a partir de maio 2011

terça-feira, 10 de abril de 2012

LIVRO:O PRIMADO DE KARDEC:Sergio Aleixo 1

Metodologia espírita e cisma rustenista

PREFÁCIO

Allan Kardec, o insigne Codificador do Espiritismo, inspirado nos ditados dos espíritos superiores, por diversas vezes chamou-nos a atenção para o perigo de aceitarmos sem exame o que nos chega do mundo espiritual. Ressaltou, sempre que o pôde, a importância do estudo e do aprofundamento das questões, em nossa incessante busca pela verdade, para que não nos deixássemos levar por concepções fantasiosas e exóticas, sempre oriundas da ignorância acerca das leis naturais que nos regem a todos.
Confirmando este esforço conjunto dos espíritos verdadeiramente comprometidos com o bem e a justiça, o Espírito Erasto, presente à reunião geral dos espíritas de Bordéus — cidade em que o advogado J.-B. Roustaing estava prestes a desenvolver suas estranhas teses —, advertiu acerca da luta que teriam aqueles adeptos do Espiritismo contra uma turba de espíritos inferiores, razão pela qual afirmou ser-lhe obrigação premuni-los contra o perigo.
Da mesma forma, Sergio Aleixo nos brinda com a presente obra, cumprindo com o seu dever de espiritista, preocupado que é, e como todos o devemos ser, com os rumos do movimento espírita no Brasil e no mundo. Deixou corajosamente de lado a postura inerme que predomina em nosso meio, que, a pretexto de caridade, fecha os olhos para os desvios, adulterações e tentativas de ridicularização do Espiritismo.
Munido de dados históricos hauridos em fontes fidedignas, como bom discípulo de J. Herculano Pires, Sergio Aleixo utiliza seu grande poder de observação e análise para mostrar que as teses rustenistas (roustainguistas) aportaram no Brasil, depois de ignoradas na França à época de Kardec, como um autêntico “Cavalo de Troia”, que tem por objetivo provocar a cizânia, o cisma em nossas fileiras, justamente como Erasto, em Bordéus, previra que aconteceria, pela ação de “ditados mentirosos e astuciosos, emanados de uma turba de espíritos enganadores, imperfeitos e maus”.
Nada mais exato, já que, para melhor ludibriarem, os espíritos que se comunicaram com Roustaing, através de uma só médium, Émilie Collignon, valeram-se, em seus ditados, de nomes venerados: os apóstolos de Jesus, Moisés, etc.
Porém, como os prezados leitores poderão observar, foram e ainda são muitos os artifícios utilizados na tentativa de impor aos espíritas toda uma série de conceitos, ideias e teorias que, além de antidoutrinárias, são absurdas e ilógicas, e que, por diversas vezes, se chocam com a razão e o bom-senso.
Este trabalho de Sergio Aleixo é, portanto, de fundamental importância, como mais um alerta que nos chega, para que possamos separar o joio do trigo em matéria de Espiritismo, ajudando-nos, ao demais, a entender como tudo se passou (e passa) e os meios empregados pelos espíritos mistificadores e falsos sábios na tentativa inglória de provocar a derrocada do Espiritismo com enxertias que se vão espraiando pouco a pouco, tal qual erva daninha num jardim de flores.
Aproveitemos todos esta oportunidade de estudo e reflexão, de modo que possamos colaborar para a unidade doutrinária a partir do melhor entendimento do Espiritismo em suas bases sólidas, que se assentam na codificação kardeciana. É seguindo este imperativo que o confrade Sergio Aleixo nos presenteia, mais uma vez, com estudos diligentes e questionadores, que merecem, por parte de todos os espíritas sérios, muita atenção e respeito, a fim de que não nos tornemos pedra de tropeço àquilo que nos é mais caro: o Espiritismo.

Artur Felipe de A. Ferreira*



* Palestrante e escritor espírita. Autor do livro Ramatis: Sábio ou Pseudossábio? Capivari (SP): E.M.E., 1997.

INTRODUÇÃO

Este livro remete ao primado metodológico de Allan Kardec [1804-1869] na fundação e constituição da Doutrina Espírita. Fiz aqui análises críticas motivadas pelo contido nas páginas 43 a 76 do prefácio de muito antigo exemplar do tomo primeiro da obra Espiritismo Christão ou Revelação da Revelação — Os Quatro Evangelhos, do advogado Jean-Baptiste Roustaing [1805?-1879], da cidade francesa de Bordéus. Foi o tomo impresso em Portugal (Porto, 1920) sob a responsabilidade da Federação Espírita Brasileira — F.E.B., com tradução de Guillon Ribeiro.
Esta parte do prefácio tem o seguinte título, que transcrevo no português de suas mofadas páginas: “Do caracter e da importancia da Revelação da Revelação como abridôra da phase theologica — Sua opportunidade manifesta e incontestavel — Resposta ao artigo de Allan Kardec (Revista, de junho de 1867)”.[1]
Tais laudas, porém, foram suprimidas das edições mais recentes de Os Quatro Evangelhos. Talvez a editora haja percebido ser um erro continuar a publicá-las; afinal, Roustaing abdica, ali, das possíveis virtudes que Kardec lhe havia atribuído na Revista Espírita de junho de 1861; trata-se da prova documental de que Roustaing e seus discípulos se tornaram encarniçados contraditores do Codificador do Espiritismo e dos espíritas. Mesmo assim, o estatuto da F.E.B. ainda registra:

Art. 1.º A Federação Espírita Brasileira [...] tem por objeto e fins: I — O estudo, a prática e a difusão do Espiritismo em todos os seus aspectos, com base nas obras da Codificação de Allan Kardec e no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo; [...] Parágrafo único — Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão do Espiritismo compreenderão, também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita.

Originalmente, as páginas omitidas eram de um livro chamado Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários, de 1883, publicado pelos discípulos deste advogado a título de “memória de além-túmulo” e vendido, à época, pelo livreiro Feret, Passagem da Intendência, 15, Bordéus, e na Livraria das Ciências Psicológicas, 5, Rua des Petits-Champs, Paris.
Não acalento nenhuma pretensão ao ineditismo, pois o material de que também trata este meu trabalho constituiu objeto de muitos comentários no passado, foi publicado em jornais espíritas, alguns de grande circulação, e está ainda, ao que me parece, disponível em outros sítios da rede mundial de computadores, que não o sítio desta obra.[2]
O que me levou a escrever este livro foi apenas o desejo de compartilhar a busca de uma melhor compreensão para um capítulo praticamente desconhecido da História do Espiritismo, o que conduz fatalmente ao problema crucial da metodologia para constituição do conhecimento verdadeiramente espírita.
Da propaganda centenária da F.E.B. transparece que Roustaing fora sempre amigo de Kardec e distinto adepto da Doutrina Espírita. Mas a verdade é que se tornou um contraditor em franca campanha de subversão da ordem doutrinária.
As páginas que foram omitidas no prefácio das edições mais recentes de Os Quatro Evangelhos têm importância para os espiritistas atuais, em função de constituir o manifesto da primeira facção declaradamente cismática do movimento espírita.
Além disto, a parte de prefácio amputada pela editora é muito sintomática por ser uma espécie de matriz simbólica do que seria, mais tarde, no todo ou em parte, o ideário de quase todas as correntes deturpadoras do pensamento kardeciano.
O flagrante é inequívoco: 1.º pretensão de, por mil nadas, julgar-se à frente de Kardec e mesmo de substituí-lo; 2.º constante invocação de pluralismo inconsequente, de alteridade irresponsável, que levaria à diluição do Espiritismo nos horizontes embriagados do ecletismo; 3.º messianismo delirante, anunciador da volta próxima do Cristo, cultor da infalibilidade bíblica e da autoridade do Papa; 4.º “a moral” como “apenas um passaporte” dos espíritos obsessores, para que possam “dominar e impor as suas ideias, por mais absurdas que sejam”.[3] Toda a razão ao nosso J. Herculano Pires: “Roustaing é o antikardec. Se Kardec é o bom-senso, Roustaing é a falta de senso. [...] há uma intenção evidente: a de lançar o ridículo sobre o Espiritismo. [...] Os Quatro Evangelhos é o Cavalo de Troia do Espiritismo”.[4]
De fato, sem um conhecimento desvelado de sua verdadeira História, pouco se poderá realizar em efetivo benefício da vulgarização e do desenvolvimento da Doutrina Espírita. Constitui dever moral de todos os seus adeptos sinceros e devotados identificar os efeitos da influência sorrateira dos ensinos rustenistas, já que potencializaram quase todas as mistificações que vieram a grassar sobre o nosso movimento, sob o patrocínio, infelizmente, de sucessivas diretorias e conselhos da centenária Federação Espírita Brasileira, que propagaram tais ensinos mediante um poderoso parque editorial e uma considerável infraestrutura institucional. Aliás, a confissão do credo rustenista, ao que parece, teria chegado a ser exigência estatutária outrora imposta a diretores e conselheiros da F.E.B., conforme antiga observação de Júlio Abreu Filho.

[...] foi por um abuso de confiança, tomando procurações dos kardecistas votantes, que se deveriam reunir em assembleia, na qual seria eleita a direção da F.E.B., que, num golpe baixo, os roustainguistas assaltaram o poder; feito isto, reformaram os seus estatutos, introduzindo um dispositivo que exige a confissão do credo roustainguista para poder participar do conselho e da diretoria; ainda pelos estatutos, a diretoria completa o conselho, e este elege a diretoria. [...] Se houvesse essa unidade de vistas que [se] proclama, se não houvesse uma divisão de águas, estabelecida pelos roustainguistas, os kardecistas não encontrariam ali as portas trancadas. Se ali forem, não se lhes pede colaboração mas subserviência [...].[5]

Não é alcançável o direito de os rustenistas e congêneres pensarem como quiserem. Mas se pode questionar que apresentem ao movimento espírita, a título de “Espiritismo”, conceitos oriundos de obras em franco desalinho com a codificação kardeciana. Eis o que faço aqui. Até quando se sustentará a “unificação” nas bases carcomidas do Pacto de 5 de outubro de 1949, que atrela nosso movimento aos equívocos lastimáveis de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, e que, infelizmente, assim como o rustenismo, ainda é causa estatutária da F.E.B.?[6]No mais, que o Cristo Jesus esteja sempre conosco, orientando-nos a estima recíproca na dimensão humanitária a cujo exercício a Vida Maior constantemente nos exorta.



[1] Ressalte-se que há um erro de data, pois o artigo de Kardec está na Revista Espírita de junho de 1866, e não 1867: Notícias Bibliográficas. Os Evangelhos Explicados. Obs.: Herculano Pires certamente leu esta Resposta, o que se infere destes dizeres: “O Codificador, sempre compreensivo e generoso, não quis aprofundar a análise do texto. Isso não o livrou da resposta agressiva que o advogado de Bordeaux lhe deu. [...] Apesar do seu espírito natural de tolerância, Kardec não deixou de assinalar a inocuidade dessa obra, o que exasperou Roustaing, como se vê na resposta que este lhe deu”. Até foi induzido em erro o mestre paulista pela Resposta de Roustaing, consignando o ano de 1867, e não 1866: “Kardec advertiu, ao registrar o aparecimento da obra, que ela era demasiado vasta. Posteriormente assinalou, como vemos no próprio artigo de crítica publicado na Revista Espírita, número de junho de 1867, e reproduzido para contestação no primeiro volume da obra de Roustaing, que esta obra nada mais fez do que avançar além dos limites exigidos pelo bom-senso, não se afastando – quando naqueles limites – da linha por ele traçada em O Evangelho Segundo o Espiritismo”. (O Verbo e a Carne. 2.ª ed., Paidéia, 2003, p. 34.)
[2] http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/os-quatro-evangelhos-feb-1920.html. Obs.: Um adepto do rustenismo publicou a Resposta em sua totalidade, exemplar que gentilmente enviou ao meu endereço. No entanto, a íntegra só ratifica a parte. Em vão ali se procurará o que minimize as desastrosas faltas do advogado bordelês. (1.ª ed., Jorge Damas Martins, jan/2007.)
[3] O Livro dos Médiuns, 246. Obs.: Para O Livro dos EspíritosO Livro dos Médiuns e O Evangelho Segundo o Espiritismo, citei a tradução de Herculano Pires, LAKE; para A Gênese, Albertina Escudeiro Sêco, Léon Denis Gráfica e Editora, 2.ª ed, 2008; para O Que é o EspiritismoObras Póstumas e as Revistas Espíritas, as versões disponibilizadas pela F.E.B. em download; paraViagem Espírita em 1862, Wallace Leal Rodrigues, O Clarim. Eventuais exceções foram apontadas; todos os textos, adaptados ao Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
[4] O Verbo e a Carne. O Roustainguismo à Luz dos Textos. VI e X.
[5] O Verbo e a Carne. Erros Doutrinários. VI.

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