a partir de maio 2011

domingo, 20 de maio de 2012

Estudo sobre a natureza do Cristo;Obras Póstumas


Obras Póstumas

I - Fonte das provas da natureza do Cristo

A questão da natureza do Cristo foi debatida desde os primeiros séculos do Cristianismo, e pode-se dizer que não está ainda resolvida, uma vez que ainda é discutida em nossos dias. Foi a diferença de opinião sobre este ponto, que deu nascimento à maioria das seitas que dividiram a Igreja há dezoito séculos, e é notável que todos os chefes dessas seitas foram bispos ou membros do clero com diversos títulos. Por consegüinte, eram homens esclarecidos, a maioria escritores de talento, nutridos na ciência teosófica, que não achavam concludentes as razões evocadas em favor do dogma da divindade do Cristo; não obstante, então como hoje, as opiniões se formaram sobre abstrações, mais do que sobre fatos, procurou-se, sobretudo, o que o dogma poderia ter de plausível ou de irracional, e, geralmente, se negligenciou, de parte a parte, em fazer ressaltar os fatos que poderiam lançar, sobre a questão, uma luz decisiva.
Mas onde encontrar esses fatos se isso não for nos atos e nas palavras de Jesus?
Jesus, nada tendo escrito, seus únicos historiadores foram os apóstolos que, eles não mais, nada escreveram quando vivos; não tendo nenhuma história profana contemporânea falado dele, não existe sobre a sua vida e a sua doutrina, nenhum outro documento senão os Evangelhos; portanto, é ali somente que é necessário procurar a chave do problema. Todos os escritos posteriores, sem disso excetuar os de São Paulo, não são, e não podem ser, senão comentários ou apreciações, reflexo de opiniões pessoais, freqüentemente contraditórias, que não poderiam, em nenhum caso, ter a autoridade do relato daqueles que receberam as instruções diretamente do Mestre.
Sobre essa questão, como sobre as de todos os dogmas em geral, o acordo dos Pais da Igreja, e outros escritores sacros, não poderia ser evocado como argumento preponderante, nem como uma prova irrecusável em favor de sua opinião, tendo em vista que nenhum deles pôde citar um único fato, fora do Evangelho, concernente a Jesus, nenhum deles descobriu documentos novos desconhecidos de seus predecessores.
Os autores sacros não puderam senão voltar sobre o mesmo círculo, dar a sua apreciação pessoal, tirar conseqüências de seu ponto de vista, comentar sob novas formas, e com mais ou menos desenvolvimento, as opiniões contraditórias. Todos os do mesmo partido deveram escrever no mesmo sentido, se não nos mesmos termos, sob pena de serem declarados heréticos, como o foram Orígenes e tantos outros. Naturalmente, a Igreja não colocou, entre seus Pais, senão os escritores ortodoxos do seu ponto de vista; ela não exaltou, santificou e colecionou senão aqueles que tomaram a sua defesa, ao passo que rejeitou os outros e destruiu os seus escritos tanto quanto possível. O acordo entre os Pais da Igreja, portanto, nada tem de concludente, uma vez que é uma unanimidade de escolha formada pela eliminação dos elementos contrários. Se se leva em consideração tudo o que foi escrito pró e contra, não se sabe muito de que lado penderia a balança.
Isso nada tira ao mérito pessoal dos sustentadores da ortodoxia, nem ao seu valor como escritores e homens conscienciosos; foram os advogados de uma mesma causa, que defenderam com incontestável talento, e deveriam, forçosamente, chegar às mesmas conclusões. Longe de querer denegri-los, em que quer que seja, quisemos simplesmente refutar o valor das conseqüências que se pretende tirar de seu acordo.
No exame que vamos fazer, da questão da divindade do Cristo, pondo de lado as sutilezas da escolástica que não serviram senão para embrulhar em lugar de elucidar, nos apoiaremos exclusivamente sobre os fatos que ressaltam do texto do Evangelho, e que, examinados friamente, conscienciosamente, sem idéia preconcebida, fornecem superabundantemente todos os meios de convicção que se possam desejar. Ora, entre esses fatos, não há de mais preponderante, nem de mais concludentes, senão as palavras mesmas do Cristo, palavras que não se saberia recusar sem infirmar a veracidade dos apóstolos. Pode-se interpretar de diferentes maneiras uma palavra, uma alegoria; mas afirmações precisas, sem ambigüidade, cem vezes repetidas, não poderiam ter um duplo sentido. Nenhum outro, senão Jesus, pode pretender saber melhor do que ele o que quis dizer, como ninguém pode pretender estar melhor informado do que ele sobre a sua própria natureza: quando ele comenta as suas palavras, e as explica, para evitar todo equívoco, deve-se confiar nele, a menos lhe neguemos a superioridade que se lhe atribui, e substituamos a sua própria inteligência. Se foi obscuro em certos pontos, quando se serviu de linguagem figurada, sobre o que toca à sua pessoa não há equívoco possível. Antes do exame das palavras, vejamos os atos.

II. - A divindade do Cristo está provada pelos milagres?

Segundo a Igreja, a divindade do Cristo está estabelecida, principalmente pelos milagres, como testemunho de um poder sobrenatural. Esta consideração pôde ter um certo peso numa época em que o maravilhoso era aceito sem exame; mas hoje, que a ciência levou as suas investigações até as leis da Natureza, os milagres encontram mais incrédulos do que crentes; e o que não contribuiu pouco para o seu descrédito, foi o abuso das imitações fraudulentas e a exploração que deles se fez. A fé nos milagres foi destruída pelo próprio uso que dela se fez; disso resultou que os do Evangelho são agora considerados, por muitas pessoas, como puramente legendários.
A Igreja, aliás, ela mesma, retira aos milagres toda a sua importância, como prova da divindade do Cristo, declarando que o demônio também pode fazê-los tão prodigiosos quanto ele: porque se o demônio tem um tal poder, fica evidente que os fatos desse gênero não têm, de nenhum modo, um caráter exclusivamente divino; se ele pode fazer coisas admiráveis para seduzir mesmo os eleitos, como simples mortais poderiam distinguir os bons milagres dos maus, e não há a temer que, vendo fatos similares, não confundam Deus e Satanás?
Dar a Jesus um tal rival em habilidade era uma grande falta de jeito; mas, pelo que respeita a contradições e inconseqüências, não eram olhadas de tão perto em uma época em que os fiéis ter-se-iam feito um caso de consciência em pensar por eles mesmos, e de discutir o menor artigo imposto à sua crença; então, não se contava com o progresso e não se pensava que o reino da fé cega e ingênua, reino cômodo como o do bel prazer, pudesse ter um termo. O papel, tão preponderante que a Igreja se obstinou em dar ao demônio, teve conseqüências desastrosas para a fé, à medida que os homens se sentiram capazes de ver pelos próprios olhos. O demônio, que se explorou com sucesso durante um tempo, tornou-se o machado posto ao velho edifício das crenças, e uma das principais causas da incredulidade; pode-se dizer que a Igreja, se fazendo dele um auxiliar indispensável, alimentou em seu seio aquele que deveria virar-se contra ela e miná-la em seus fundamentos.
Uma outra consideração não menos grave, é que os fatos miraculosos não são o privilégio exclusivo da religião cristã: não há, com efeito, uma religião idólatra ou pagã, que não teve os seus milagres, tão maravilhosos e tão autênticos, para os adeptos, quanto os do cristianismo. A Igreja se tirou o direito de constatá-los, atribuindo às potências infernais o poder de produzi-los.
O caráter essencial do milagre, no sentido teológico, é ser uma exceção nas leis da Natureza, e, por consegüinte, inexplicável por essas mesmas leis. Desde o instante que um fato pode se explicar, e que se ligue a uma causa conhecida, cessa de ser milagre. Assim é que as descobertas da ciência fizeram entrar no domínio do natural, certos efeitos qualificados de prodígios enquanto a causa ficou ignorada. Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da ação dos fluidos sobre a economia, do mundo invisível no meio do qual vivemos, das faculdades da alma, da existência e das propriedades do perispírito, deu a chave dos fenômenos de ordem psíquica, e provou que não são, não mais do que os outros, derrogações às leis da Natureza, mas que, ao contrário, delas são aplicações freqüentes. Todos os efeitos de magnetismo, de sonambulismo, de êxtase, de dupla vista, de hipnotismo, de catalepsia, de anestesia, de transmissão do pensamento, de presciência, de curas instantâneas, de possessões, de obsessões, de aparições e de transfigurações, etc., que constituem a quase totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem a essa categoria de fenômenos.
Sabe-se agora que esses efeitos são o resultado de aptidões e de disposições fisiológicas especiais; que se produziram em todos os tempos, entre todos os povos, e puderam ser considerados como sobrenaturais sob o mesmo título de todos aqueles cuja causa era incompreendida. Isso explica por que todas as religiões tiveram os seus milagres, que não são outros senão os fatos naturais, mas quase sempre amplificados ao absurdo pela credulidade, a ignorância e a superstição, e que os conhecimentos atuais reduziram ao seu justo valor, permitindo levá-los em conta de lenda.
A possibilidade da maioria dos fatos que o Evangelho cita como tendo sido realizados por Jesus, está hoje completamente demonstrada pelo Magnetismo e pelo Espiritismo, enquanto fenômenos naturais. Uma vez que se produzem sob os nossos olhos, seja espontaneamente, seja por provocação, não há nada de anormal em que Jesus possuísse faculdades idênticas às de nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos, videntes, médiuns, etc. Desde o instante que essas mesmas faculdades se encontram, em diferentes graus, numa multidão de indivíduos que nada têm de divino, que são encontradas mesmo entre os heréticos e os idólatras, elas não implicam, em nada, uma natureza sobre-humana.
Se Jesus qualificava, ele mesmo, os seus atos de milagres, é que nisso, como em muitas outras coisas, devia apropriar a sua linguagem aos conhecimentos de seus contemporâneos; como estes poderiam aprender uma nuança de palavra que não é ainda compreendida por todo o mundo? Para o vulgo, as coisas extraordinárias que ele fazia, e que pareciam sobrenaturais, naquele tempo e mesmo muito mais tarde, eram milagres; não podia dar-lhe um outro nome. Um fato digno de nota é que deles se serviu para afirmar a missão que tinha de Deus, segundo as suas próprias expressões, mas disso jamais se prevaleceu para se atribuir o poder divino (1).
(1) Para o desenvolvimento completo da questão dos milagres, ver A Gênese segundo o Espiritismo, capítulos XIII e seguintes, onde são explicados, pelas leis naturais, todos os milagres do Evangelho.
É necessário, pois, riscar os milagres das provas sobre as quais se pretende fundar a divindade da pessoa do Cristo; vejamos agora se as encontramos em suas palavras.

III. - Divindade de Jesus está provada pelas suas palavras?

Dirigindo-se aos discípulos, que entraram em disputa, para saber qual dentre eles era o maior; e lhes disse pegando uma criança e colocando-a junto a si:
"Quem me recebe, recebe aquele que me enviou; porque aquele que é o menor entre vós, é o maior." (São Lucas, cap. IX, v. 48.)
"Quem recebe em meu nome uma criancinha como esta, me recebe, e quem me recebe, não recebe só a mim, mas recebe aquele que me enviou." (São Marcos, cap. IX, v. 36.)
"Jesus lhes disse, pois: "Se Deus fosse o vosso Pai, me amaríeis, porque foi de Deus que eu saí, e que é de sua parte que vim; porque não vim por mim mesmo, mas foi ele quem me enviou." (São João, cap. VIII, v. 42.)
"Jesus lhes disse, pois: "Estou ainda convosco por um pouco de tempo, e em seguida vou para aquele que me enviou." (São João, cap. VII, v. 33.)
"Aquele que vos escuta me escuta; aquele que vos despreza me despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou." (São João, cap. X, v. 16.)
O dogma da divindade de Jesus está fundado sobre a igualdade absoluta entre a sua pessoa e Deus, uma vez que é o próprio Deus: é um artigo de fé; ora, estas palavras, tão freqüentemente repetidas por Jesus: Aquele que me enviou, testemunham não somente quanto a dualidade das pessoas, mas, ainda, como dissemos, excluem a igualdade absoluta entre elas; porque aquele que é enviado, necessariamente, está subordinado àquele que envia; obedecendo, faz ato de submissão. Um embaixador, falando de seu soberano, dirá: Meu senhor, aquele que me enviou; mas se é o soberano em pessoa que vem, ele falará em seu próprio nome e não dirá: Aquele que me enviou, porque não se pode enviar a si mesmo. Jesus o disse, em termos categóricos por estas palavras: eu não vim por mim mesmo, mas foi ele quem me enviou.
Estas palavras: Aquele que me despreza, despreza aquele que me enviou, não implicam, de nenhum modo, a igualdade e ainda menos a identidade; em todos os tempos, o insulto feito a um embaixador era considerado como feito ao próprio soberano. Os apóstolos tinham a palavra de Jesus, como Jesus tinha a de Deus; quando lhes disse: Aquele que vos escuta me escuta, não entendia dizer que seus apóstolos e ele não faziam senão uma única e mesma pessoa, igual em todas as coisas.
A dualidade de pessoas, assim como o estado secundário e subordinado de Jesus, com relação a Deus, ressaltam, além disso, sem equívoco, das passagens seguintes:
"Fostes vós que permanecestes sempre firmes comigo nas minhas tentações. – Por isso eu vos preparo o Reino, como meu pai mo preparou, – a fim de que comais e bebais à minha mesa no meu reino, e que vos senteis sobre os tronos para julgar as doze tribos de Israel." (São Lucas, cap. XXII, v. 28, 29 e 30.)
"Por mim eu digo o que vi na casa de meu Pai, fazeis vós o que vistes na casa de vosso pai." (São João, cap. VIII, v. 38.)
"Ao mesmo tempo apareceu uma nuvem que os cobriu, e saiu dessa nuvem uma voz que fez ouvir estas palavras: Este é meu filho bem-amado;escutai-o." (Transfigur. São Marcos, cap. IX, v. 6.)
"Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos, sentar-se-á sobre o trono de sua glória; – e todas as nações estando reunidas, separará umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes, – e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. – Então, o Rei dirá àqueles que estarão à sua direita: Vinde, vós que fostes abençoados por meu Pai, possuir o reino que vos foi preparado desde o começo do mundo." (São Mateus, cap. XXV, v. 31 a 34.)
"Quem me confessar e me reconhecer diante dos homens, eu o reconhecerei e o confessarei também diante de meu pai que está nos céus; – e quem me renunciar diante dos homens, eu o renunciarei também, eu mesmo, diante de meu pai que está nos céus." (São Mateus, cap. X, v. 32, 33.)
"Ora, eu vos declaro que quem me confessar e me reconhecer diante dos homens, o filho do homem o reconhecerá também diante dos anjos de Deus; mas se alguém me renunciar diante dos homens, eu o renunciarei também diante dos anjos de Deus." (São Lucas, cap. XII, v. 8, 9.)
"Mas se alguém se envergonhar de mim e de minhas palavras, o filho do homem se envergonhará também dele, quando vier em sua glória e na de seu pai e dos santos anjos." (São Lucas, cap. IX, v. 26.)
Nestas duas últimas passagens, Jesus parecia mesmo colocar acima dele os santos anjos, compondo o tribunal celeste, diante do qual seria o defensor dos bons e o acusador dos maus.
"Mas por aquilo que é de estar sentado à minha direita ou à minha esquerda, não é a mim, de nenhum modo, que cabe vo-lo dar, mas será por aquele a quem meu Pai preparou." (São Mateus, cap. XX, v. 23.)
"Ora, os Fariseus estando reunidos, Jesus lhes fez esta pergunta – e lhes disse: "Que vos parece do Cristo? De quem é filho? Eles lhe responderam: De David. – E como, pois, lhes disse, David chama-o em espírito o seu Senhor com estas palavras: O Senhor disse ao meu Senhor: Sentai-vos à minha direita até que reduza os vossos inimigos a vos servir de escabelo? Se, pois, David chama-o seu Senhor, como é seu filho? "(São Mateus, cap. XXII, v. 41 a 45.)
"Mas Jesus, ensinando no templo, lhes disse: Como os escribas dizem que o Cristo é o filho de David, – uma vez que David, ele mesmo, disse ao meu Senhor: Sentai-vos à minha direita até que haja reduzido vossos inimigos a vos servir de escabelo? – Depois, portanto, que David o chama, ele mesmo, seu senhor, como é seu filho? "(São Marcos, cap. XII, v. 35, 36, 37. – São Lucas, cap. XX, v. 41 a 44.)
Jesus consagra, com estas palavras, o princípio da diferença hierárquica que existe entre o Pai e o Filho. Jesus podia ser o filho de David por filiação corpórea, e como descendente de sua raça, foi porque teve o cuidado de ajuntar: "Como o chama em espírito, seu senhor? " Se há uma diferença hierárquica entre o pai e o filho; Jesus, como filho de Deus, não pode ser o igual de Deus.
Jesus confirma essa interpretação e reconhece sua inferioridade em relação a Deus, em termos que não deixam equívoco possível:
"Ouvistes o que vos disse:" Eu me vou, e volto a vós. Se me amais, vos alegrareis de que vou para meu Pai, porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU." (São João, cap. XIV, v. 28).
"Então um jovem se aproxima e lhe diz: Bom mestre, que bem é necessário que eu faça para adquirir a vida eterna? – Jesus lhe respondeu: "Por que me chamais bom? Não há senão Deus que seja bom. Se quereis entrar na vida, guardai os mandamentos." (São Mateus, cap. XIX, v. 16, 17. – São Marcos, cap. X, v. 17, 18, – São Lucas, cap. XVIII, v. 18, 19.)
Não somente Jesus não se deu, em nenhuma circunstância, por ser o igual de Deus, mas aqui ele afirma positivamente o contrário, considera-se como inferior em bondade; ora, declarar que Deus está acima dele pelo poder e suas qualidades morais, é dizer que ele mesmo não é Deus. As passagens seguintes vêm em apoio destas, e são também explícitas.
"Não falei, de nenhum modo, de mim mesmo; mas meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu, por seu poder, o que devo dizer, e como devo falar; – e eu sei que o seu poder é a vida eterna; o que eu digo, pois, o digo segundo o que meu Pai mo ordenou." (São João, cap. XII, v. 49, 50.)
"Jesus lhes respondeu: "Minha doutrina não é minha doutrina, mas a doutrina daquele que me enviou. – Se alguém quer fazer a vontade de Deus, reconhecerá se a minha doutrina é dele, ou se falo de mim mesmo. – Aquele que fala de seu próprio movimento procura sua própria glória, mas aquele que procura a glória de quem o enviou é verídico, e nele, de nenhum modo, há injustiça." (São João, cap. VII, v. 16, 17, 18.)
"Aquele que não me ama nada, não guarda, minha palavra; e a palavra que ouvistes não foi a minha palavra em nada, mas a de meu Pai que me enviou.’ (São João, cap. XIV, v. 24.)
"Não credes que estou em meu Pai e que meu Pai está em mim? O que vos digo, não vo-lo digo por mim mesmo; mas meu Pai, que mora em mim faz, ele mesmo, as obras que eu faço." (São João, cap. XIV, v. 10.)
"O céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. – Pelo que é do dia e da hora, o homem não o saiba, não, nem mesmo os anjos que estão no céu, nem mesmo o Filho, mas somente o Pai. "(São Marcos, cap. XIII. v. 32. – São Mateus, cap. XXIV v. 35, 36.) .
"Jesus lhes disse, pois: "Quando houverdes levantado ao alto o filho do homem, então conhecereis o que sou, porque eu não faço nada de mim mesmo, não digo senão o que meu Pai me ensinou; e aquele que me enviou está comigo, e de modo nenhum me deixou só, porque faço sempre o que lhe é agradável." (São João, cap. VIII, v. 28, 29.)
"Desci do céu não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou." (São João, cap. VI, v. 38.)
Não posso nada fazer de mim mesmo. Julgo segundo o que entendo, e meu julgamento é justo porque não procuro minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou." (São João, cap. V, v. 30.)
"Mas, por mim, tenho um testemunho maior do que o de João, porque as obras que meu Pai me deu o poder de fazer, as obras, digo eu, que faço, dão testemunho de mim, que foi meu Pai que me enviou." (São João, cap. V, v. 36.)
"Mas agora procurais me fazer morrer, eu que vos disse a verdade que aprendi de Deus, foi o que Abraão nunca fez." (São João, cap. VIII, v. 40.)
Desde então, que ele não disse nada de si mesmo; que a doutrina que ensinou não é a sua, mas que a tem de Deus, que lhe ordenou vir fazê-la conhecer; que não faz senão o que Deus lhe deu o poder de fazer; que a verdade que ensina, ele aprendeu de Deus, à vontade de quem está submetido; é que não é o próprio Deus, mas seu enviado, seu messias e seu subordinado.
É impossível recusar, de maneira mais positiva, toda assimilação à pessoa de Deus, e de determinar seu principal papel em termos mais precisos. Não estão aí pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, e que não se descobrem senão à força de interpretação: é o sentido próprio, expresso sem ambigüidade.
Se se objetasse que Deus, não querendo se fazer conhecer na pessoa de Jesus, enganasse sobre a sua individualidade, poder-se-ia perguntar sobre o quê está fundada essa opinião, e quem tem autoridade para sondar o fundo de seu pensamento, e dar, às suas palavras, um sentido contrário àquele que elas exprimem? Uma vez que, quando vivo, ninguém o considerava como Deus, mas era olhado, ao contrário, como um messias, se não quisesse ser conhecido pelo que era, bastar-lhe-ia nada dizer; de sua afirmação espontânea é preciso concluir que ele não era Deus, ou que, se o era, voluntariamente e sem utilidade, disse uma coisa falsa.
É de notar-se que São João, aquele dos Evangelistas sobre a autoridade de quem mais se apoiou para estabelecer o dogma da divindade do Cristo, seja precisamente o que encerra os argumentos contrários mais numerosos e os mais positivos; pode-se disso convencer pela leitura das passagens seguintes, que não acrescentam nada, é verdade, às provas já citadas, mas vêm em seu apoio, porque delas ressaltam evidentemente a dualidade e a desigualdade das pessoas.
"Por causa disso, os Judeus perseguiam Jesus e procuravam fazê-lo morrer, porque fizera essas coisas no Sábado. – Mas Jesus lhes disse: Meu pai age até o presente, e eu ajo também. (São João, cap. V, v. 16, 17.)
"Porque o Pai não julga ninguém; mas dá todo poder de julgar ao Filho, – a fim de que todos honrem o Filho, como honram o Pai. Aquele que não honra em nada o Filho, não honra em nada o Pai que o enviou.
Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra, e que crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não cai, na condenação; mas já passou da morte à vida."
"Em verdade, em verdade vos digo, a hora vem, e ela já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que ouvirão, viverão; porque como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter a vida nele mesmo, – e lhe deu o poder de julgar, porque é o Filho do homem. "(São João, cap. V, v. 22 a 27.)
"E o Pai que me enviou, ele mesmo, tem dado testemunho de mim. Jamais ouvistes a sua voz, nem vistes a sua face. E sua palavra não permanecerá em vós, porque não credes naquele que ele enviou." (São João, cap. V, v. 37,38.)
"E quando eu julgar, o meu julgamento será digno de fé, porque não estou só; mas meu Pai, que me enviou, está comigo." (São João, cap. VIII, v. 16.)
Jesus, tendo dito essas coisas, levou os olhos ao céu e disse: "Meu Pai, a hora é chegada; glorificai vosso Filho, a fim de que vosso Filho vos glorifique. – Como lhe deste poder sobre todos os homens, a fim de que dê a vida eterna a todos aqueles que lhe destes. – Ora, a vida eterna consiste em vos conhecer, a vós que sois O ÚNICO DEUS verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviastes.
"Eu vos glorifiquei sobre a Terra; acabei a obra da qual me encarregastes. – E vós, meu Pai, glorificai-me, pois, agora em vós mesmos, dessa glória que tive em vós antes que o mundo fosse.
"Logo eu não estarei mais no mundo; mas, por eles, estão ainda no mundo, e eu dele retorno a vós. Pai santo, conservai em vosso nome aqueles que me destes, a fim de que sejam um como nós."
"Eu lhes dei vossa palavra, e o mundo os odiou, porque não são em nada do mundo, como eu, não sou, eu mesmo, do mundo."
"Santificai-os na verdade. A vossa palavra é a própria verdade. – Assim como vós me enviastes ao mundo, eu também os enviei ao mundo, – e eu me santifico, a mim mesmo, por eles, a fim de que sejam também santificados na verdade. "
"Eu não peço por eles somente, mas ainda por aqueles que devem crer em mim pela sua palavra; – a fim de que estejam todos juntos, como vós, meu Pai, estais em mim e eu em vós; que eles, sejam do mesmo modo, um em nós, a fim de que o mundo creia que me enviastes."
"Meu Pai, desejo que lá onde estou, aqueles que me destes ali estejam também comigo; a fim de que contemplem minha glória, que me destes,porque me amastes antes da criação do mundo."
"Pai justo, o mundo em nada vos conheceu; mas eu, eu vos conheci: e estes conheceram que me enviastes. – Eu lhes fiz conhecer vosso nome e o farei conhecer ainda, a fim de que o amor, com o qual me amastes, esteja neles, e que eu próprio o esteja neles." (São João, cap. XVII, v. 1 a 5, 11 a 14, de 17 a 26, Prece de Jesus.)
"É por isso que meu Pai me ama, porque deixo a minha vida para retomá-la. – Ninguém ma arrebata, mas sou eu que a deixo por mim mesmo; tenho o poder de deixá-la e tenho o poder de retomá-la. É o poder que recebi de meu Pai." (São João, cap. X, v. 17, 18.)
"Eles tiraram a pedra, e Jesus, levantando os olhos para o alto, disse estas palavras: Meu Pai, eu vos dou graça pelo que me atendestes. – Por mim, sabia que me atenderíeis sempre; mas digo isso para esse povo que me cerca, a fim de que creia que foi vós que me enviastes." (Morte de Lázaro, São João, cap. XI, v. 41, 42.)
"Eu não vos falarei muito mais, porque o príncipe deste mundo vai chegar, embora não tenha nada em mim que lhe pertença: mas a fim de que o mundo conheça que amo meu Pai, e que faço o que meu Pai me ordenou." (São João, cap. XIV, v. 30 e 31.)
"Se guardardes meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu mesmo guardei os mandamentos de meu Pai, e permaneço em seu amor." (São João, cap. XV, v. 10.)
"Então Jesus, lançando uma grande exclamação, disse: Meu Pai, reponho minha alma em vossas mãos. E, pronunciando estas palavras, expirou." (São Lucas, cap. XXIII, v. 46.)
Uma vez que Jesus, ao morrer, repunha a sua alma entre as mãos de Deus, tinha, portanto, uma alma distinta de Deus, submissa a Deus, portanto, não era o próprio Deus.
As palavras seguintes dão testemunho de uma certa fraqueza humana, de uma aprensão da morte e dos sofrimentos que Jesus vai suportar, e que contrasta com a natureza, essencialmente divina, que se lhe atribui; mas elas testemunham, ao mesmo tempo, uma submissão que é a do inferior ao superior.
"Então, Jesus chegou num lugar chamado Getsêmani; e disse aos seus discípulos: Sentai-vos aqui enquanto vou ali para orar. – E tendo tomado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a se entristecer e a estar numa grande aflição. Então, lhes disse: Minha alma está triste até à morte; permanecei aqui e velai comigo. – e indo um pouco mais longe, se prosternou o rosto contra a terra, pedindo e dizendo: Meu Pai, se for possível, faça com que este cálice se afaste de mim; não obstante, que isso seja não como eu o quero, mas como o quereis. – Veio em seguida para os seus discípulos, e tendo-os encontrado dormindo, disse a Pedro: O quê! Não pudestes velar uma meia hora comigo? – Velai e orai, a fim de que não cairdes, na tentação. O Espírito está pronto, mas a carne é fraca. – Foi-se ainda orar uma segunda vez, dizendo: "Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que eu o beba, que a vossa vontade seja feita." (Jesus no Jardim das Oliveiras. (São Mateus, cap. XXVI, v. de 36 a 42.)
"Então, lhes disse: Minha alma está triste até à morte; permanecei aqui e velai. – E, tendo ido um pouco mais longe, se prosternou contra a terra, pedindo que, se fosse possível, essa hora se afastasse dele. – E dizia: Abba, meu Pai, tudo vos é possível, transportai este cálice para longe de mim; contudo, que a vossa vontade seja feita e não a minha." (São Marcos, cap. XIV, v. 34, 35, 36.)
"Quando chegou naquele lugar, lhes disse: Orai a fim de que não sucumbais em nada à tentação. – E estando longe deles em torno de um lanço de pedra, pôs-se de joelhos, dizendo: Meu Pai, se quereis, afastai este cálice de mim; contudo, que isso não seja minha vontade que se faça, mas avossa. – Então apareceu-lhe um anjo do céu que veio fortificá-lo. – E, tendo caído em agonia, redobrou as suas preces. – E lhe veio um suor de gotas de sangue que corria até a terra." (São Lucas, cap. XXII, v. de 40 a 44.)
E na nona hora, Jesus lançou um grande grito, dizendo: Eli! Eli! Lamma Sabachthani? quer dizer: meu Deus! meu Deus! por que me abandonastes? (São Mateus, cap. XXVII, v. 46.)
"E na nona hora, Jesus lançou um grande grito, dizendo: Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonastes?" (São Marcos, cap. XX, v. 34.)
As palavras seguintes poderiam deixar alguma incerteza e dar lugar a crer numa identificação de Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que não poderia prevalecer sobre os termos precisos daquelas que precedem, levam ainda, nelas mesmas, a sua própria retificação.
"Eles lhe disseram: Que sois vós, pois? Jesus lhes respondeu: eu sou o princípio de todas as coisas, eu mesmo que vos falo. – Tenho muitas coisas a dizer de vós; mas aquele que me enviou é verdadeiro, e não digo senão o que aprendi com ele." (São João, cap. VII, v. 25, 26.)
"O que meu Pai me deu é maior do que todas as coisas; e ninguém pode arrebatá-lo da mão de meu Pai. Meu Pai e eu somos uma mesma coisa. "
Quer dizer, que seu pai e ele não são senão um pelo pensamento, uma vez que exprime o pensamento de Deus; que ele tem a palavra de Deus.
"Então, os judeus pegaram pedras para lapidá-lo. – e Jesus lhes disse: Fiz, diante de vós, várias boas obras pelo poder de meu Pai: por qual delas é que me lapidais? – Os judeus lhe responderam: Não é por nenhuma boa obra que vos lapidamos, mas por causa de vossa blasfêmia e porque, sendo homem, vos fazeis Deus. – Jesus lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse que sois deuses? – Se, pois, ela chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus está dirigida, e que as Escrituras não possam ser destruidas, – por que dizeis que blasfemo, eu que meu Pai santificou e enviou no mundo, porque eu disse que sou filho de Deus? – Se não faço as obras de meu Pai, não me creiais; mas se as faço, quando não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, a fim de que conheçais e creiais que meu Pai está em mim, e eu em meu Pai." (São João, cap. X, v. 29 a 38.)
Num outro capítulo, dirigindo-se aos seus discípulos, lhes disse:
"Naquele dia, conhecereis que estou em meu Pai e vós em mim, e eu em vós." (São João, cap. XIV, v. 20.)
Dessas palavras, não é preciso concluir que Deus e Jesus não fazem senão um, de outro modo seria preciso concluir também, das mesmas palavras, que os apóstolos não fazem, igualmente, senão um com Deus.

IV. Palavras de Jesus depois de sua morte

"Jesus lhes respondeu: Não me toqueis, porque ainda não subi para o meu Pai; mas ide procurar os meus irmãos e lhes dizei, de minha parte: Eu subi para o meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus." (Aparição a Maria Madalena. São João, cap. XX, v. 17.)
"Mas Jesus, aproximando-se, assim lhes falou: Todo poder me foi dado no céu e sobre a Terra." (Aparição aos Apóstolos. São Mateus, cap. XXVIII, v. 18.)
"Ora, sois testemunhas destas coisas; – E eu vou enviar-vos o dom de meu Pai que vos foi prometido." (Aparição aos Apóstolos. São Lucas, cap. XXIV, v. 48, 49.)
Tudo acusa, pois, nas palavras de Jesus, seja quando vivo, seja depois de sua morte, uma dualidade de pessoas perfeitamente distintas, assim como o profundo sentimento de sua inferioridade e de sua subordinação com relação ao Ser supremo. Por sua insistência ao afirmar espontaneamente, sem ser a isso constrangido, nem provocado, por quem quer que seja, parece querer protestar de antemão contra o papel que ele previa que se lhe seria atribuído um dia. Se tivesse guardado silêncio sobre o caráter de sua personalidade, o campo estaria aberto para todas as superstições como a todos os sistemas; mas a precisão de sua linguagem afasta toda incerteza.
Que autoridade maior se pode encontrar do que as próprias palavras de Jesus? Quando diz, categoricamente: sou ou não sou tal coisa, quem ousaria se arrogar o direito de dar-lhe um desmentido, fosse isso para colocá-lo mais alto do que ele mesmo não se coloca? Quem é que, razoavelmente, pode pretender estar mais esclarecido do que ele sobre a sua própria natureza? Que interpretações podem prevalecer contra afirmações tão formais e tão multiplicadas como estas:
"Não vim por mim mesmo, mas aquele que me enviou é o único Deus verdadeiro. – É de sua parte que venho. – Eu digo o que vi na casa de meu Pai. – Não cabe a mim vo-lo dar, mas isso será para aqueles a quem meu Pai o preparou. – Eu me vou para meu Pai, porque meu Pai é maior do que eu. – Por que me chamais bom? Não há senão Deus que seja bom. – Não falo por mim mesmo, mas meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu pelo seu mandamento, o que devo dizer. – A minha doutrina não é minha doutrina, mas a doutrina daquele que me enviou. – A palavra que ouvistes, não é a minha palavra, mas a do meu Pai que ma enviou. – Não faço nada por mim mesmo, mas não digo senão aquilo que meu Pai me ensinou. – Nada pude fazer por mim mesmo. – Eu não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. – Eu vos disse a verdade que aprendi de Deus. – Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou. – Vós sois o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo que enviastes. – Meu Pai, reponho a minha alma em vossas mãos. – Meu Pai, se for possível, fazei com que este cálice se afaste de mim. – Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? – Eu subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus."
Quando se lê tais palavras, pergunta-se somente como pôde vir ao pensamento dar-lhes um sentido diametralmente oposto àquele que elas exprimem tão claramente, conceber uma identificação completa de natureza e de poder entre o senhor e aquele que se diz seu servidor. Nesse grande processo, que dura há quinze séculos, quais são as peças de convicção? Os Evangelhos, – não há outras, – que, sobre o ponto em litígio, não dão lugar a nenhum equívoco. A esses documentos autênticos, que não se pode contestar sem se inscrever em falso contra a veracidade dos evangelistas e do próprio Jesus, documentos estabelecidos por testemunhos oculares, que se lhes opõem? Uma doutrina teórica puramente especulativa, nascida três séculos mais tarde de uma polêmica estabelecida sobre a natureza abstrata do Verbo, vigorosamente combatida durante vários séculos, e que não prevaleceu senão pela pressão de um poder civil absoluto.

V. Dupla natureza de Jesus

Poder-se-ia objetar que, em razão da dupla natureza de Jesus, suas palavras eram a expressão de seu sentimento como homem, e não como Deus. Sem examinar, neste momento, por qual encadeamento de circunstâncias se conduziu, bem mais tarde, à hipótese dessa dupla natureza, admitamo-la, por um instante, e vejamos se, em lugar de elucidar a questão, ela não a complica mais, ao ponto de torná-la insolúvel.
O que devia ser humano em Jesus era o corpo, a parte material; deste ponto de vista compreende-se que ele haja mesmo podido sofrer como homem. O que devia ser divino nele era a alma, o Espírito, o pensamento, em uma palavra, a parte espiritual do Ser. Se sentia e sofria como homem, deveria pensar e falar como Deus. Ele falou como homem ou como Deus? Está aí uma questão importante pela autoridade excepcional de seus ensinamentos. Se falou como homem, suas palavras são discutíveis; se falou como Deus elas são indiscutíveis; é preciso aceitá-las e a elas se conformar sob pena de deserção e de heresia; o mais ortodoxo seria aquele que delas se aproximasse mais.
Dir-se-á que, sob o envoltório corpóreo, Jesus não tinha consciência de sua natureza divina? Mas, se fora assim, não teria mesmo pensado como Deus, sua natureza divina teria ficado no estado latente; só a natureza humana teria presidido à sua missão, aos seus atos morais como aos seus atos materiais. É, pois, impossível fazer abstração de sua natureza divina durante a sua vida, sem enfraquecer a sua autoridade.
Mas se falou como Deus, por que esse incessante protesto contra a sua natureza divina que, nesse caso, não podia ignorar? Estaria, pois, enganado, o que seria pouco divino, ou teria conscientemente enganado o mundo, o que o seria ainda menos. Parece-nos difícil sair desse dilema.
Admitindo-se que falou ora como homem, ora como Deus, a questão se complica, pela impossibilidade de distinguir o que vinha do homem e o que vinha de Deus.
No caso, onde haveria tido motivos para dissimular a sua verdadeira natureza durante a sua missão, o meio mais simples era dela não falar, ou se exprimir como o fez em outras circunstâncias, de maneira vaga e parabólica, sobre os pontos cujo conhecimento estava reservado para o futuro; ora, tal não é aqui o caso, uma vez que as suas palavras não têm nenhuma ambigüidade.
Enfim, se, apesar de todas essas considerações, se pudesse ainda supor que, quando vivo, ignorou a sua verdadeira natureza, essa opinião não é mais admissivel depois da sua ressurreição; porque, quando aparece aos seus discípulos, não é mais o homem que fala, é o Espírito desligado da matéria, que deve ter recobrado a plenitude de suas faculdades espirituais e a consciência de seu estado normal, de sua identificação com a divindade; e, entretanto, é então que diz: Eu subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus!
A subordinação de Jesus é ainda indicada pela sua própria qualidade de mediador, que implica a existência de uma pessoa distinta; é ele que intercede junto de seu Pai; que se oferece em sacrifício para resgatar os pecadores; ora, se é Deus, ele mesmo, ou lhe era igual em todas as coisas, não tinha necessidade de interceder, porque não se intercede junto de si mesmo.

VI. Opinião dos Apóstolos

Até o presente, apoiamos-nos exclusivamente nas próprias palavras do Cristo, como o único elemento peremptório de convicção, porque fora disso não pode haver senão opiniões pessoais.
De todas essas opiniões, as que têm mais valor, incontestavelmente, são as dos apóstolos, tendo em vista que eles o assistiram em sua missão, e que, se lhes deu instruções secretas quanto à sua natureza, delas se encontrará traços em seus escritos. Tendo vivido em sua intimidade, melhor do que quem quer que seja, deveriam conhecê-lo. Vejamos, pois, de que maneira o consideraram.
"Ó Israelitas, escutai as palavras que vou vos dizer: Sabeis que Jesus de Nazaré foi um homem que Deus tornou célebre entre vós pelas maravilhas, pelos prodígios e pelos milagres que fez por ele no vosso meio. – Entretanto, o crucificastes, e o fizestes morrer pelas mãos dos maus, tendo-o entregue por uma ordem expressa da vontade de Deus e por um decreto de sua presciência. – Mas Deus o ressuscitou, parando as dores do inferno, sendo impossível que ali fosse retido. – Porque Davi disse em seu nome: Tenho sempre o Senhor presente diante de mim, porque ele está à minha direita, a fim de que eu não seja abalado. – É por isso que o meu coração está alegre, que a minha língua cantou cânticos de alegria, e que mesmo a minha carne repousará em esperança; – porque não deixareis, minha alma no inferno, e que não permitis nunca que vosso Santo sofra a corrupção. – Vós me fizestes conhecer o caminho da vida, e me enchereis com a alegria que dá a visão do vosso rosto." (Atos dos Apóstolos, cap. II, v. 22 a 28. Pregação de São Pedro.)
"Depois, portanto, que foi elevado pelo poder de Deus, e que recebeu o cumprimento da promessa de que o Pai lhe enviara o Santo Espírito, ele difundiu esse Espírito Santo que vedes e entendeis agora; – porque Davi nunca subiu ao céu; – ora, ele mesmo disse: O Senhor disse ao meu Senhor:Sentai-vos à minha direita, até que eu haja reduzido os vossos inimigos a vos servir de escabelo. – Que toda a casa de Israel saiba, pois, muito certamente que Deus fez Senhor e Cristo esse Jesus que crucificastes." (Atos dos Apóstolos, capítulo II, v. de 33 a 36, Pregações de São Pedro.)
"Moisés disse aos nossos pais: O Senhor vosso Deus vos suscitará, dentre os vossos irmãos, um profeta como eu; escutai-o em tudo o que vos dirá. – Quem não escutar esse profeta será exterminado do meio do povo.
"Foi por vós primeiramente que Deus suscitou seu filho, e vo-lo enviou para vos bendizer, a fim de que cada um se convertesse de sua má vida." (Atos dos Ap., cap. III, v. 22, 23, 26. Pregação de São Pedro.)
"Nós vos declaramos, a todos vós e a todo povo de Israel, que é pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo de Nazaré, o qual haveis crucificado, e queDeus ressuscitou dentre os mortos; foi por ele que este homem está agora curado como o vedes diante de vós." (Atos dos Ap., cap. IV, v. 10. Pregação de São Pedro.)
"Os reis da Terra foram levantados, os príncipes se uniram juntos contra o Senhor e contra seu Cristo. – Porque Herodes e Pôncio Pilatos, com os Gentios e o povo de Israel, verdadeiramente se puseram de acordo, nesta cidade, contra vosso santo Filho Jesus, que consagrastes pela vossa unção, para fazer tudo o que o vosso poder e o vosso conselho ordenaram dever ser feito." (Atos dos Ap. cap. IV, v. 26, 27, 28. Prece dos Apóstolos.)
"Pedro e os outros apóstolos responderam: é necessário antes obedecer a Deus do que aos homens. – O Deus de nossos Pais ressuscitou Jesus que fizestes morrer dependurando-o no madeiro. – Foi ele que Deus elevou para a sua direita como sendo o príncipe e o salvador, para dar a Israel a graça da penitência e a remissão dos pecados." (V. Atos dos Ap., cap. V, v. 29, 30, 31. Respostas dos Apóstolos ao grande sacerdote.)
"Foi esse Moisés que disse aos filhos de Israel: Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta como eu, escutai-o.
Mas o Mais Alto não habita, nos templos feitos pela mão dos homens, segundo esta palavra do profeta: – O céu é o meu trono, e a terra é o meu escabelo. Que casa me edificareis, disse o Senhor? E qual poderia ser o lugar de meu repouso? "(Atos dos Apóstolos, cap. VII, v. 37, 48, 49. Discurso de Estêvão.)
"Mas Estêvão, estando cheio do Santo Espírito, e levantando os olhos aos céus, viu a glória de Deus, e Jesus que estava de pé à direita de Deus, e ele disse: Vejo abertos os céus, e o Filho do homem que está de pé à direita de Deus.
"Então, lançando grandes gritos, e tapando os ouvidos, lançaram-se juntos sobre ele; – e tendo-o arrastado fora dos muros da cidade, lapidaram-no; e as testemunhas depuseram as sua vestes aos pés de um jovem chamado Saulo (mais tarde São Paulo). – Assim lapidaram Estêvão, e invocava Jesus, e dizia: Senhor Jesus, recebei o meu Espírito." (Atos dos Apóstolos, cap. VII, v. de 55 a 58. Martírio de Estêvão)
Estas citações testemunham claramente o caráter que os apóstolos atribuíam a Jesus . A idéia exclusiva que delas ressalta é a de sua subordinação a Deus, da constante supremacia de Deus, sem que nada ali revele um pensamento de assimilação qualquer de natureza e de poder. Para eles, Jesus era um homem profeta, escolhido e bendito por Deus. Não foi, pois, entre os apóstolos que a crença na divindade de Jesus nasceu. São Paulo, que não conhecera Jesus, mas que, de ardente perseguidor se tornou o mais zeloso e o mais eloqüente discípulo da fé nova, e cujos escritos prepararam os primeiros formulários da religião cristã, não é menos explícito a esse respeito. É o mesmo sentimento de dois seres distintos, e da supremacia do Pai sobre o filho.
"Paulo, servidor de Jesus Cristo, apóstolo da vocação divina, escolhido e destinado para anunciar o evangelho de Deus, – que ele prometera antes, pelos seus profetas, nas escrituras santas, – com respeito a seu filho, que lhe nasceu, segundo a carne, do sangue e da raça de Davi; – que foi predestinado para ser filho de Deus, num soberano poder, segundo o Espírito de santidade, pela ressurreição dentre os mortos; com respeito, disse eu, a Jesus Cristo, nosso Senhor; – por quem recebemos a graça do apostolado, para fazer obedecer, ao mesmo tempo, todas as nações pela virtude de seu nome; – na fileira das quais estais também, como sendo chamadas por Jesus Cristo; – a vós que estais em Roma, que sois queridos de Deus, e chamados para serem santos; que Deus, nosso Pai, e Jesus Cristo, nosso Senhor, vos dêem a graça e a paz." (Romanoscap. I, v. 1 a 7.)
"Assim, estando justificados pela fé, tenhamos a paz com Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor.
Pois por que, quando estávamos na languidez do pecado, Jesus Cristo morreu por ímpios como nós, no tempo destinado por Deus?
Jesus Cristo não deixou de morrer por nós no tempo destinado por Deus. Assim, estando agora justificados pelo seu sangue, seremos com mais forte razão livrados por ele da cólera de Deus.
E não somente fomos reconciliados, a nós, nos glorificamos mesmo em Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor, por quem obtivemos essa reconciliação.
Se pelo pecado de um só vários morreram, a misericórdia e o dom de Deus se derramaram, com mais forte razão, abundantemente, sobre vários pela graça de um só homem, que é Jesus Cristo." (Romanos, cap. V, v. 1, 6, 9, 11, 15, 17.)
"Se somos filhos, somos também herdeiros; HERDEIROS de Deus e CO-HERDEIROS de Jesus Cristo, desde que, todavia, soframos com ele." (Romanos, cap. VIII, v. 17.)
"Se vos confessais de boca que Jesus Cristo é o Senhor e se credes de coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, sereis salvos." (Romanos, cap. X, v. 9.)
"Em seguida virá a consumação de todas as coisas, quando terá entregue o seu reino a Deus, seu Pai, e tiver destruido todo império, toda dominação, todo poder, – porque Jesus Cristo deve reinar até que seu Pai tenha posto todos os seus inimigos sob os pés. – Ora, a morte será o último inimigo que será destruído; porque as Escrituras disseram que Deus os pôs todos sob os pés e a todos sujeitou-lhe; é indubitável que nisso é preciso excetuar aquele que sujeitou todas as coisas. – Quando, pois, todas as coisas estiverem submetidas ao Filho, quando o Filho estiver, ele mesmo, submetido a aquele que lhe terá submetido todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos." (1a. aos Coríntios, cap. XV, v. de 24 a 28.)
"Mas veremos que Jesus, que se tornara, por um pouco de tempo, inferior aos anjos, foi coroado de glória e de honra por causa da morte que sofreu; Deus, em sua bondade, tendo querido que ele morresse por todos, – porque era bem digno de Deus, por quem e para quem são todas as coisas, que, querendo conduzir à glória vários filhos, consumou e aperfeiçoou pelo sofrimento, aquele que deveria ser o chefe e o autor de sua salvação.
"Assim, aquele que santifica e aqueles que são santificados, vêm todos de um mesmo princípio; é por isso que não ruboriza ao chamá-los seus irmãos, – dizendo: Eu anunciarei o vosso nome aos meus irmãos; eu cantarei os vossos louvores no meio da assembléia de vosso povo. – E, alhures, porei a minha confiança em Deus. E em um outro lugar: eis-me com os filhos que Deus me deu.
"Eis porque foi necessário que fosse em tudo semelhante aos seus irmãos, para ser para com Deus um pontífice compassivo e fiel em seu ministro, a fim de expiar os pecados do povo. – porque foi das penas e dos próprios sofrimentos, pelos quais foi tentado e provado, que tirou a virtude e a força de socorrer aqueles que, são também tentados." (Hebreus, cap. II, v. de 9 a 13, 17, 18.)
"Portanto, vós meus santos irmãos, que tendes parte na vocação celeste, considerai Jesus, que é o apóstolo e o pontífice da religião que professamos; – que é fiel àquele que o estabeleceu nesse cargo, como Moisés lhe foi fiel em toda sua casa; – porque ele foi julgado digno de uma glória tanto maior do que a de Moisés, do que aquele que edificou a casa, e mais estimável do que a própria casa; porque não há casa que não haja sido construída por alguém. Ora, aquele que é o arquiteto e o criador de todas as coisas é Deus." (Hebreus, cap. III, v. de 1 a 4.)

VII. Predições dos profetas concernentes a Jesus

Além das afirmações de Jesus e da opinião dos apóstolos, há um testemunho do qual os mais ortodoxos dos crentes não saberiam contestar o valor, uma vez que o apontam constantemente como artigo de fé; é o do próprio Deus; quer dizer, o dos profetas, falando sob a inspiração e anunciando a vinda do Messias. Ora, eis as passagens da Bíblia consideradas como a predição desse grande acontecimento.
"Eu o vejo, mas não agora; eu o vejo mas não de perto; uma estrela procede de Jacó, e um cetro se levanta de Israel e trespassa os chefes de Moab, e destruirá todos os filhos de Seth." (Números, XXIV, v. 17.)
"Eu lhes suscitarei um profeta, como tu, de entre seus irmãos, e colocarei as minhas palavras em sua boca, e lhes dirá ele o que eu lhe tiver ordenado. E ocorrerá que, quem não escutar as palavras que dirá em meu nome, disso lhe pedirei conta." (Deuteronômio. XVIII, v. 18, 19.)
"Ocorrerá, pois, quando os dias tiverem se cumprido para lá levar-te com teus pais que farei levantar a tua posteridade depois de ti, um dos teus filhos, e estabelecerei o seu reino, e ele me construirá uma casa, e afirmarei seu trono para sempre. Eu lhe serei pai e ele me será filho; e não retirarei a minha misericórdia dele, como a retirei daquele que foi antes de ti, e o estabelecerei em minha casa e em meu reino para sempre, e seu trono será afirmado para sempre." (I, Paralipômenos, XVII, v. de 11 a 14.)
"É porque o próprio Senhor vos dará um sinal. Eis: uma virgem ficará grávida, e ela parirá um filho, e será chamado seu nome Emmanuel." (Isaías, VII, v. 14.)
"Porque a criança nos nasceu, o Filho nos foi dado, e o poder foi posto sobre o seu ombro, e se chamará seu nome o Admirável, o Conselheiro, o Deus forte, o Poderoso, o Pai da eternidade, o Príncipe da paz." (Isaías, IX, v. 5)
"Eis meu servidor, eu o sustentarei; é o meu eleito, minha alma nele colocou sua afeição; coloquei o meu Espírito sobre ele; ele exercerá a justiça entre as nações.
"Não se retirará nunca, nem se precipitará nunca, até que haja estabelecido a justiça sobre a Terra, e os seres se detiverem à sua lei." (Isaias, XLII, v. 1 e 4.)
"Ele gozará do trabalho de sua alma, e nisso será saciado; e meu servidor justo nisso justificará vários, pelo conhecimento que terão dele e ele mesmo levará suas iniqüidades." (Isaías, LIII, v. 11.)
"Rejubila-te extremamente, filha de Sião; lance gritos de alegria, filha de Jerusalém! Eis: teu rei virá a ti, justo e salvador humilde, e montará sobre um asno, e sobre o potro de uma jumenta. E proibirei os carros de guerra de Efraim, e os cavalos de Jerusalém, e o arco do combate será também proibido e teu rei falará de paz às nações; e seu domínio se estenderá desde um mar ao outro mar, e desde o rio até os confins da Terra." (Zacarias, IX, v. 9, 10.)
"E ele (o Cristo) se manterá, e governará pela força do Eterno, e com a magnificência do nome do Eterno, seu Deus. E eles farão as pazes, e agora será glorificado até os confins da Terra, e será ele que fará a paz. (Miquéias, V, v. 4.)
A distinção entre Deus e seu enviado futuro está caracterizada da maneira mais formal; Deus o designa seu servidor, por conseqüência seu subordinado; em suas palavras, nada há que implique a idéia de igualdade de poder, nem de consubstancialidade entre as duas pessoas. Deus ter-se-ia enganado, e os homens vindos três séculos após Jesus Cristo teriam visto mais justo do que ele? Tal parece ser a sua pretensão.

VIII. O Verbo se fez carne

"No começo era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. – Ele estava no começo com Deus. – Todas as coisas foram feitas por ele; e nada do que fez não fez sem ele. – Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens; – E a luz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
"Houve um homem enviado de Deus que se chamava João. – Ele veio para servir de testemunha, para dar testemunho à luz, a fim de que todos cressem por ele. – Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho daquele que era a luz.
"Aquela era a verdadeira luz que clareia todo homem vindo neste mundo. – Ele estava no mundo e o mundo nada fez por ele, e o mundo não o conheceu. – Ele veio aos seus e os seus não o receberam. – Mas deu a todos aqueles que o receberam o poder de serem feitos filhos de Deus, àqueles que creram em seu nome, que não são nascidos do sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo.
"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e vimos a sua glória, sua glória tal quanto o Filho único deveria recebê-la do Pai; ele, digo eu, habitou entre nós, cheio de graça e de verdade." (João, cap. 1º, v. de 1 a 14.)
Esta passagem dos Evangelhos é a única que, à primeira vista, parece encerrar implicitamente uma idéia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus; é também aquela sobre a qual se estabeleceu, mais tarde, a controvérsia a este respeito. Essa questão da divindade de Jesus não chegou senão gradualmente; nasceu das discussões levantadas a propósito das interpretações dadas, por alguns, às palavras Verbo e Filho. Não foi senão no quarto século que ela foi adotada, em princípio, por uma parte da Igreja. Esse dogma é, pois, o resultado de uma decisão dos homens e não de uma revelação divina.
Há de início a notar que, as palavras que citamos mais acima, são de João, e não de Jesus, e que, admitindo que não hajam sido alteradas, não exprimem, em realidade, senão uma opinião pessoal, uma indução onde se encontra o misticismo habitual de sua linguagem; elas não poderiam, pois, prevalecer contra as afirmações reiteradas do próprio Jesus.
Mas, aceitando-as tais quais são, elas não resolvem de nenhum modo a questão no sentido da divindade, porque se aplicariam igualmente a Jesus, criatura de Deus.
Com efeito, o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Tendo Jesus recebido essa palavra diretamente de Deus, com a missão de revelá-la aos homens, assimilou-a; a palavra divina, da qual estava penetrado, se encarnou nele; trouxe-a ao nascer, e foi com razão que Jesus pôde dizer: O Verbo se fez carne, e habitou entre nós. Jesus pode, pois, estar encarregado de transmitir a palavra de Deus sem ser Deus, ele mesmo, como um embaixador transmite as palavras de seu soberano, sem ser o soberano. Segundo o dogma da divindade, é Deus que fala; na outra hipótese, ele fala pela boca de seu enviado, o que não rouba nada à autoridade de suas palavras.
Mas quem autoriza essa suposição antes do que outra? A única autoridade competente para decidir a questão são as próprias palavras de Jesus, quando disse: "Eu nunca falei de mim mesmo, mas aquele que me enviou me prescreveu , por seu mandamento o que devo dizer; - minha doutrina não é a minha doutrina, mas a doutrina daquele que me enviou, a palavra que ouvistes não é, minha palavra, mas a de meu Pai que me enviou." É impossível exprimir-se com mais clareza e precisão.
A qualidade de Messias ou enviado, que lhe é dada em todo o curso dos Evangelhos, implica uma posição subordinada com relação àquele que ordena; aquele que obedece não pode estar igual àquele que manda. João caracteriza essa posição secundária, e, por conseqüência, estabelece a dualidade das pessoas quando disse: E vimos a sua glória, tal quanto "o Filho único deveria receber do Pai"; porque aquele que recebe não pode ser igual àquele que dá, e aquele que dá a glória não pode ser igual àquele que a recebe. Se Jesus é Deus, possui a glória por si mesmo e não a espera de ninguém; se Deus e Jesus são um único ser sob dois nomes diferentes, não poderia existir entre eles nem supremacia, nem subordinação; desde então, que não há paridade absoluta de posição, é que são dois seres distintos.
A qualificação de Messias divino não implica a igualdade entre o mandatário e o mandante, como a do enviado real entre um rei e seu representante.
Jesus era um messias divino pelo duplo motivo que tinha a sua missão de Deus, e que as suas perfeições o colocavam em relação direta com Deus.

IX. Filho de Deus e filho do homem

O título de Filho de Deus, longe de implicar a igualdade, é bem antes o indício de uma submissão; ora, deve estar submetido a alguém e não a si mesmo.
Para que Jesus fosse o igual absoluto de Deus, seria necessário que fosse como ele, de toda a eternidade, quer dizer, que fosse incriado; ora, o dogma diz que Deus o engendrou de toda a eternidade; mas quem disse engendrar diz criar; que isso seja, ou não, de toda a eternidade, não se é menos uma criatura, e, como tal, subordinada a seu Criador; é a idéia implícita encerrada na palavra Filho.
Jesus nasceu no tempo? De outro modo dito: foi um tempo na eternidade, na eternidade passada, onde ele não existia? Ou bem é co-Eterno com o Pai? Tais são as sutilezas sobre as quais discutiu-se durante os séculos. Sobre qual autoridade se apóia a doutrina da co-eternidade passada ao estado de dogma? Sobre a opinião dos homens que a estabeleceram. Mas esses homens, por qual autoridade fundaram a sua opinião? Isso não é sobre a de Jesus, uma vez que se declara subordinado; não é sobre a dos profetas que o anunciam como o enviado e o servidor de Deus. Em quais documentos desconhecidos, mais autênticos do que os Evangelhos encontraram essa doutrina? Aparentemente, na consciência e na superioridade de suas próprias luzes.
Deixemos, pois, essas vãs discussões que não poderiam terminar, e cuja solução mesmo, se fora possível, não tornaria os homens melhores. Digamos que Jesus é Filho de Deus, como todas as criaturas; ele o chama seu Pai como nós aprendemos a chamar nosso Pai. É o Filho bem-amado de Deus porque, tendo chegado à perfeição que o aproxima de Deus, possui toda a sua confiança e todo o seu afeto; ele se diz, ele mesmo, Filho único, não que seja o único ser chegado a esse grau, mas porque só ele estava predestinado a cumprir essa missão sobre a Terra.
Se a qualificação de Filho de Deus parecia apoiar a doutrina da divindade, não era, do mesmo modo daquela do Filho do homem que Jesus se deu em sua missão, e que fez o assunto de muitos comentários.
Para melhor compreender-lhe o verdadeiro sentido, é necessário remontar à Bíblia, onde está dada por ele mesmo ao profeta Ezequiel.
"Tal foi a imagem da glória do Senhor que me foi apresentada. Tendo, pois, visto essas coisas, lancei meu rosto por terra: e ouvi uma voz que me falava e disse: Filho do homem, tende-vos sobre os vossos pés e eu falarei convosco. – E o Espírito, tendo me falado da sorte, entrou em mim, e me firmou sobre os meus pés e eu o ouvi que me falava e me dizia: Filho do homem, eu vos envio aos filhos de Israel, para um povo apóstata que se retirou de mim. Violaram até este dia, eles e seus pais, a aliança que fiz com eles." (Ezequiel, cap. II, v. 1, 2, 3.)
"Filho do homem, eis que vos prepararam os grilhões; a eles vos prenderão e deles não saireis nunca." (Cap. III, v. 25.)
"O Senhor me dirigiu ainda a sua palavra e me disse: – E vós, Filho do homem, eis o que disse o Senhor Deus à terra de Israel: o fim vem; ele vem, esse fim, sobre os quatro cantos desta terra." (Cap. VII, v. 1, 2.)
"No décimo dia, do décimo mês, do nono ano, o Senhor me dirigiu a palavra e me disse: – Filho do homem, marcai bem esse dia que o rei de Babilônia reuniu as sua tropas diante de Jerusalém." (Cap. XXIV, v. 1, 2.)
"O Senhor me disse ainda estas palavras: – Filho do homem, vou vos ferir com uma ferida e vos arrebatar o que é mais agradável aos vossos olhos; mas não fareis nunca lamentos fúnebres; não chorareis nunca, e as lágrimas nunca correrão em vosso rosto. – Suspirareis em segredo, e não fareis luto nunca como foi feito para os mortos; vossa coroa permanecerá ligada sobre a vossa cabeça, e tereis vossos sapatos em vossos pés: não cobrireis o rosto e não comereis nunca a carne que se dá àqueles que estão no luto. – Eu falei, pois, de manhã ao povo, e à noite minha mulher morreu. No dia seguinte de manhã, fiz o que Deus me ordenara. (Cap. XXIV, v. de 15 a 18.)
"O Senhor me falou ainda e me disse: Filho do homem, profetizai com respeito aos pastores de Israel; profetizai e dizei aos pastores: Eis o que disse o Senhor Deus: Infelizes os pastores de Israel que apascentam a si mesmos: os pastores não apascentam os seus rebanhos?" (Cap. XXXIV, v. 1, 2.)
"Então eu ouvi que me falava, no interior da casa; e o homem que estava próximo de mim me disse: - Filho do homem, eis aqui o lugar de meu trono: o lugar onde porei os meus pés, e onde permanecerei para sempre no meio dos filhos de Israel, e a casa de Israel não profanará mais meu santo nome no futuro, nem eles, nem seus reis, por suas idolatrias, pelos sepulcros de seus reis, nem pelos seus nobres." (Cap. XLIII, v. 6, 7.)
"Porque Deus nunca ameaça como os homens, e não entra nunca em furor como o Filho do homem." (Judite, Cap. VIII, v. 15.)
É evidente que a qualificação de Filho do homem quer dizer isto: que nasceu do homem, por oposição àquilo que está fora da Humanidade. A última citação, tirada do livro de Judite, não deixa dúvida sobre o significado desta palavra, empregada num sentido muito literal. Deus não designou Ezequiel senão sob esse nome, sem dúvida para lhe lembrar que, apesar do dom da profecia que lhe foi concedido, com isso não pertencia menos à Humanidade, e a fim de que não se cresse de uma natureza excepcional.
Jesus se dá a si mesmo essa qualificação com uma persistência notável, porque não é senão em muito raras circunstâncias que se diz Filho de Deus. Em sua boca não pode ter outro significado que o de lembrar que, também ele, pertence à Humanidade: por aí se assimila aos profetas que o precederam e aos quais se comparou fazendo alusão à sua morte, quando disse: JERUSALÉM QUE MATA OS PROFETAS? A insistência que coloca em se designar como filho do homem, parece um protesto antecipado contra a qualidade que prevê que dar-se-lhe-á mais tarde, a fim de que seja bem constatado que ela não saiu de sua boca.
É notável que, durante essa interminável polêmica que apaixonou os homens durante uma longa série de séculos, e dura ainda, que acendeu as fogueiras e fez verter ondas de sangue, disputou-se sobre uma abstração, a natureza de Jesus, da qual se fez a pedra angular do edifício, embora disso não haja falado; e que se haja esquecido uma coisa, a de que o Cristo disse ser toda a lei e os profetas: o amor de Deus e do próximo, e a caridade, da qual fez a condição expressa de salvação. Agravou-se sobre a questão da afinidade de Jesus com Deus, e se passou completamente sob silêncio as virtudes que ele recomendou e das quais deu o exemplo.
O próprio Deus, se apagou diante da exaltação da personalidade do Cristo. No símbolo de Nicéia, está dito simplesmente: Cremos em um Deus único, etc.; mas como é esse Deus? De nenhum modo se fez menção aos seus atributos essenciais: a soberana vontade e a soberana justiça. Essas palavras seriam a condenação dos dogmas que consagram sua parcialidade para com certas criaturas, sua inexorabilidade, seu ciúme, sua cólera, seu espírito vingativo, dos quais se autoriza para justificar as crueldades cometidas em seu nome.
Se o símbolo de Nicéia, que se tornou o fundamento da fé católica, estava segundo o Espírito do Cristo, por que o anátema com que o termina? Não é a prova de que é obra da paixão dos homens? Aliás, a que se deve a sua adoção? À pressão do imperador Constantino que disso fizera uma questão mais política do que religiosa. Sem a sua ordem, o Concílio de Nicéia não ocorreria; sem a intimidação que exerceu, é mais do que provável que o Arianismo o arrebataria. Portanto, dependeu da autoridade soberana de um homem que não pertencia à Igreja, que reconheceu mais tarde o erro que fizera politicamente, e que inutilmente procurou retornar sobre os seus passos conciliando as partes, para que não sejamos arianos em lugar de sermos católicos, e para que o Arianismo não fosse hoje a ortodoxia, e o catolicismo a heresia.
Depois de dezoito séculos de lutas e de disputas vãs, durante os quais se pôs completamente de lado a parte mais essencial do ensino do Cristo, a única que poderia assegurar a paz da Humanidade, se está ainda nessas discussões estéreis que não levaram senão a perturbações, engendraram a incredulidade, e cujo objeto não satisfaz mais à razão.
Há, hoje, uma tendência manifesta da opinião geral de retornar às idéias fundamentais da primitiva Igreja, e à parte moral do ensinamento do Cristo, porque é a única que pode tornar os homens melhores. Aquela é clara, positiva, e não pode dar lugar a nenhuma controvérsia. Se a Igreja houvesse seguido este caminho desde o princípio, seria hoje onipotente em lugar de estar em declínio; teria reunido a imensa maioria dos homens em lugar de estar despedaçada pelas facções.
Quando os homens caminharem sob essa bandeira, se estenderão mãos fraternas, em lugar de se lançarem anátemas e maldições, por questões que, na maioria do tempo, não compreendem.
Essa tendência da opinião é o sinal de que chegou o momento para levar a questão para o seu verdadeiro terreno.
Obras Póstumas

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