há certa tendência em definir saúde e doença por contraposição. Saúde é a ausência de doença. Doença é quando não se tem saúde. Naturalmente se trata de uma visão muito simplista, que não dá conta da complexidade do tema.
 
Existem modelos, como o biomédico, hegemônico no meio científico, que reduzem a doença às alterações bioquímicas que ocorrem em nível celular. Outras correntes tratam a doença como alteração ou desvio do estado de equilíbrio de um indivíduo com o meio.
 
As enfermidades podem também ser definidas como a incapacidade dos mecanismos de adaptação de um organismo para neutralizar os estímulos ou solicitações a que está sujeito, resultando em transtorno da função ou estrutura de qualquer parte, órgão ou sistema do organismo. Ou ainda como reação a uma lesão, moléstia ou enfermidade.
 
Alguns autores tratam a doença como uma entidade específica, que é a soma total das numerosas expressões de um ou mais processos patológicos. A causa de uma entidade mórbida e representada pela causa do processo patológico básico associado a importantes fatores causais secundários.
 
A palavra tem origem no latim dolentia e pode ser compreendida como o processo mórbido definido, com um conjunto característico de sintomas, que pode afetar o corpo inteiro ou qualquer de suas partes; sua etiologia, patologia e prognóstico podem ou não ser conhecidos.
 
Na Enciclopédia Britânica, a palavra disease é considerada “uma alteração do organismo da condição fisiológica normal, suficiente para produzir sinais e sintomas evidentes”. Duas complicações se impõem. A primeira, definir o que é normal. Nem sempre, em saúde, o conceito de normal é uma medida biológica. Muitas vezes descamba para medidas culturais e sociais. A segunda, como encarar os processos mórbidos que acometem as pessoas, muitas vezes com alterações histológicas e bioquímicas, fisiopatológicas, ou mesmo psicoafetivas e que ainda não ultrapassaram o horizonte clínico, portanto sem produzir durante meses, anos ou décadas sinais e sintomas?
 
Cada cultura produz, portanto, em contextos históricos específicos, determinados significados que resultam em distintas práticas. Veja-se o exemplo do grande Mahatma Gandhi, em 1923, quando afirma que “as indisposições, as doenças, não são nada mais do que um aviso da natureza, a qual nos adverte que as imundices foram se acumulando nesta ou naquela parte do corpo, e certamente seria sábio deixar que a natureza agisse, ao invés de cobrir a sujeira às custas de medicamentos”.
 
A saúde, por outro lado, origina-se do latim salutis: “salvação”“bom estado”“conservação”. É definida, por uns, como o estado normal das funções orgânicas e faculdades mentais. Ou ainda como o estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente o qual mantém características estruturais e funcionais do organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero e espécie) e para diferentes fases de seu ciclo vital. Outros, simplesmente, definem a saúde com “estado de estar firme no corpo e na mente; bem-estar, saudável, sadio”.
 
Na prática, costuma-se definir a saúde como o estado do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normal; o estado do que é sadio ou são. É comum, ainda, associar a definição de saúde à força, robustez ou ao vigor (“que bebê saudável!”, se diz de uma criança, ainda que com enormes chances de desenvolver hipertensão e diabetes na fase adulta). Utiliza-se a expressão também para a disposição do organismo (“que saúde tem essa empregada!”) ou a disposição moral ou mental das pessoas, sem obviamente esquecer do voto ou saudação que se faz bebendo à saúde de alguém (o brinde, que muitas vezes, em excesso, produz a dependência química e a cirrose hepática, entre tantas outras graves sequelas).
 
Em 1946, no contexto de reconstrução da Europa arrasada pela II Grande Guerra Mundial e sob forte inspiração da socialdemocracia europeia que se instalara em diversos países no velho continente no pós-guerra, a Organização Mundial de Saúde, órgão da ONU, por ocasião de sua instalação, formulou um novo conceito, o mais amplo, vago e subjetivo possível, para definir o que é saúde: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença” (OMS).
 
Percebe-se, assim, uma insuficiência conceitual e enorme dificuldade em compreender a complexidade representada pelo binômio saúde-doença, ainda mais quando se considera, como já destacamos na introdução, o atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico, a transição demográfica e a mudança no perfil epidemiológico em praticamente todos os países.
 
As doenças infectocontagiosas (a maioria pestilenciais) que assolavam todos os povos praticamente desapareceram do cenário dos países desenvolvidos. Restringem-se, atualmente, aos bolsões de pobreza dos países subdesenvolvidos (ou periféricos, em uma linguagem mais atual). As mudanças observadas na Europa e nos Estados Unidos a partir da Revolução Industrial e, mais particularmente, com o desenvolvimento do processo de urbanização e industrialização em massa teve forte impacto na mudança no perfil de morbimortalidade da população. Alterações na taxa de natalidade, diminuição da mortalidade infantil e aumento da expectativa média de vida foram sendo observadas, ainda que em ritmos surpreendentemente diferentes, em todos os cantos do planeta.
 
Dois modelos sobre saúde passam a ser disputados. Um deles liderado pelos EUA e copiado por um número pequeno de países — embora sua influência seja maior do que se possa imaginar — trata a saúde como mais um bem de consumo a ser regido pelas regras de mercado, ou seja, como valor de uso e de troca definidos pelas mãos invisíveis do mercado. Para estes, a saúde e a doença (a vida, portanto) constituem-se em uma mercadoria. Desta forma, compete ao mercado prover as necessidades de saúde e o acesso passa a ser um problema a ser resolvido pela lei da oferta e da procura. Têm direito à saúde as pessoas inseridas no mercado de trabalho formal ou que acumulam recursos para o pagamento por desembolso direto. As demais são tratadas como indigentes, como acontecia no Brasil até a Constituição de 1988, contando apenas com o apoio de benzedeiras, curandeiros, médiuns, magnetizadores ou de instituições de assistência beneficente, como as Santas Casas e os Hospitais Psiquiátricos espíritas, por exemplo.
 
Outros países, por outro lado, influenciados pelos ideais da socialdemocracia, do socialismo, do humanismo ou, simplesmente, por entenderem que mesmo na lógica do capital era necessário garantir a reprodução da força de trabalho e atenuar as pressões sociais mediante a concessão de “políticas públicas”, passaram a lidar com a saúde enquanto um direito social (com maior ou menor abrangência de acordo com cada contexto específico).
 
É o caso do Brasil. Fruto de intensa mobilização social, a população brasileira conquistou o direito à saúde com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Título VIII, capítulo II, seção II, Da Saúde), que em seu artigo 196 preconiza: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
 
Embora o sistema de saúde ainda esteja longe da qualidade esperada no cotidiano de milhões de pessoas, o conceito de saúde passa a ser assumido de forma ampliada (enquanto qualidade de vida), na medida em que depende de condições dignas de trabalho, de renda, moradia, saneamento, proteção ao meio ambiente, alimentação e nutrição, educação, liberdade, acesso e posse da terra, transporte, lazer e garantia de acesso às ações e serviços de saúde.
 
A saúde passou a ser entendida como direito social universal, direito de cidadania, que se confunde com o direito à vida. Desta forma, as ações e serviços de saúde são caracterizados como de relevância pública e enquanto direito social (direito à saúde) deve ser assegurado pelo Estado (no caso brasileiro pela criação de um Sistema Único de Saúde – o SUS).
 
A saúde, portanto, passa a ser compreendida como uma das condições essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei. O direito à saúde é inerente à pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo. E o dever do Poder Público de prover as condições e as garantias para o exercício do direito individual à saúde não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade (Código de Saúde do Estado de São Paulo, 1995).
 
É extremamente importante reconceituar saúde-doença pelas implicações objetivas e práticas na vida das pessoas. A partir de um conceito mais amplo, como aqui discutido, a assistência à saúde, prestada pelo Poder Público ou pela iniciativa privada, passa a ser entendida como instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo de seu potencial físico e mental, reconhecendo e salvaguardando os direitos do indivíduo, como sujeito das ações e dos serviços de assistência em saúde, possibilitando-lhe:
a.) Exigir, por si ou por meio de entidade que o representante e defenda os seus direitos, serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz;
b.) Decidir, livremente, sobre a aceitação ou recusa da prestação da assistência à saúde oferecida pelo Poder Público e pela sociedade, salvo nos casos de iminente perigo de vida.
c.) Ser tratado por meios adequados e com presteza, correção técnica, privacidade e respeito;
d.) Ser informado sobre o seu estado de saúde, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do quadro nosológico e, quando for o caso, sobre situações atinentes à saúde coletiva e formas de prevenção de doenças e agravos à saúde; e
e.) Ter garantido e respeitado o sigilo sobre os dados pessoais revelados.
O Código de Ética Médica em vigor no Brasil, de 1988, capta muito bem essa mudança ao afirmar:

“Todo ser humano, sem distinção de qualquer espécie seja de raça cor, sexo, língua, religião, ideologia, idade, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou condição sócio econômica, nascimento ou qualquer outra condição, tem direito a um padrão de vida que lhe assegure saúde e cuidados médicos. Entende-se por saúde não a ausência de doenças, mas o resultante das adequadas condições de alimentação, habitação, saneamento, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Deste conceito amplo significa a garantia pelo Estado dos direitos fundamentais de cidadania. Assim entendida a Saúde de uma comunidade não pode ser a ação isolada de uma única profissão, mas sim das atividades multiprofissionais. A medicina, enquanto profissão, tem por fim a promoção, preservação e recuperação da saúde, e seu exercício é uma atividade eminentemente humanitária e social. É missão do médico zelar pela saúde das pessoas e da coletividade, aliviar e atenuar o sofrimento de seus pacientes, mantendo o máximo de respeito pela vida humana, não usando os seus conhecimentos contrariamente aos princípios humanitários”.
 
Mesmo que ainda tão distante da prática médica cotidiana ou da generosidade e excelência proposta pelo SUS, há de se convir que essa concepção permite profundas mudanças no modo de conceber a saúde e a doença.
 
Chega-se à conclusão, entretanto, que nenhuma das definições acima é suficiente para explicar a complexidade do processo saúde-doença, ainda que restrito a sua dimensão biopsicossocial.
 
A verdade é que a saúde e a doença variam conforme o observador. São julgadas de forma diferente se quem faz análise é a própria pessoa, um parente ou amigos ou por profissionais de saúde (e quantas opiniões distintas permitam!).
 
É inegável, entretanto, que três componentes estão interligados. Na doença há um fato objetivo, corporal, uma alteração de algum órgão, aparelho, sistema ou função, mais ou menos demonstrável. Isso determina maior ou menor conhecimento do mal. Por fim, permite uma ideia e uma medida, derivadas do conhecimento, dos prejuízos, dos interesses da época. É, portanto, um juízo de valor, uma interpretação ética, além de científica (Berlinguer, 1988).
 
A doença é um fenômeno vital, uma das maneiras que a vida se manifesta em corpos organizados. Uma definição que não contrapõe a saúde e a doença diretamente, mas que as tornam aspectos inexoráveis da vida (mesmo que a doença, de alguma forma, tenha uma noção negativa). Daí preferir tratá-las pelo binômio saúde-doença.
 
Outra convicção é que a doença é um processo, ação e reação, mediação entre o conflito, agressão e defesa, uma luta constante entre a homeostasia e o desequilíbrio. Uma incapacidade permanente ou transitória de manter a homeostasia, o equilíbrio entre as funções mentais ou orgânicas. E que tem sempre um desenlace: a cura, a cronificação, a sequela ou a morte física (um início, uma história e uma conclusão, característica de algo processual).
 
Na verdade, é preciso refletir um pouco mais sobre os vários sentidos da doença. O que tem em comum um resfriado e a esclerose múltipla? Entre a hipertensão arterial e a Síndrome de Down? Um tumor e a diarreia? A esquizofrenia e a lesão por esforço repetido (LER)? E se consideramos as diferenças entre os indivíduos, os povos e o comportamento frente às doenças ao longo da própria história?
 
Certas doenças dominaram períodos específicos da história. Determinaram a sorte, o apogeu ou a derrocada de certas culturas. Influenciaram até mesmo a política, a cultura, a arte e a arquitetura. Abreviaram carreiras de gênios e personalidades que poderiam dar outros rumos ou sentidos à história da humanidade. A peste, no século 14, a tuberculose no século 19, a gripe espanhola, no início do século 20, assim como a AIDS, mais recentemente, são exemplos claros e inquestionáveis.
 
A questão toma outra dimensão, conforme já discutido anteriormente, quando se consideram as distintas chances de adoecer e morrer, mensuráveis já no momento da gestação, por exemplo, para futuros cidadãos que tiverem mães com baixa escolaridade ou nível de renda familiar. As nações, as classes, os indivíduos, são atingidos pelas doenças de forma muito distinta.
 
Se nenhum conceito é satisfatório para definir a doença ou explicar a sua causalidade, talvez seja necessário alargar a discussão, abrindo-se novas possibilidades, a partir de outras dimensões correlacionadas.
 
Pode-se abordar saúde-doença a partir de outros eixos, outras possibilidades, procurando compreender como assume diferentes significados e dimensões quando esse binômio é analisado enquanto sofrimento, diferenças e anomalias, perigos, sinais ou oportunidades, a partir dos estímulos que a enfermidade pode desencadear e o quanto pode influir na vida de um indivíduo, nas suas relações sociais e na sociedade. Mas isso será assunto a ser desenvolvido em outra oportunidade.
 
A DETERMINAÇÃO DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
 
A mesma dificuldade, em diferentes momentos da história da humanidade, se observa no tocante a explicação da causalidade das enfermidades. Várias teorias foram formuladas para explicar a determinação do processo saúde-doença.
 
As civilizações primitivas já se interrogavam sobre a origem das doenças, atribuindo aos elementos da natureza a responsabilidade pelo sofrimento e morte advindos das moléstias. Aos pajés, xamãs ou sacerdotes cabia a responsabilidade de operar os sistemas ritualísticos que poderiam operar a cura das doenças (ou uma colheita farta, muitos filhos, mais chuva ou qualquer outro evento considerado natural). É o que os estudiosos chamam de teoria mítica.
 
Uma das mais antigas teorias, formuladas a partir dos preceitos que deram origem à medicina tradicional chinesa, baseava-se na ideia de que as doenças fossem resultantes da ausência ou supressão de algum princípio vital. Esta concepção, fortemente influenciada pelo taoísmo e pelo budismo, resultou não apenas nos sistemas terapêuticos fundamentados na medicina oriental como também, recodificada com as bases ocidentais, no século 18, deu margem à fundamentação filosófica da Homeopatia, fundada por Samuel Hahneman.
 
A medicina da Grécia antiga introduziu a ideia de desarmonia dos fatores, desequilibrados entre si. A doença passaria a existir quando houvesse predominância de um elemento: úmido-seco, quente-frio, amargo-doce. A saúde era a isonomia ou igualdade, dizia Alameão, século 4 a.C., o primeiro a intuir que o cérebro é o órgão do pensamento. Hipócrates aprofundou e tornou mais complexa essa análise, sem dogmas e sem limites, procurando conhecer a fundo o modo particular como cada um reage às agressões e ao conceber a investigação da origem da doença (fundando a clínica) como forma de orientar a terapêutica adequada.
 
As obras de Galeano (129-210 d.C.) foram estudadas como textos sacros (por vezes escondida do Santo Ofício) até o Renascimento. Nela estavam contidas todo saber médico e a explicação para todos os problemas de saúde.
 
Durante o período medieval, quando os domínios da Igreja Católica se tornaram uma ameaça ao progresso da ciência e obscureceram práticas que se apoiavam em explicações naturais, sob a égide de Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho, a origem da doença passa a ser explicada pela presença estranha e nociva de corpúsculos de uma matéria peccans, matéria impura, demônios ou animais perversos (Berlinguer, 1988).
 
A doença foi frequentemente entendida, nesse longo período da história da humanidade (que ainda parece introjetado em nosso inconsciente coletivo) como sinal diabólico ou como punição divina frente aos pecados humanos, em geral, associada à sexualidade. Não é por menos, como indica Foucault, que os primeiros hospitais a se constituírem são exatamente as Santas Casas, em um período que a figura do médico é banida e substituída pelo padre (apoiada pela freira), afinal, o que estava doente era a alma...
 
A história dos hospitais nos dá ideia deste processo: até meados do século 19 o hospital não existia para curar (Foucault, 1986; Credídio, 1987). Era essencialmente uma instituição de assistência a pobres e inválidos. Ali eram abandonados os portadores de doenças, pois existia a possibilidade de contágio. O hospital possuía a função tanto de recolher o pobre, como de proteger o restante da população — leia-se: abastada — do perigo. Era lugar de alguém que necessitava de ajuda material e espiritual, afinal, estava morrendo. Eram os religiosos que dirigiam os hospitais, e realizavam a transição entre a vida e a morte.
 
Só a partir do século 17 é que o conhecimento sobre a saúde e a doença voltou a progredir, com Morgagni (anatomia-patológica) e, já no século 19, com Claude Bernard (fisiopatologia).
 
Entretanto, em virtude do quadro sanitário e epidemiológico marcadamente dominado pelas doenças pestilenciais, passou-se a predominar a teoria dos miasmas, crença compartilhada por grande parte do saber médico-científico do século 19, que acreditava que as febres epidêmicas e grande parte das doenças tinham origem na matéria vegetal e animal em putrefação, nas emanações das águas estagnadas. Parte dos médicos aderiu à teoria do contágio, muito embora, é importante ressaltar, o significado do mundo dos seres microscópicos só tenha sido desvendado a partir das descobertas de Pasteur e Koch, em 1870, até então prevalecendo a teoria da geração espontânea.
 
As descobertas da microbiologia, por meio do trabalho de Pasteur e Koch, permitiram “individualizar” a causa das doenças. Para todo efeito era necessário buscar uma causa. As doenças infecciosas eram produzidas por microrganismos e não pelas emanações miasmáticas. Agora a medicina ganhava status científico, livrando-se da tola prisão religiosa ou da fantasiosa e mística teoria dos miasmas e dos fluidos vitais.
 
Passava a vigorar a teoria da unicausalidade e a partir desta é possível conhecer os mecanismos de transmissão das doenças, formular e implementar medidas preventivas e higiênicas (profilaxia) para muitas enfermidades infecciosas (peste, malária, varíola, tuberculose etc.), com impacto considerável sobre chagas que assolavam a humanidade a séculos.
 
O êxito alcançado no final do século 19 e primeiras décadas do século 20 permitiu imaginar que o microscópio permitiria encontrar a solução para todos os problemas de saúde, por meio de soros e vacinas.
 
Como ensina Berlinguer (1988), não se levou em consideração, entretanto, “que cada condição de existência do homem pode igualmente transformar-se em fonte de doenças. Os mesmos fatores que permitem ao homem viver (alimento, ar, clima, habitação, trabalho, técnica, relações familiares, sociais etc.) podem causar doenças, se agem com determinada intensidade, se pesam em excesso ou falta, se agem sem controle”. Desta forma, um mesmo elemento pode assumir dois valores, sendo fonte de saúde ou razão de mal-estar. Segundo esse professor italiano, “a mesma ambivalência que circunda as causas de saúde ou de doença valem para as manifestações dos dois fenômenos”.
 
A definição demasiadamente ampla da OMS (saúde como bem-estar físico, mental e social), apresentada anteriormente, teve efeitos positivos por certo tempo, na medida em que ampliou a atenção para aspectos até então negligenciados: a dimensão mental e social dos seres humanos. Mas a extrapolação do seu significado, confundindo mal-estar mental e social com doença, tem levado a sociedade à práticas de medicalização (entregar a médicos e psicólogos a responsabilidade de resolver problemas relacionados à dificuldades de aprendizado ou a dependência à benzodiazepínicos, usadas sem critério para “tratar” dos que sofrem de perdas sentimentais, desemprego e outras frustrações ou problemas de ordem emocional, apenas para citar dois exemplos corriqueiros).
 
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, uma nova teoria para explicar a origem das doenças vai se consolidar, permanecendo hegemônica até os dias atuais. Trata-se da teoria da multicausalidade, formulada a partir de autores como MacMaholl, Leavel & Clark, fortemente fundamentada na teoria de sistemas, que ganha força nesse período em todos os ramos do conhecimento científico. Em síntese, procura explicar o processo saúde-doença como o “conjunto formado pelos fatores vinculados ao ambiente, ao agente etiológico e ao suscetível, dotado de uma organização interna que define as interações determinantes da produção de doença (um sistema epidemiológico)”(Rouquayrol, 2003).
 
O envelhecimento populacional, a industrialização e a urbanização tiveram impacto considerável sobre o perfil de morbimortalidade. Proporcionaram o aumento considerável, na medida em que as pessoas vivem mais, das doenças crônico-degenerativas (cardiovasculares, neoplasias, doenças metabólicas etc.), assim como os problemas decorrentes do trabalho (acidentes e doenças ocupacionais) e os problemas decorrentes da violência (acidentes automobilísticos, armas de fogo, armas brancas, suicídios etc.). Ao mesmo tempo, observou-se importante diminuição das chamadas doenças infecto-contagiosas.
 
A teoria da multicausalidade, entretanto, rapidamente foi capaz de promover alterações e adaptar-se às novas exigências teóricas e conceituais. O agente etiológico foi substituído na análise das doenças não infecciosas por “fatores de risco” (álcool, tabagismo, obesidade, stress, dieta, sedentarismo etc.). A noção de hospedeiro reformulada para a de suscetível, na medida em que é possível medir a probabilidade (estatisticamente significante) de desenvolver determinada enfermidade a partir da utilização de desenhos de pesquisa da epidemiologia e o uso da informática.
 
Esperava-se, entretanto, que a partir das consequências práticas desse modelo, reforçadas com o advento dos medicamentos, exames complementares cada vez mais sofisticados na área de patologia, imagem, medicina nuclear etc. e serviços terapêuticos que ampliaram consideravelmente a divisão social do trabalho em saúde, com o surgimento de novas profissões e modalidades assistenciais, houvesse efetivamente uma mudança no perfil epidemiológico das comunidades.
 
Esse processo efetivamente se deu em países desenvolvidos da Europa, da América do Norte e no Japão. No restante do mundo, entretanto, prevaleceu o quadro sanitário lastimável, como se pode observar na África, na Ásia e Oriente Médio, típico dos países europeus há dois séculos e meio atrás, ou um perfil epidemiológico de transição, com o observado em países como o Brasil, nossos vizinhos da América do Sul, o México e países do Leste Europeu, caracterizado pela predominância das doenças crônico-degenerativas como principais causas de morte, com altíssimos coeficientes de óbitos por causas externas (mortes violentas) e, embora já não tão significativas como no passado, a manutenção de elevados coeficientes de doenças infectocontagiosas, mesmo com a diminuição do número de óbitos.
 
Observando essa transição interrompida em países de Terceiro Mundo, intelectuais da América Latina formularam ao longo das décadas de 80 e 90 a teoria da determinação social do processo saúde-doença, a partir da crítica à teoria da multicausalidade.
 
Esses autores (Laurell, Breihl, Arouca, dentre outros), a partir da concepção de social enquanto conjunto de características que compõe o complexo das relações humanas em sociedade, propõem que o processo saúde-doença não deva ser entendido como uma relação imediata, direta, do tipo causa-efeito, entre o social e a doença. Ou seja, questionam a linearidade proposta pelo modelo hegemônico.
 
Para eles, a determinação do processo saúde-doença deve ser analisada em dois planos: o das condições econômicas, sociais e políticas, em que ocorre o processo; e, as práticas de intervenção e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido. Entendem que as condições sociais gerais e as práticas históricas definidas de intervenção refletem-se na explicação para o processo saúde-doença, condicionando o próprio saber, ou seja, a visão teórica do que seja o tema (e, obviamente, as explicações e práticas dele decorrentes).
 
Demonstram, claramente, que as doenças e óbitos prevalecem de maneira distinta nas diferentes classes socais, produzindo um padrão de iniquidade e injustiça social.
 
Nessa teoria o social não pode ser apresentado como uma variável ao lado de outros fatores causais da doença, mas como um campo onde a doença adquire um significado específico. O social deve aparecer como relações sociais de produção, responsáveis pela posição de segmentos da população na estrutura social, e não como indicador de consumo. O estado sanitário de uma população é a expressão da evolução das condições de vida das classes sociais, num dado período. As condições de vida, por outro lado, são reflexo das condições mais gerais de produção e distribuição dos bens e do acesso a serviços nessa sociedade. Na prática, a partir desta teoria, os profissionais de saúde e a sociedade são chamados a responder a conjunturas sociais específicas, pois enquanto prática coletiva, as ciências da saúde devem intervir no próprio social e este fato se reflete nos resultados (assistência, produção de conhecimento etc.).
 
Entretanto, assim como apontado para a definição do processo saúde-doença, parece-nos necessário reconhecer que as teorias são também insuficientes para dar conta da complexa tarefa de apontar a origem das enfermidades.
 
Mudam o conhecimento e os valores científicos e com eles a cultura geral. Muda o poder, e com ele o juízo de valores da sociedade sobre temas como saúde-doença e sua determinação.
 
A SAÚDE E A DOENÇA EM KARDEC
 
Mesmo com toda a objetividade empregada por Allan Kardec na construção do corpo de conhecimentos da filosofia espírita, a partir de “O Livro dos Espíritos” (1857) e “O Que é o Espiritismo” (1859), é necessário reconhecer que o mestre lionês trata do tema da saúde e da doença apenas tangencialmente.
 
A expressão saúde é utilizada em sua principal obra, fundadora de uma certa visão de mundo denominada espiritismo, apenas sete vezes. Doença, moléstia ou enfermidade, apenas onze vezes. Ainda sim em contextos nem sempre objetivamente diretos para tratar destes temas. Isso não impede, entretanto, que a filosofia espírita seja capaz de ampliar significativamente os paradigmas do processo saúde-doença e de seus determinantes.
 
Inevitavelmente é preciso reconhecer que Kardec concebeu o processo saúde-doença, na visão espírita, em uma perspectiva vitalista. A alma, imaterial e individual, que existe em nós e sobrevive à morte do corpo físico, necessita do corpo físico para cumprir sua jornada evolutiva. Esse corpo, por sua vez, é animado pelo princípio vital, “princípio da vida material e orgânica, qualquer que seja a fonte donde promane, princípio este comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem” (OLE, Introdução).
 
Como já discutimos em outro momento, Kardec trabalha com duas hipóteses para explicar o fenômeno vital: como propriedade da matéria ou residente em um fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada ser absorveria e assimilaria uma parcela durante a vida. Em sua obra A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo”, acaba definindo-se pela segunda hipótese. Pois bem, é esse fluido vital que garante a vitalidade dos órgãos, devendo ser renovado constantemente para que haja a manutenção do estado de saúde (do ponto de vista orgânico). A perturbação ou escassez desse fluido levaria ao desenvolvimento das enfermidades. Mais ainda, da mesma maneira que a presença do fluido vital anima a matéria, a morte física seria consequência exatamente do esgotamento deste fluido vital, a cessação do princípio vital.
 
O espiritismo dá um sentido mais amplo ao processo saúde-doença, ao considerar a dimensão espiritual e corpórea de cada criatura. Na primeira, mais sutil, operam as estruturas psíquicas, mentais, cognitivas e a vontade. A segunda, formada pelo complexo físico-químico e energético. As duas profundamente interligadas, constituindo o indivíduo.
 
Como há uma interligação entre a dimensão material e a espiritual, a influência que um exerce sobre outra é imensa. Kardec atribui ao perispírito significativa importância na fisiopatologia das enfermidades, na medida em que é o elo (energético) entre o espírito e a matéria. A partir de Kardec, diversos outros autores espíritas passarão a construir uma fundamentação que toma o perispírito como o modelo central explicativo para o surgimento das enfermidades.
 
Como a quantidade deste fluido é diferente entre os indivíduos e pode ser transmitida para outros seres vivos, passa a dar sentido as práticas já existentes que se pautavam no Vitalismo e no Magnetismo, como a homeopatia, os passes fluídicos e a água fluídica, agora associados à mediunidade e outros práticas genuinamente espíritas.
 
Na pergunta 192, Kardec questiona os espíritos se “pode alguém, por um proceder impecável na vida atual, transpor todos os graus da escala do aperfeiçoamento e tornar-se Espírito puro, sem passar por outros graus intermédios?”, obtendo a seguinte resposta: “Não, pois o que o homem julga perfeito longe está da perfeição. Há qualidades que lhe são desconhecidas e incompreensíveis. Poderá ser tão perfeito quanto o comporte a sua natureza terrena, mas isso não é a perfeição absoluta. Dá-se com o Espírito o que se verifica com a criança que, por mais precoce que seja, tem de passar pela juventude, antes de chegar à idade da madureza; e também com o enfermo que, para recobrar a saúde, tem que passar pela convalescença. Demais, ao Espírito cumpre progredir em ciência e em moral. Se somente se adiantou num sentido, importa se adiante no outro, para atingir o extremo superior da escala. Contudo, quanto mais o homem se adiantar na sua vida atual, tanto menos longas e penosas lhe serão as provas que se seguirem.”
 
É possível perceber que os espíritos, embora não tratem diretamente da questão, concebem a saúde-doença como um processo natural da vida, tal qual os diferentes estágios etários ou, de forma mais profunda, a evolução espiritual que se dá a partir das experiências acumuladas e do desenvolvimento intelecto-moral que o espírito vai acumulando progressivamente a cada existência.
 
A segunda menção à saúde pode ser encontrada nos comentários de Kardec à pergunta 707, tratando da Lei de Conservação. Nesta questão, Kardec pergunta aos espíritos:

“É frequente a certos indivíduos faltarem os meios de subsistência, ainda quando os cerca a abundância. A que se deve atribuir isso?
Ao egoísmo dos homens, que nem sempre fazem o que lhes cumpre. Depois e as mais das vezes, devem-no a si mesmos. Buscai e achareis; estas palavras não querem dizer que, para achar o que deseje, basta que o homem olhe para a terra, mas que lhe é preciso procurá-lo, não com indolência, e sim com ardor e perseverança, sem desanimar ante os obstáculos, que muito amiúde são simples meios de que se utiliza a Providência, para lhe experimentar a constância, a paciência e a firmeza”
, respondem os espíritos.
 
Vejamos o comentário de Kardec: “Se é certo que a Civilização multiplica as necessidades, também o é que multiplica as fontes de trabalho e os meios de viver. Forçoso, porém, é convir em que, a tal respeito, muito ainda lhe resta fazer. quando ela houver concluído a sua obra, ninguém deverá haver que possa queixar-se de lhe faltar o necessário, a não ser por própria culpa. A desgraça, para muitos, provém de enveredarem por uma senda diversa da que a Natureza lhes traça. É então que lhes falece a inteligência para o bom êxito. Para todos há lugar ao Sol, mas com a condição de que cada um ocupe o seu e não o dos outros. A Natureza não pode ser responsável pelos defeitos da organização social, nem pelas consequências da ambição e do amor-próprio. Fora preciso, entretanto, ser-se cego, para se não reconhecer o progresso que, por esse lado, têm feito os povos mais adiantados. Graças aos louváveis esforços que, juntas, a Filantropia e a Ciência não cessam de despender para melhorar a condição material dos homens e mal grado ao crescimento incessante das populações, a insuficiência da produção se acha atenuada, pelo menos em grande parte, e os anos mais calamitosos do presente não se podem de modo algum comparar aos de outrora. A higiene pública, elemento tão essencial da força e da saúde, a higiene pública, que nossos pais não conheceram, é objeto de esclarecida solicitude. O infortúnio e o sofrimento encontram onde se refugiem. Por toda parte a Ciência contribui para acrescer o bem-estar. Poder-se-á dizer que já se haja chegado à perfeição? Oh! Não, certamente; mas, o que já se fez deixa prever o que, com perseverança, se logrará conseguir, se o homem se mostrar bastante avisado para procurar a sua felicidade nas coisas positivas e sérias e não em utopias que o levam a recuar em vez de fazê-lo avançar”.
 
A situação sanitária (Rosen, 1979), resultante do processo conturbado em que se dava a urbanização e que em última instância traduzia a miséria social que proliferava nas cidades emergentes, era caracterizada por péssimas condições de higiene, promiscuidade, grandes epidemias, acidentes de trabalho, desnutrição, enfim, de uma massa de trabalhadores muito pobre. Pobreza esta, componente e retrato de uma população imensa e mendiga, com condições propícias para criar a doença, a delinquência, o banditismo, a violência e a prostituição.
 
Neste cenário, as classes dirigentes europeias, influenciadas pelos ideais mercantilistas e preocupadas em aumentar o poder nacional, tiveram que eleger o trabalho como elemento essencial de geração de riqueza, tornando necessária a formulação de políticas de saúde que enfrentassem as grandes epidemias, a doença e a morte, evitando perdas de produtividade e assegurando o crescimento populacional e o fornecimento da força de trabalho; questões centrais para o desenvolvimento do capitalismo (Costa, 1986).
 
Na França, no período que compreende fins do século 18 e a primeira metade do século 19, o “movimento higienista” traduziu, de certa forma, a resposta social ao perigo representado pela miséria reinante. As medidas realizadas foram, primeiro, no sentido da efetuação de vigilância intensa da natalidade (estímulo ao crescimento), sobre a mortalidade, aos projetos de reclusão, prevenção, assistência aos pobres e higienização das cidades, principalmente dos cemitérios e matadouros (Foucault, 1986). Secundariamente, no controle da circulação, não dos indivíduos, mas das coisas. Essencialmente da água e do ar, já que a teoria miasmática ainda era hegemônica, ocorrendo intervenções na higienização das cidades, principalmente em Paris. Construíram-se corredores de ar, avenidas etc. Mesmo limitada cientificamente, a prática sanitária demonstrou grande permeabilidade e aplicação nos programas de prevenção, de medidas de engenharia sanitária e saneamento do meio ambiente.
 
Essas intervenções eram realizadas e implementadas pelas academias de ciências (de médicos, químicos e biólogos), tendo o Estado como grande estimulador das ações em prol da saúde pública, fornecendo pioneiramente o atendimento médico – ainda coletivo – àquela multidão que, até então, não possuía condições de ter orientação médica individual devido ao seu alto custo e a ineficácia de uma prática inconsistente e altamente lesiva. Cabe ressaltar que a prática cirúrgica ainda não havia sido incorporada à prática médica, o que só ocorreu após o advento da anestesia. Já as práticas medicamentosas eram extremamente limitadas e agressivas.
 
A Saúde Pública, enquanto Sanitarismo, configurou neste período aquilo que foram as práticas sanitárias, restringindo-as a um conjunto de ações sobre os fatores que foram encarados como responsáveis pelo aparecimento da doença coletivamente, e identificados com o meio urbano, que foi reduzido à disponibilidade maior ou menor das condições adequadas de moradia, esgoto etc. O cuidado médico individual não tinha a saúde como objeto, mas a doença e, por isso, foi tido como limitado, dentro da visão miasmática.
 
Após a segunda metade do século 19, período em que surge o espiritismo, os Estados europeus já garantiam uma intervenção considerável, em termos de políticas sociais, representada de um lado pelo cuidado ao pobre, de outro, pela implementação de medidas de proteção e controle do ambiente, bem como das doenças transmissíveis e das epidemias (Donnangelo, 1975). A resolução em parte destes graves problemas, a pobreza e as condições sanitárias, juntamente com o desenvolvimento de um novo referencial teórico para a explicação da determinação da causalidade do processo saúde-doença, bem como a perspectiva concreta de intervenção que proporcionaram, explicam, em parte, o recrudescimento das políticas sanitárias e a supremacia da assistência individual.
 
A questão passa a ser analisada sobre outro ponto de vista por Kardec a parir da Lei de Conservação, quando trata das privações voluntárias e mortificações. Ali, questiona os espíritos se esta lei obriga o homem a prover às necessidades do corpo, obtendo como resposta uma afirmativa, na medida em que os espíritos avaliam que “sem força e saúde, impossível é o trabalho.”. Na verdade, o papel que desempenha o trabalho no processo evolutivo dos espíritos é central na tese espírita. É por meio dele que podemos transformar a nossa realidade e galgar importantes experiências em nossa trajetória evolutiva. Daí que, sem a saúde, queda-se limitado o espírito em atuar plenamente, com toda sua potencialidade. De alguma forma, poder-se-ia imaginar que essa tese, muito próxima à concepção da Reforma proposta por Calvino e Lutero, atenderia plenamente as necessidades do emergente sistema capitalista.
 
Não obstante, é inegável que a filosofia espírita, da mesma forma que coloca o trabalho como elemento essencial para o processo evolutivo, dá enorme importância à caridade, na medida em que delega a responsabilidade aos mais fortes (hígidos, sadios, abastados etc.) de cuidar dos mais fracos. Mais ainda, dá novo sentido às dificuldades enfrentadas pelos deficientes e para o sofrimento advindo da doença e da incapacidade, pois essas situações propiciam oportunidades de aprendizado para os portadores de deficiências, enfermos, familiares e cuidadores (profissionais de saúde ou não), no exercício da caridade, da benevolência, da doação e da paciência (ou resignação, como querem os cristãos, embora possa assumir essa expressão conotação excessivamente conservadora).
 
Kardec procura, ainda, reforçar o compromisso que a sociedade deve ter com aqueles que são incapazes de cuidar de si próprios. Na pergunta 930, preocupa-se com as “pessoas que se veem na impossibilidade de prover às suas necessidades, em consequência de moléstias ou outras causas independentes da vontade delas”. O ensinamento espírita, neste caso, reforça a concepção de saúde enquanto direito humano, um direito social, na medida em que os espíritos afirmam: “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.”, ideia de enorme generosidade complementada pelo judicioso comentário de Kardec: “Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário. Porém, suas próprias faltas são frequentemente resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e ele próprio também será melhor.”
 
Na questão 722, Kardec, ainda no contexto da Lei de Conservação, aponta para a discussão sobre alimentação, questionando se seria“racional a abstenção de certos alimentos, prescrita a diversos povos?”. Os espíritos afirmam categoricamente: “Permitido é ao homem alimentar-se de tudo o que lhe não prejudique a saúde (...).” Na questão seguinte argui explicitamente os espíritos se a alimentação animal para os homens é contrária à lei da Natureza. Ao que respondem: “Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame a sua organização.”
 
A filosofia espírita, na medida em que não prescreve o que é certo ou errado, não impõe dogmas ou punições; remete à livre consciência de cada um as escolhas que devam fazer para tratar das mais variadas questões, apontando a necessidade de equilíbrio e bom-senso.
 
O espiritismo propõe uma superação da concepção de que saúde e doença são regalias ou castigos, respectivamente, proporcionadas por um Deus mesquinho e vingativo. Na pergunta 964 de “O Livro dos Espíritos”, Kardec lança o seguinte questionamento: “Mas, será necessário que Deus atente em cada um dos nossos atos, para nos recompensar ou punir? Esses atos não são, na sua maioria, insignificantes para Ele? A resposta fornecida pelos espíritos não deixa margem de dúvidas para outro tipo de interpretação: “Deus tem suas leis a regerem todas as vossas ações. Se as violais, vossa é a culpa. Indubitavelmente, quando um homem comete um excesso qualquer, Deus não profere contra ele um julgamento, dizendo-lhe, por exemplo: Foste guloso, vou punir-te. Ele traçou um limite; as enfermidades e muitas vezes a morte são a consequência dos excessos. Eis aí a punição; é o resultado da infração da lei. Assim em tudo.”
 
No comentário à questão 714, Kardec faz a respeito judicioso comentário: “O homem, que procura nos excessos de todo gênero o requinte do gozo, coloca-se abaixo do bruto, pois que este sabe deter-se, quando satisfeita a sua necessidade, Abdica da razão que Deus lhe deu por guia e quanto maiores forem seus excessos, tanto maior preponderância confere ele à sua natureza animal sobre a sua natureza espiritual. As doenças, são, ao mesmo tempo, o castigo à transgressão da lei de Deus”.
 
Ressalte-se que Kardec afirma que as enfermidades têm, além de outros determinantes, uma dimensão de transgressão às leis naturais (de Deus), mas não diz que se trata de um castigo imposto por Deus, o que equivocadamente aproximaria à tese espírita de concepções religiosas mais conservadoras.
 
A quarte parte de “O Livro dos Espíritos” trata (ainda que indiretamente) do processo saúde-doença, tanto na dimensão terrena quanto na vida no mundo dos espíritos.
 
Na pergunta 927, Kardec afirma “que à felicidade, o supérfluo não é forçosamente indispensável, porém o mesmo não se dá com o necessário. Ora, não será real a infelicidade daqueles a quem falta o necessário?” Os espíritos, entretanto, afirmam: “Verdadeiramente infeliz o homem só o é quando sofre a falta do necessário à vida e à saúde do corpo. Todavia, pode acontecer que essa privação seja de sua culpa. Então, só tem que se queixar de si mesmo. Se for ocasionada por outrem, a responsabilidade recairá sobre aquele que lhe houver dado causa.”
 
Abrem-se, a partir destas possibilidades, diferentes entendimentos, que muito avançam ao encontro da teoria da determinação social do processo saúde-doença, embora com uma amplitude ainda maior. A enfermidade pode sim ser explicada pelas escolhas, atitudes, hábitos e distintos modos de viver que cada um assume ao longo de sua(s) vida(s). O hábito de fumar, beber, os excessos físicos e alimentares, a atividade sexual desregrada e promíscua, o uso de drogas, a displicência em relação ao controle de peso, ao sedentarismo ou de uma doença preexistente são exemplos objetivos de situações em que nós mesmos acabamos “determinando” as consequências. É a lei de causa e efeito agindo, sem determinismo, simplesmente operando em harmonia com o livre-arbítrio que cada um de nós temos.
 
Na medida em que a vida e a morte constituem-se em um processo contínuo e que cada espírito carrega em sua consciência marcas, remorsos, culpas, dores e arrependimentos de erros ou oportunidades desperdiçadas, é possível imaginar que algumas enfermidades possam ter forte influência psíquico-energética, ou seja, de alguma forma são derivadas ou se impõem como mais um dos fatores de risco para o surgimento da enfermidade (que pode ou não ocorrer, dependendo das circunstâncias). É possível imaginar, por exemplo, e sem que se constitua em uma regra inexorável, que um espírito suicida, extremamente perturbado, sofra desequilíbrio energético tão intenso que seja capaz de interferir “naturalmente” no processo de desenvolvimento embrionário, favorecendo o surgimento de uma deficiência mental.
 
Mas os espíritos, nessa mesma resposta citada anteriormente, dão abertura para outras possibilidades explicativas, tão coerentes e possíveis quanto as que mencionamos acima. Se a privação da saúde for “ocasionada por outrem, a responsabilidade recairá sobre aquele que lhe houver dado causa.” É possível que um casal, dependente químico de drogas, gere uma criança com deficiências físicas e mentais. Neste caso, não é possível imaginar que a responsabilidade seja necessariamente do espírito reencarnante. Um jovem dirige seu carro em alta velocidade, completamente alcoolizado, perde o controle da direção e atropela, mata e aleija diversas pessoas. A responsabilidade só deve ser atribuída ao condutor irresponsável, que assumirá as responsabilidades advindas de seu insano desatino à justiça dos homens e à própria consciência, maneira implacável e natural pela qual opera a justiça divina. Um industrial sabe que sua fábrica polui o ar e produz milhares de casos de doenças respiratórias. A responsabilidade é sua, em virtude de sua ganância sem limites, ou dos enfermos cidadãos indefesos? Parece-nos que o espiritismo aponta claramente para uma concepção que trata a saúde e a doença a partir da perspectiva da justiça social.
 
É Kardec que nos orienta, no Ensaio Teórico das Sensações nos Espíritos“Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós; muito mais vezes, contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que lhe teria sido possível evitar. Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações se forraria”. E acrescenta que o mesmo se dá com o Espírito, embora livre das dores de ordem física.
 
Uma visão sem regras, mas natural, dentro das muitas possibilidades experienciadas em cada situação. Assim é a visão natural da vida, da saúde, da doença e da morte que se deve apreender a partir da filosofia espírita. Nada de castigos, mas em cada situação, independente da responsabilidade causal, mais uma oportunidade de crescimento intelecto-moral.
 
Um enorme consolo, um alento proporcionado, acima de tudo, pela certeza no futuro. O Espiritismo permite compreender como a vida física é importante, mas ao mesmo tempo passageira. Como é acalentador saber que nenhum sofrimento é eterno (OLE, p. 1009). Como diz a comunicação atribuída ao espírito de Santo Agostinho (OLE, p. 919): “Que é esse descanso de alguns dias, turbado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o homem de bem?” Uma certeza que vai se deslumbrando a partir do processo de autoconsciência, das conquistas advindas do desenvolvimento intelecto-moral.
 
O processo saúde-doença assume, portanto, a partir da visão espírita, diversos significados que não são excludentes e não se conformam em regras a serem absolutizadas.
 
A doença pode se expressar, como já afirmamos anteriormente, em distintas situações, como sofrimento, diversidade, perigo, sinal, estímulo ou oportunidade. Por vezes em profundas e complexas combinações.
 
A despeito das formulações contidas nas obras básicas do espiritismo, entretanto, pensadores espíritas (encarnados e desencarnados) e o movimento espírita de matiz religioso, de maneira geral, a partir do sincretismo entre o referencial kardequiano e outras correntes de pensamento religioso e filosófico, em particular o judaísmo e o cristianismo, terminam concebendo um olhar sobre a doença e a saúde que se opõem à visão evolucionista e libertadora de homem e de mundo que se pode apreender a partir da filosofia espírita.
 
Os modelos teóricos utilizados para explicar o processo saúde-doença e seus determinantes resultam em práticas de intervenção e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido. Portanto, um “modelo espírita” para conceituar e explicar a determinação da doença resulta, consequentemente, em posturas e práticas de intervenção alinhadas a essa corrente de pensamento.
 
Um modelo espírita de saúde-doença, impregnado de concepções equivocadas, determinísticas, em que os processos mórbidos são desencadeados pela punição divina aos erros cometidos em outras existências, em uma pena de talião sem fim, resulta em práticas conservadoras e adequadas a esta visão.
 
O fatalismo e o determinismo pretendem a tudo explicar. Atribui-se as doenças às faltas do passado. A mediunidade de cura é tratada como missão divina. Há um endeusamento de médiuns de cura e um superdimensionamento do papel de determinados espíritos, como Bezerra de Menezes e o dr. Fritz.
 
Até a obtenção de processos de cura ou a melhoria observada frente aos processos mórbidos são encarados fanaticamente como obtenção de moratória divina (vinculada a mérito moral), enviesando a justiça divina ou o livre-arbítrio das criaturas.
 
Práticas inaceitáveis, como promessas de curas e exploração de mídia, substituição ou interrupção de tratamento médico, utilização de objetos perfurocortantes, prescrição de drogas e medicamentos (inclusive plantas) sem autorização médica, mercantilização do tratamento mediúnico e a própria ausência de acompanhamento dos resultados passam a fazer parte do cotidiano do movimento espírita (e são utilizadas de forme proselitista, no sentido de trazer maior número de adeptos).
 
É desta maneira que a mediunidade, a obsessão, a reencarnação, a lei de causa e efeito, vegetarianismo, terapias energéticas oriundas do magnetismo e de filosofias esotéricas, expiações coletivas, entre outros temas, têm sido utilizados de maneira absolutamente acrítica ou deturpada para explicar, afoita e inadequadamente, a gênese das enfermidades, dos sofrimentos físicos, psíquicos, mentais e morais ou propor práticas de intervenção, muitas vezes se contrapondo ou em substituição às terapêuticas instituídas em bases científicas.
 
O espiritismo não despreza, ainda que secundarize o impacto frente a tudo o quanto foi aqui exposto, o potencial da própria mediunidade de cura, prática muito antiga e natural, a partir do “dom que possuem certas pessoas de curar pelo simples toque, pelo olhar, mesmo por um gesto, sem o concurso de qualquer mediação”, como nos ensina Kardec em “O Livro dos Médiuns”. Aponta o potencial e as possibilidades advindas do magnetismo (quando ocorre a ampliação da “força magnética” do médium), ou a intervenção de uma outra individualidade (“potência oculta”), representada pela ação dos espíritos.
 
Leva em consideração a ação mental-intuitiva, tanto do paciente como de outros sujeitos encarnados e desencarnados que se dispõe, por meio da vontade, a se colocar como instrumento de apoio aos que sofrem ou estão enfermos. Ou ainda a ação “direta” sobre o mundo material (energética).
 
Potencializa outras possibilidades, como as emissões energéticas próximas (passe) ou à distância, com a qual conta com a ação do encarnado, a ação combinada médium-espírito ou a ação dos espíritos sem a participação do médium (utilizando os elementos da natureza).
 
Portanto, o espiritismo, sem se contrapor a visão científica de base materialista, abre a possibilidade para a utilização racional de práticas e cuidados à saúde complementares: terapias energéticas, prescrições mediúnicas, mediunidade de cura, outros usos da mediunidade no tratamento da obsessão e os problemas de origem espiritual.
 
Obviamente é necessário levar em consideração, na ação complementar dos espíritos, que estas estão sujeitas à ação do efeito placebo e de outras interferências. Mas há evidências científicas acumuladas que demonstram a utilidade das emissões energéticas, do passe, da prece e da ação mediúnica curadora, particularmente quando são utilizadas em associação terapêutica positiva.
 
Devemos ser a favor de todo e qualquer benefício efetivo que possa satisfazer nossas necessidades, melhorar a qualidade de vida, aliviar o sofrimento e proporcionar prazer e felicidade. Neste sentido, a intervenção do homem sobre a natureza e o intercâmbio com os espíritos devem ser melhor aproveitados. Isto não deve obscurecer, entretanto, que a contribuição maior que o espiritismo pode dar é a sua a filosofia, baseada na existência do espírito, a imortalidade da alma, a evolução infinita e a educação para a “morte”.
 
Todas essas práticas têm seu valor, mas a mediunidade pode e deve ser melhor explorada em sua totalidade. Apesar desses avanços, não se tem caminhado no sentido de utilizar esses processos terapêuticos e as consequências advindas de sua utilização para a comprovação da imortalidade da alma, o que alargaria substancialmente o potencial de influência do espiritismo sobre a ciência. Apresentam, sem sombra de dúvidas, enormes possibilidades de evidenciar a sobrevivência da alma e chamar a atenção da ciência para a dimensão energética do homem, a intervenção e relação dos espíritos com o mundo material e as potencialidades deste intercâmbio (particularmente na produção de novos conhecimentos).
 
O Espiritismo dá sentido à vida diante da perspectiva da morte e, a partir de sua visão de mundo, permite a consolação e esperança no futuro.
 
NOVOS SIGNIFICADOS PARA A VIDA E A MORTE
 
É possível, portanto, fazer uma releitura do processo saúde-doença a partir da filosofia espírita.
 
A vida é a expressão de um fenômeno material e espiritual, pois a mente é o espírito que interpreta sensações, cria as ideias e sente as emoções que através do pensamento e da linguagem exteriorizam os nossos desejos. Para tanto, entre a dimensão física e espiritual existe o perispírito.
 
Entretanto, somos apenas aquilo que nosso corpo físico nos permite ser, e não tudo aquilo que nosso espírito é ou já foi (ou gostaríamos de ser). O ser vivo está sujeito à evolução, através de vidas sucessivas, favorecendo a oportunidade de crescimento intelectual e moral, com destino à perfeição. Nas lições que vivencia, acertos e erros, aprimora habilidades, preferências, virtudes e aptidões.
 
A consciência toma progressivamente conhecimento do Eu, do mundo exterior e do seu significado. Desenvolvemos a consciência temporal e, portanto, a noção de passado, presente e futuro (potencialidade restrita à espécie humana e que nos diferencia dos demais seres vivos). Usamos cada vez mais o nosso livre-arbítrio (ampliando-se a responsabilidade). Daí dizermos que o processo evolutivo é fundamentalmente intelectual e moral.
 
O espírito conquista paulatinamente a consciência da espiritualidade que nos envolve, o que nos permite expandi-la a outras dimensões.
 
Nossos pensamentos criam um ambiente psíquico, um campo mental, onde estão esculpidas as imagens mentais que idealizamos com mais persistência (de forma que convivemos materialmente com nossos próprios desejos). As projeções de nossas vibrações mentais indubitavelmente têm potencial gerador de doenças e ao mesmo tempo de preservar ou restabelecer a saúde, dentro dos limites impostos pelas Leis da Natureza.
 
Ao tratar da volta do espírito à vida corporal, Kardec lida diretamente com o tema da morte (e, indiretamente, apresenta uma concepção mais elaborada do processo mórbido).
 
A morte, na visão espírita, é apenas a volta do ser “ao mundo dos Espíritos, donde se apartara momentaneamente.” (“O Livro dos Espíritos”, pergunta 149), que mantém sua individualidade a partir da formação do corpo espiritual. Parte levando consigo, deste mundo, apenas a lembrança e o desejo de ir para um mundo melhor, “que será cheia de doçura ou de amargor, conforme o uso que ela fez da vida. Quanto mais pura for, melhor compreenderá a futilidade do que deixa na Terra.” (idem, p. 150)
 
Uma separação que não é dolorosa para o espírito, uma vez que “o corpo quase sempre sofre mais durante a vida do que no momento da morte”. Na verdade, “os sofrimentos que algumas vezes se experimentam no instante da morte são um gozo para o Espírito, que vê chegar o termo do seu exílio. Na morte natural, a que sobrevém pelo esgotamento dos órgãos, em consequência da idade, o homem deixa a vida sem o perceber: é uma lâmpada que se apaga por falta de óleo”. (idem, p. 154)
 
Uma separação que se origina a partir da ruptura (abrupta) ou de um processo em que os laços energéticos que mantinham unidos o espírito ao corpo vão se desatando, progressiva e lentamente, dependendo do tipo de morte.
 
A maior contribuição que o espiritismo apresenta é exatamente a sua visão positiva da morte. Como nos ensina Kardec (comentário à questão 155): “Durante a vida, o Espírito se acha preso ao corpo pelo seu envoltório semimaterial ou perispírito. A morte é a destruição do corpo somente, não a desse outro invólucro, que do corpo se separa quando cessa neste a vida orgânica. A observação demonstra que, no instante da morte, o desprendimento do perispírito não se completa subitamente; que, ao contrário, se opera gradualmente e com uma lentidão muito variável conforme os indivíduos. Em uns é bastante rápido, podendo dizer-se que o momento da morte é mais ou menos o da libertação. Em outros, naqueles sobretudo cuja vida é toda material e sensual, o desprendimento é muito menos rápido, durando algumas vezes dias, semanas e até meses, o que não implica existir, no corpo, a menor vitalidade, nem a possibilidade de volver à vida, mas uma simples afinidade com o Espírito, afinidade que guarda sempre proporção com a preponderância que, durante a vida, o Espírito deu à matéria. É, com efeito, racional conceber-se que, quanto mais o Espírito se haja identificado com a matéria, tanto mais penoso lhe seja separar-se dela; ao passo que a atividade intelectual e moral, a elevação dos pensamentos operam um começo de desprendimento, mesmo durante a vida do corpo, de modo que, em chegando a morte, ele é quase instantâneo. Tal o resultado dos estudos feitos em todos os indivíduos que se têm podido observar por ocasião da morte. Essas observações ainda provam que a afinidade, persiste entre a alma e o corpo, em certos indivíduos, é, às vezes, muito penosa, porquanto o Espírito pode experimentar o horror da decomposição. Este caso, porém, é excepcional e peculiar a certos gêneros de vida e a certos gêneros de morte. Verifica-se com alguns suicidas”.
 
A separação definitiva, muitas vezes, ocorre antes mesmo da morte física, mantendo-se apenas algumas funções orgânicas (o que dá novo sentido para compreender e condenar a manutenção artificial da vida de forma penosa e desnecessária). Mesmo em situações de morte violentas, a separação é muito rápida, advindo um estado de inconsciência com duração variável de acordo com o estágio evolutivo de cada criatura.
 
Além disso, permite dar novos sentidos a nossa existência e a vida em sociedade, permitindo uma nova dinâmica de relações sociais. Ainda mais que vivemos, inegavelmente, uma crise do desenvolvimento.
 
O modelo hegemônico biomédico reduziu o conceito de saúde à ausência de doença. Hoje já se sabe que apenas o aumento do fluxo de recursos para serviços de saúde causa pouco impacto nos indicadores de saúde. Enfrentamos seríssimos problemas decorrentes da incorporação tecnológica crescente e irracional. É preciso não esquecer Hipócrates de Cós, o “pai da medicina”, que viveu em 460 a.C.: “O primeiro dever da medicina é de ajudar os doentes e o segundo é não causar-lhes danos.”
 
Mas a crise do modelo biomédico é parte da crise da modernidade, que não conseguiu cumprir suas promessas de desenvolvimento: há mais pobreza, mais concentração de riqueza, mais contaminação e destruição ambiental, sofrimento, violência, mais guerras...
 
O peso social das doenças, sequelas e mortes prematuras atuais está cada vez menos vinculado a mudanças e expansão dos serviços de saúde. Há evidências suficientes de que intervenções e mudanças estruturais fora da assistência médica têm maior potencialidade de alterar tendências epidemiológicas.
 
Segundo a Carta de Otawa, amplamente difundida pela OMS, para a produção de saúde é preciso associar um conjunto de iniciativas, tais como a construção de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis à saúde, o reforço da ação comunitária, o desenvolvimento de habilidades pessoais e a reorientação dos serviços de saúde.
 
Como vimos anteriormente, uma concepção de saúde fundamentada na filosofia espírita parte, antes de tudo, do conceito de fraternidade e justiça social, envidando esforços para promover condições dignas de vida e acesso aos serviços de atenção à saúde (prevenção, promoção, assistência e reabilitação) a todos os cidadãos.
 
Entende a saúde como “o resultante das adequadas condições de alimentação, habitação, saneamento, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde”, como exposto no atual Código de Ética Médica brasileiro. É inegável que o espiritismo nos leva a considerar a nossa responsabilidade como “co-construtores do universo” (JH Pires). É, portanto, uma responsabilidade do Estado, da sociedade e de cada um de nós, empreendermos mecanismos solidários de cuidado, individuais e coletivos, inclusive no tocante à proteção da natureza, destinados à promoção da saúde e ao alívio da dor e do sofrimento.
 
Outro ponto para reflexão é a postura em relação ao doente. Entendo que é muito melhor compreende-lo como alguém que precisa de solidariedade e não ser transformado em mercadoria a ser explorada. Daí pode advir uma diferença fundamental na maneira de lidar, cuidar e produzir saúde.
 
Mas o espiritismo se diferencia de outras correntes humanistas, comprometidas com a vida, na medida em que agrega à nossa estrutura físico-mental a dimensão energética e espiritual.
 
Uma visão mais ampla da vida, a partir da dinâmica evolutiva concebida pela filosofia espírita, permite compreender a vida, a saúde, a doença e a morte como processos efetivamente regidos pelas leis da natureza. Saúde passa a ser uma capacidade (ético-pessoal) e não um resultado, um estado mais ou menos temporário de corpo, da mente ou do espírito.
 
A visão espírita, inexoravelmente, coloca em pauta o tema da autonomia e da responsabilidade de cada sujeito encarnado com o processo de manutenção da sua saúde (física e mental). Dá, ainda, novo sentido para a vida e para morte, superando o velho paradigma da medicina clínica no qual o saber do “paciente” não faz parte do conhecimento científico acumulado (evidência), nem sua livre vontade influencia na cura. Leva-nos, portanto, a conceber o tema a partir de novos referenciais, valorizando a responsabilização e consciência sanitária.
 
Deve-se preferir a saúde substancial, como diz Berlinguer, do que a saúde instrumental. Buscar o bem-estar, o sentir bem, o estar no mundo mais saudável, do que uma vida restrita às pressões com base em critérios de produtividade ou adaptação.
 
A fragilidade vivida conscientemente pelo homem, sua individualidade e seu relacionamento com os demais fazem da experiência da dor, da doença e da morte uma parte integrante de sua vida. A habilidade de lidar com essa trinca passa a ser de fundamental importância para sua saúde.
 
Desta concepção pode resultar uma nova postura ética, comprometida com a ideia de que é melhor acrescentar vida aos anos a serem vividos do que anos a uma vida precariamente vivida. Mesmo quem está diante da morte, a partir deste referencial, pode vivê-la com saúde.
 
O espiritismo permite pensar o cuidado integral à saúde por uma nova ótica, um verdadeiro pacto pela vida!
 
Sem dicotomizar ou eleger como objeto exclusivo e prioritário do cuidado com a saúde o corpo (ou seus órgãos), a mente, a vontade, o autocuidado. Indo além, permite repensar as terapias, a nossa responsabilidade individual, social (sanitária) e com o meio ambiente. E a partir daí estabelecer novos paradigmas para a saúde, que levem em consideração a necessidade de estabelecer novos estilos de vida, fundamentados no estímulo à autonomia, à constituição de sujeito e à construção da cidadania, como nos ensinou Paulo Freire.
 
Isso é possível, mas passa também pelo resgate da dimensão energética, de uma nova dimensão espiritual e na busca de mais qualidade de vida, pois é sempre melhor acrescentar vida aos anos a serem vividos do que anos à vida precariamente vivida.
 
Nesta perspectiva, passamos a compreender a saúde como Paccha Mama, para quem “a saúde é a relação harmônica do individuo consigo mesmo, com a natureza e com os demais, na busca de uma tranquilidade espiritual”. Quando nos preocupamos com o outro, com a sociedade, nos transformamos. Cuidar do outro nos revela a nós mesmo. Quando conhecemos o outro, conhecemos a nós mesmos. Se o reino estivesse somente no interior, poderíamos abandonar o mundo e viver apenas em meditação. O amor é aquilo que o ser humano tem de mais interior e, ao mesmo tempo, ele tem consequências no mundo exterior.
 
Se é tão fácil, por que complicamos tanto? O Dalai Lama proporcionou um importante ensinamento ao tentar responder uma simples questão: o que mais te surpreende na Humanidade? Ele respondeu: “Os homens... Porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido”.
 
Outros temas relacionados à saúde e à doença poderiam ser discutidos sob uma lente muito maior proporcionada pela dimensão espiritual e energética. Não tivemos, neste trabalho, o objetivo de desenvolvê-los. Novos e velhos desafios se abrem para a humanidade. Temas como o processo de envelhecimento, a violência como problema de saúde, a saúde e a desigualdade social, a incorporação tecnológica, novos modelos assistenciais e terapêuticos, a saúde mental, a mediunidade, as questões da bioética, apenas para citar alguns exemplos, são temas a serem explorados e que aqui, dada a limitação de espaço, não puderam ser tratadas (embora pretendamos analisá-los futuramente).
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fonte: Ensaio apresentado no 10º Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 14 de outubro de 2007, em Santos-SP.
 
Ademar Arthur Chioro dos Reis, médico especializado em saúde pública, é Secretário de Saúde de São Bernardo do Campo-SP. Membro do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), foi presidente do CE Allan Kardec, de Santos-SP e presidente do Departamento de Mocidade da União Municipal Espírita de Santos. Escreveu os livros “Magnetismo e Vitalismo” e“Mecanismos da Mediunidade - Processo de Comunicação Mediúnica”.
E-mail: 
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