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quinta-feira, 26 de abril de 2012

HÁ UM SÉCULO E MEIO

 Escrito por Jáder Sampaio 
Ter, 10 de Abril de 2012 15:03
O espiritismo não é uma produção solitária de um grupo perdido na capital francesa do século 19. O estudo dos fenômenos espirituais e da vida após a morte também não é uma produção burguesa, classe social adormecida para os problemas do mundo e do que hoje se chama de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Allan Kardec deu-lhe o status de reflexão sobre o mundo e de adversário das vias materialistas para o futuro da humanidade.
 
Vemos alguns momentos distintos do trabalho de Rivail. No primeiro, ele reagiu às notícias que propunham a existência e interferência dos espíritos dos chamados mortos em nossas vidas. Em seguida, pesquisador, não se furtou de estudar os fenômenos espirituais, considerando-os a priori como fruto de alguma força física, como o magnetismo animal de Mesmer. Da observação cuidadosa dos fatos, ele teorizou, encontrando diversas explicações para o que via, mas sustentando a existência e comunicabilidade dos espíritos.
 
Uma vez aceita a mediunidade, começou a explorar e a checar as informações oriundas dos médiuns de sua época, o que lhe permitiu escrever uma opinião coletiva dos espíritos, através de um artifício curioso: buscava ideias semelhantes, lógicas e racionais, obtidas por médiuns diferentes, de preferência desconhecidos entre si. Seu trabalho não foi apenas passivo. Ele interrogou os espíritos comunicantes e, não raro, procurou médiuns diferentes para fazer as mesmas questões. A revisão de O Livro dos Espíritos para a publicação da segunda edição é uma prova viva disto.
 
Obtidos resultados importantes com as pesquisas, começou o trabalho de publicação e divulgação de suas observações e conclusões em diálogo com a espiritualidade. Fundou seu próprio grupo de pesquisas, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), iniciou a publicação dos livros da codificação, e iniciou a publicação da Revista EspíritaJornal de Estudos Psicológicos, periódico mensal e denso, que o colocou em comunicação à distância com o mundo leitor de sua época.
 
Na falta de um meio de comunicação como a internet, Kardec começou a receber cartas da França, de diversos países europeus, do norte da África e da América. Embora ele negasse que a SPEE fosse a sede de algum movimento federativo, situando-a como um grupo de estudos e pesquisas, ele não se negava a responder as cartas e a emitir sugestões e orientações a quem quer que o pedisse com boas intenções e seriedade.
 
Em 1860, Kardec fez uma visita a Lyon, e segundo Wallace Rodrigues foi recebido no Centro Espírita de Broteaux, por Dijon e sua esposa, um casal operário. No ano seguinte, volta à cidade dos mártires e encontra novos grupos formados.
 
Fizemos esta introdução para que possamos entender o livro que foi traduzido e publicado pela Casa e Editora O Clarim e que se chama Viagem Espírita em 1862*, de autoria de Allan Kardec.
 
 
Dois anos após sua primeira viagem com finalidade espírita, Kardec realizou a “mais extensa” de toda a sua vida. Esboçamos um pequeno mapa que mostra em que cidades ele esteve pela França.
 
As informações sobre a viagem impressionam. São vinte cidades e mais de cinquenta reuniões. Imagino que o deslocamento se deu por algum veículo de tração animal ou via férrea. O calçamento das estradas e vias seguramente não era nada igual ao que temos hoje, e as despesas, como Allan Kardec fez questão de deixar claro, correram por conta própria, ao contrário do que acusaram seus adversários.
 
 
Os relatos da viagem foram publicados sob a forma de livro para evitar a ocupação de um grande espaço da Revista Espírita. Kardec deseja mostrar não apenas o grande crescimento do movimento espírita francês, mas igualmente levar ao grande público o conteúdo de suas palestras.
 
São quatro os grandes temas tratados pelo conferencista:
 
Ele aborda os adversários do espiritismo, agrupando-os em adversários naturais e adversários entre os adeptos do espiritismo. Estes últimos já haviam sido descritos em O Livro dos Médiuns: os que apenas se interessam por fenômenos, os que entendem haver uma moral decorrente do estudo do espiritismo, mas não a praticam (espíritas experimentadores).
 
Kardec reafirma que ser espírita não é apenas uma questão de crença, mas de caráter também, embora reconheça que aqueles que ele chama de espíritas-cristãos ou verdadeiros espíritas, possam não conseguir viver em plenitude a ética espírita, cometendo erros, mas fazem esforços para torná-la cotidiana. Ele parafraseia sua própria frase de efeito, explicando: “Fora da caridade não há verdadeiros espíritas”.
 
Outro ponto alto do “recado” de Kardec aos novos espíritas é uma espécie de síntese dos princípios da moral espírita, que transcrevemos aqui:
  • Amai-vos uns aos outros.
  • Perdoai os vossos inimigos.
  • Retribuí o mal com o bem.
  • Não ter ira, rancor, animosidade, inveja ou ciúme.
  • Ser severos consigo mesmos e indulgentes com os outros.
Kardec discute com seu público sobre as animosidades no meio espírita. Essas são sesquicentenárias, pelo visto, talvez porque façam parte do espírito humano, que se encontra em processo de educação no meio espírita, mas têm impulsos de difícil controle.
 
Ele fala da mediunidade paga, criticando-a pela grande propensão à fraude, e dá uma alternativa: a cobrança de mensalidades para o funcionamento das sociedades. Uma cobrança que não é imposta, que respeita os que não podem pagar, e que possibilita o exercício mediúnico (mas certamente não remunerará nenhum médium por sua faculdade).
 
Um segundo problema, grave ainda nos dias de hoje, são os que utilizam do espiritismo como um pedestal para se promoverem. Não se trata da promoção do trabalho espírita ou do pensamento espírita, mas da personalidade. Estes o fazem sem interesses econômicos, mas como uma forma compensatória para os insucessos da vida pessoal, profissional e mesmo social, fora da esfera da comunidade espírita. Continua atualíssimo e nos convidando à reflexão.
 
 
O codificador fala dos ciúmes para com o sucesso de sua obra. Os estudiosos de história do espiritismo já identificaram alguns dos atores sociais que cabem dentro desta avaliação. Médiuns que participaram dos grupos frequentados por Rivail, que tinham sua centralidade aí e passaram a criticá-lo após o sucesso deO Livro dos Espíritos, por exemplo.
 
Os médiuns fascinados por espíritos (e por seu próprio ego), também estão na pauta de discussões do conferencista francês. Eles acreditam que tudo o que lhes sai da ponta da pena é sublime e correto. No livro A obsessão, Allan Kardec dialoga com um espírito fascinador de um médium francês e lhe diz que irá tentar tirar “a venda dos olhos” da vítima, ao que ele lhe responde: “... não tereis resultado, porque farei tais coisas que ele não vos acreditará.” Esta consideração parece ter sido escrita ontem, e certamente continuará útil no futuro.
 
Outro tema de agora são as “suscetibilidades excessivas”, que costumamos tratar como melindres. Eles faziam e ainda fazem “baixas” nas sociedades espíritas.
 
Um “arquétipo” da comunidade espírita, observado por Kardec são os que entendem que se está agindo com muita lentidão. Ao lado destes, seu oposto de mesmo efeito, os que acham que se está agindo com muita rapidez. Kardec engloba os dois na categoria dos descontentes.
 
Por fim, ele aponta os que fazem pequenas calúnias nos grupos e na sociedade, que põem pessoas em posições falsas e comprometedoras, espalhando a descrença e a discórdia, até sem o perceber.
 
No segundo discurso, Allan Kardec faz uma análise da propagação do espiritismo e da oposição do materialismo e se. Aponta a mudança de mentalidade de sua época, que não aceita mais crenças sem justificativas e sem conhecimento. Ele se volta contra a proposta materialista e a proposta individualista que lhe decorre logicamente. Com o desenvolvimento do materialismo no mundo e uma crítica do pensamento cristão, temos visto algumas sociedades cada vez mais individualistas, que se recusam a adotar políticas de bem-estar social e apostam na prosperidade de cada um. O resultado é um grande número de pessoas sem acesso à saúde, com acesso a uma educação de segunda categoria, e o crescimento de “moradores de rua”. Allan Kardec parece ter se antecipado em pelo menos um século ao problema da fundamentação da ética do materialismo.
 
O terceiro e último discurso de Kardec trata da caridade. Não de uma caridade de esmolas, de doações inconsequentes, nem apenas das virtudes teologais, mas de uma atitude interior que deve presidir a consciência do homem de bem. Wallace percebe que o codificador trata da benevolência, da justiça e indulgência em relação ao próximo, baseada no que queríamos que o próximo nos fizesse.
 
É importante perceber que Allan Kardec fez uma análise dos reformadores sociais de sua época e que ele entende que visaram apenas a vida material, o que não é suficiente para sustentar-se uma sociedade que se estruture em laços de fraternidade, e não em uma sociedade de sagazes, que divide as pessoas entre exploradores e explorados. “O espiritismo, por sua poderosa revelação, vem, pois, acelerar a reforma social” – afirmou.
 
* 2a. edição, 1981, trad. Wallace Leal V. Rodrigues.
Jáder Sampaio é professor da Universidade Federal de Minas Gerais. doutor em Administração e especialista em Psicologia do Trabalho.
  


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