a partir de maio 2011

domingo, 5 de fevereiro de 2012

MAOMÉ E O ISLAMISMO.:Revista Espirita 1866 AGOSTO 1866

 Há, algumas vezes, sobre os homens e sobre as coisas, opiniões que se acreditam
e passam ao estado de idéias recebidas, por errôneas que sejam, porque se acha mais
cômodo aceitá-las inteiramente feitas. Assim o é com Maomé e sua religião, da qual não
se conhece quase senão o lado legendário. O antagonismo das crenças, seja por espírito
de partido, seja por ignorância, além disso, é mais para fazer ressaltar dela os pontos
mais acessíveis à crítica, deixando, freqüentemente, de propósito, na sombra as partes
favoráveis. Quanto ao público imparcial e desinteressado, é preciso dizer em sua defesa,
que faltaram elementos necessários para julgar por si mesmo. As obras que teriam podido
esclarecê-lo, escritas numa linguagem apenas conhecida de alguns raros sábios, lhe
eram inacessíveis; e como, em definitivo, ali não ia para ele nenhum interesse direto,
acreditou sob palavra o que se lhe disse, sem disso perguntar mais. Disso resultou que se
fizeram sobre o fundador do Islamismo idéias freqüentemente falsas ou ridículas,
baseadas sobre os preconceitos que não encontravam nenhum corretivo na discussão.
Os trabalhos perseverantes e conscienciosos de alguns sábios orientalistas
modernos, tais como Caussin de Perceval, na França, o doutor W. Muir, na Inglaterra, G.
Weil e Sprenger, na Alemanha, permitem hoje encarar a questão sob sua verdadeira luz
(1-(1) Sr. Barthélemy Saint-Hilaire, do Instituto, resumiu esses trabalhos numa interessante obra, intitulada:
Maomé e o Corão. 1 vol. ip -12. - Preço: 3 fr. 50 c. LivrariaDidier.).
Graças a eles, Maomé nos aparece todo outro do que não o fizeram os relatos
populares. O lugar considerável que sua religião ocupa na Humanidade, e sua influência
política, fazem hoje desse estudo uma necessidade. A diversidade das religiões foi por
muito tempo uma das principais causas de antagonismo entre os povos; no momento em
que têm uma tendência manifesta e se reaproximar, a fazer desaparecer as barreiras que
os separam, é útil conhecer o que, em suas crenças, pode favorecer ou retardar a
aplicação do grande princípio de fraternidade universal. De todas as religiões, o Islamismo
é aquela que, à primeira vista, parece encerrar os maiores obstáculos a essa
aproximação; desse ponto de vista, como se vê, este assunto não poderia ser indiferente
aos Espíritas, e a razão pela qual cremos dever tratar aqui.
Julga-se sempre mal uma religião, tomando-se por ponto de partida exclusivo suas
crenças pessoais. Porque então é difícil de se defender de um sentimento de parcialidade
na apreciação dos princípios. Para compreender-lhe o forte e o fraco, é preciso vê-la de
um ponto mais elevado, abarcar o conjunto de suas causas e de seus efeitos.
Reportando-se ao meio onde ela nasceu, ali se encontra, quase sempre, se não uma
justificativa completa, pelo menos uma razão de ser. Sobretudo, é preciso se penetrar do
pensamento primeiro do fundador e dos motivos que o guiaram. Longe de nós a intenção
de absolver Maomé de todas as suas faltas, nem a sua religião de todos os erros que
ferem o mais vulgar bom senso; mas devemos à verdade dizer que seria tão pouco lógico
julgar essa religião segundo o que dela fez o fanatismo, quanto o seria julgar o
Crstianismo segundo a maneira pela qual alguns cristãos o praticam. É bem certo que, se
os mulçumanos seguissem em espírito o Corão que o Profeta lhes deu por guia, seriam,
em mais de um aspecto, diferente do que são. No entanto esse livro, tão sagrado para
eles, que não o tocam senão com respeito, o lêem e relêem sem parar; os fervorosos o
sabem mesmo pelo coração; mas quantos há deles que o compreendem? Comentam-no,
mas do ponto de vista de idéias preconcebidas das quais se fariam um caso de
consciência afastar-se; não vêem nele, pois, senão o que querem ali ver. A linguagem
figurada permite, aliás, encontrar nele tudo o que se quer, e os sacerdotes que, lá como
em outra parte, governam pela fé cega, não procuram nele encontrar o que poderia
embaraçá-los. Não é, pois, junto dos teólogos mulçumanos que é preciso ir perguntar do
espírito da lei de Maomé. Os cristãos também têm o Evangelho, se bem que de outro
modo explicitado do que o Corão, como código de moral, o que não impede que em nome
do próprio Evangelho, que manda amar mesmo seus inimigos, se tenha torturado e
queimado milhares de vítimas, e que de uma lei toda de caridade, se fez uma arma de
intolerância e de perseguição. Pode-se exigir que povos ainda semi bárbaros façam uma
interpretação mais sadia de suas Escrituras sagradas do que não o fazem os cristãos
civilizados?
Para apreciar a obra de Maomé é preciso remontar à fonte, conhecer o homem e o
povo que lhe foi dado por missão regenerar, e, somente então, compreende-se que, para
o meio em que vivia, seu código religioso era um progresso real. Lancemos primeiro um
golpe de vista sobre o país.
Desde tempos imemoriais, a Arábia foi povoada por uma multidão de tribos, quase
todas nômades, e perpetuamente em guerra umas com as outras, suprindo pela pilhagem
o pouco de riquezas que proporcionaria um trabalho penoso sob um clima ardente. Os
rebanhos eram seu principal recurso; alguns se entregavam ao comércio que se fazia por
caravanas, partindo cada ano do Sul para ir à Síria ou à Mesopotâmia. O centro da
península sendo mais ou menos inacessível, as caravanas se afastavam pouco das
bordas do mar; as principais seguiam o Hidjâz, região que forma, sobre as bordas do mar
Vermelho, uma faixa estreita comprida de quinhentas léguas, e separada do centro por
uma cadeia de montanhas, prolongamento da Palestina. A palavra árabe Hidjâz significa
barreira, e se dizia da cadeia de montanhas que borda essa região e a separa do resto da
Arábia. O Hidjâz e o Yemen ao sul, são as partes mais férteis; o centro não é quase
senão um vasto deserto.
Essas tribos tinham estabelecido feiras para onde se iam de todas as partes da
Arábia; ali regulavam-se os negócios comuns; as tribos inimigas trocavam seus
prisioneiros de guerra, e esvaziavam, freqüentemente, suas diferenças por árbitros. Coisa
singular, essas populações, por bárbaras que eram, se apaixonavam pela poesia. Nos
seus lugares de reunião, e durante os intervalos de lazer que deixava o cuidado dos
negócios, ali se rivalizavam os poetas mais hábeis de cada tribo; o concurso era julgado
pelos assistentes, e era para uma tribo uma grande honra obter a vitória. As poesias, de
um mérito excepcional, eram transcritas em letras de ouro, e pregadas nos muros
sagrados da Caaba, em Meca, de onde lhe veio o nome de Moudhahabat, ou poemas
dourados.
Como para ir a essas feiras e delas voltar com segurança, era preciso um certo
tempo, havia quatro meses do ano em que os combates eram interditados, e em que não
se podia inquietar as caravanas e os viajantes. Combater durante esses meses
reservados era considerado como um sacrilégio que provocava as mais terríveis
represálias.
Os pontos de parada das caravanas, que se detinham nos lugares onde
encontravam água e árvores, se tornaram os centros onde se formaram pouco a pouco as
cidades, cujas duas principais, no Hidjâz, são a Meca e Yathrib, hoje Médine.
A maioria dessas tribos pretendia descender de Abraão; também esse patriarca


gozava de grande honra entre elas. Sua língua, pelas suas relações com o hebraico,
atestava com efeito uma comunhão de origem entre o povo árabe e o povo judeu; mas
não parecia menos certo de que o sul da Arábia teve seus habitantes indígenas.
Era, entre essas populações, uma crença tida por averiguada que a famosa fonte de
Zemzem, no vale da Meca, era a que fez jorrar o anjo Gabriel, quando Agar, perdida no
deserto, ia perecer de sede com seu filho Ismael. A tradição contava igualmente que
Abraão, tendo vindo ser seu filho exilado, tinha construído com suas próprias mãos, não
longe dessa fonte, a Caaba, casa quadrada de nove côvados de alto por trinta e dois de
cumprimento e vinte e dois de largura (1-(1) O cõvado eqüivale a mais ou menos 45 centímetros. É
uma medida natural dos antigos, e que tinha por base a distância do cotovelo à extremidade dos dedos.).
Essa casa, religiosamente conservada, tornou-se um lugar de grande devoção, que se
fazia um dever visitar, e que foi transformada em templo. As caravanas ali se detinham
naturalmente, e os peregrinos aproveitavam sua companhia para viajarem com mais
segurança. Assim é que a peregrinação à Meca existiu de tempos imemoriais; Maomé
não fez senão consagrar e tornar obrigatório um uso estabelecido. Para isto teve um fim
político que veremos mais tarde.
Em um dos ângulos exteriores do templo está incrustada a famosa pedra negra,
trazida dos céus, diz-se, pelo anjo Gabriel, para marcar o ponto onde deviam começar as
viagens que os peregrinos deviam realizar sete vezes ao redor da Caaba. Pretende-se
que, na origem, essa pedra era de uma brancura deslumbrante, mas que os toques dos
pecadores a enegreceram. No dizer dos viajantes que a viram, ela não tem mais seis
polegadas de alto por oito de comprimento; parece ser um simples pedaço de basalto, ou
talvez um aerolito, o que explicaria sua origem celeste, segundo as crenças populares.
A Caaba, construída por Abraão, não tinha porta que a fechasse e estava no nível
do solo; destruída pela invasão de uma torrente pelo ano 150 da era cristã, foi
reconstruída e elevada acima do nível do solo para pô-la ao abrigo de semelhantes
acidentes; perto de cinqüenta anos mais tarde, um chefe de tribo do Yémen colocou-lhe
uma cobertura de tecidos preciosos, e lhe fez colocar uma porta com uma fechadura para
pôr em segurança os donativos preciosos que acumulava, sem cessar, a piedade dos
peregrinos.
A veneração dos Árabes pela Caaba, e o território que a rodeava, era tão grande
que não tinham ousado ali construir habitações. Esse recinto tão respeitado, chamado o
Haram, compreendia todo o vale da Meca, cuja circunferência é de perto de quinze
léguas. A honra de guardar esse templo venerado era muito invejada; as tribos a
disputavam, e, o mais freqüentemente, essa atribuição era um direito de conquista. No
quinto século, Cossayy, chefe da tribo dos Coraychitas, quinto ancestral de Maomé,
tendo-se tornado senhor de Haram, e tendo sido investido do poder civil e religioso, fez
construir para si um palácio ao lado da Caaba, e permitiu àqueles de sua tribo ali se
estabelecerem. Foi assim que foi fundada a cidade de Meca. Parece que foi ele que, o
primeiro, fez colocar na Caaba uma cobertura de madeira. A Caaba está hoje no recinto
de uma mesquita, e a Meca é uma cidade de mais ou menos quarenta mil habitantes,
depois de ter tido, diz-se, cem mil.
No princípio, a religião dos Árabes consistia na adoração de um Deus único, às
vontades do qual o homem devia estar completamente submetido; essa religião era a de
Abraão, chamava-se Islam, e aqueles que a professavam se diziam Muçulmanos, quer
dizer, submetidos à vontade de Deus. Mas, pouco a pouco, o puro Islam degenerou-se
em uma grosseira idolatria; cada tribo teve seus deuses e seus ídolos, que defendia com
todo o exagero pelas armas, para provar a superioridade de seu poder; esteve aí, muito
freqüentemente entre elas, as causas ou o pretexto de guerras longas e obstinadas.
A fé de Abraão, portanto, tinha desaparecido entre esses povos, apesar do respeito
que conservavam por sua memória, ou pelo menos ela estava de tal modo desfigurada,

que não existia mais em realidade. A veneração pelos objetos considerados como
sagrados tinha descido ao mais absurdo fetichismo; o culto da matéria tinha substituído o
do espírito; atribuía-se um poder sobrenatural aos objetos mais vulgares consagrados
pela superstição, a uma imagem, a uma estátua; o pensamento, tendo abandonado o
princípio por seu símbolo, a piedade não era mais do que uma série de práticas exteriores
minuciosas, cuja menor infração era considerada como um sacrilégio.
No entanto, encontrava-se ainda, em certas tribos, alguns adoradores do Deus
único, homens piedosos que praticavam a mais inteira submissão à sua vontade
suprema, e repeliam o culto dos ídolos; eram chamados Hanyfes; eram os verdadeiros
muçulmanos, aqueles que tinham conservado a fé pura do Islam; mas eram pouco
numerosos e sem influência sobre o espírito das massas. Colônias judias tinham se
estabelecido, há muito tempo, no Hydjâz e ali tinham conquistado um certo número de
prosélitos ao judaísmo, principalmente entre os hanifes. O Cristianismo ali teve também
seus representantes e seus propagadores nos primeiros séculos da nossa era, mas nem
uma nem a outra dessas duas crenças ali não produziram raízes profundas e duráveis; a
idolatria tinha ficado a religião dominante; ela convinha mais, pela sua diversidade, à
independência turbulenta e à divisão infinita das tribos, que a praticavam com o mais
violento fanatismo. Para triunfar dessa anarquia religiosa e política, era preciso um
homem de gênio, capaz de se impor por sua energia e sua firmeza, bastante hábil para
participar dos costumes e do caráter desses povos, cuja missão fosse revelada, aos seus
olhos, pelo prestígio de suas qualidades de profeta. Este homem foi Maomé.
Maomé nasceu em Meca, em 27 de agosto de 570 da era cistã, no ano dito do
elefante. Não era, como se crê vulgarmente, um homem de uma condição obscura. Ao
contrário, ele pertencia a uma família poderosa e considerada da tribo dos Coraychitas,
uma das mais importantes da Arábia, e a que dominava, então, a Meca. Fazem-no
descender, em linha direta, de Ismael, filho de Abraão, e de Agar. Seus últimos
ancestrais, Cossayy, Abd-Ménab, Hachim e Abd-el-Moutalib seu avô, estando ilustrados
por eminentes qualidades e as altas funções que tinham cumprido. Sua mãe, Amina, era
de uma nobre família coraichite e descendia também de Cossayy. Seu pai Abd-Allah,
morreu dois meses antes de seu nascimento, foi educado com muito carinho por sua
mãe, que o deixou órfão com a idade de seis anos; depois, por seu avô Abd-el-Moutalib,
com o qual muito se afeiçoava e, freqüentemente se comprazia em lhe predizer altos
destinos, mas que, ele mesmo, morreu dois anos depois.
Apesar da classe que sua família tinha ocupado, Maomé passou sua infância e sua
juventude num estado vizinho da miséria; sua mãe tinha lhe deixado, por toda herança um
rebanho de carneiros, cinco camelos e uma fiel escrava negra, que o tinha cuidado, e pela
qual conservou sempre um vivo apego. Depois da morte de seu avô, ele foi recolhido por
seus tios, cujos rebanhos ele guarda até a idade de vinte anos; acompanhava-os também
em suas expedições guerreiras contra as outras tribos; mas, sendo de um humor doce e
pacífico, nelas não tomava parte ativa, no entanto, sem fugir nem temer o perigo, e se
limitava a ir recolher suas flechas. Quando chegou ao cume de sua glória gostava de
lembrar que Moisés e David, ambos profetas, tinham sido pastores como ele.
Tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de uma solidez e de uma
maturidade precoces, junto a uma extrema eqüidade, a um perfeito desinteresse e a
costumes irrepreensíveis, adquiriram-lhe uma tal confiança da parte de seus
companheiros que o designavam pelo sobrenome de EI-Amin, "homem seguro, homem
fiej;" e, embora jovem e pobre, era convocado às assembléias da tribo para os negócios
mais importantes. Ele fazia parte de uma associação formada entre as principais famílias
coraychitas, tendo em vista prevenir as desordens da guerra, proteger os fracos e lhes
fazer justiça. Se fez sempre glória por nisso ter concorrido, e, nos últimos anos de sua
vida, considerava-se como sempre ligado pelo juramento que tinha prestado a esse
respeito em sua juventude. Dizia que estava pronto para responder ao chamado que lhe

fizesse o homem mais obscuro em nome desse juramento, e que não queria, pelos mais
belos camelos da Arábia, faltar à fé que tinha jurado. Por esse juramento, os associados
juravam diante de uma divindade vingativa, que tomariam a defesa dos oprimidos, e que
perseguiriam a punição dos culpados enquanto tivesse uma gota d'água no Oceano.
No físico, Maomé era de um talhe um pouco acima da média, fortemente constituído;
a cabeça muito grande; sua fisionomia, marcada por uma seriedade doce, sem ser bela,
era agradável e respirava a calma e a tranqüilidade.
Com a idade de vinte e cinco anos esposou sua prima Khadidja, rica viúva, mais
velha do que ele pelo menos quinze anos, da qual tinha conquistado a confiança pela
probidade inteligente que tinha empregado na condução de uma de suas caravanas. Era
uma mulher superior; essa união, que durou vinte e quatro anos, e que não acabou senão
com a morte de Khadidja, com a idade de sessenta e quatro anos, foi constantemente
feliz; Maomé tinha então quarenta e nove anos, e essa perda lhe causou uma dor
profunda.
Depois da morte de Khadidja, seus costumes mudaram; esposou várias mulheres;
delas teve doze ou treze em legítimo matrimônio, e, em sua morte, deixou nove viúvas.
Incontestavelmente, esse foi um erro capital, do qual veremos mais tarde as deploráveis
conseqüências.
Até a idade de quarenta anos sua vida pacífica não oferece nada de saliente. Um
único fato o tirou um instante da obscuridade; ele tinha então trinta e cinco anos. Os
Coraychitas resolveram reconstruir a Caaba, que ameaçava ruína. Não foi senão com
uma grande dificuldade que se apaziguou, pela repartição dos trabalhos, as diferenças
suscitadas pela rivalidade das famílias que queriam deles participar. Essas diferenças se
revelavam com uma extrema violência quando se tratava de recolocar a famosa pedra
negra; ninguém querendo ceder seu direito, os trabalhos tinham sido interrompidos, e
todas as partes corriam às armas. Sobre a proposta do decano, convencionou-se nisso
estar de acordo com a decisão da primeira pessoa que entrasse na sala das deliberações:
essa foi Maomé. Desde que foi visto, todos exclamaram: "El-Amin! EI-Amin! o homem
seguro e fiel," e esperou-se seu julgamento. Pela sua presença de espírito, ele resolveu a
dificuldade. Tendo estendido seu manto na terra, ali colocou a pedra, e chamou quatro
dos principais chefes facciosos para pegá-la cada um por um canto e levantá-la todos
juntos até a altura que a pedra deveria ocupar, quer dizer, a quatro ou cinco pés acima do
solo. Tomou-a, então, e colocou-a em sua própria mão. Os assistentes se declararam
satisfeitos, e a paz foi restabelecida.
Maomé gostava de passear sozinho nas cercanias da Meca, e, cada ano, durante os
meses sagrados de trégua, se retirava sobre o monte Hire, numa gruta estreita, onde se
entregava à meditação. Ele tinha quarenta anos quando, em um de seus retiros, teve uma
visão durante seu sono. O anjo Gabriel lhe apareceu, mostrando-lhe um livro que lhe
ordenava ler. Três vezes Maomé resistiu a essa ordem, e não foi senão para escapar ao
constrangimento exercido sobre ele, que consentiu em lê-lo. Em seu despertar ele sentiu,
diz-se, "que um livro tinha sido escrito em seu coração." O sentido dessa expressão é
evidente; ela significa que teve a inspiração de um livro; mas, mais tarde, foi tomada ao
pé da letra, como ocorre, freqüentemente, às coisas ditas em linguagem figurada.
Um outro fato prova a quais erros de interpretação podem conduzir a ignorância e o
fanatismo. Maomé disse em alguma parte, no Corão: "Não abrimos teu coração, e tirado o
fardo de tuas costas?" Estas palavras aproximadas de um acidente ocorrido a Maomé
quando estava em amamentação, deram lugar à fábula, acreditada entre os crentes, e
ensinada pelos sacerdotes como um fato miraculoso, de que dois anjos abriram o ventre
do elefante e tiraram de seu coração uma mancha negra, sinal do pecado original. É
preciso acusar Maomé desses absurdos, ou aqueles que não o compreenderam? Ocorreu
o mesmo com uma multidão de contos ridículos sobre os quais é acusado de ter apoiado
sua religião. É porque não hesitamos em dizer que um cristão esclarecido e imparcial está

mais em condições de dar uma interpretação sadia do Corão do que um muçulmano
fanático.
O que quer que isso seja, Moamé foi profundamente perturbado em sua visão, que
se apressa em contar à sua mulher. Tendo retornado sobre o monte Hira preso na mais
viva agitação, acreditou-se possuído dos Espíritos malignos, e, para escapar ao mal que
temia, ia precipitar-se do alto de um rochedo, quando uma voz vinda do céu se fez ouvir e
lhe disse: "Ó Maomé! Tu és o enviado de Deus; eu sou o anjo Gabriel." Levantando então
seus olhos, ele viu o anjo sob uma forma humana, que desapareceu pouco a pouco no
horizonte. Essa nova visão não fez senão aumentar a sua perturbação; dela deu
conhecimento a Khadidja, que se esforçou por acalmá-lo; mas, pouco tranqüila ela
mesma, foi encontrar seu primo Varaka, velho conhecido por sua sabedoria e convertido
ao Cristianismo, que lhe disse: "Se o que vens de me dizer for verdade, seu marido foi
visitado pelo grande Nâmous, que outrora visitou Moisés; ele será o profeta de seu povo.
Anuncia-lho, e que ele se tranqüilize." Depois de algum tempo daí, Varaka, tendo
encontrado Maomé, contou suas visões para ele, e lhe repetiu as palavras que havia dito
à sua mulher, acrescentando: "Serás tratado como impostor; serás expulso; serás
violentamente combatido. Que eu não possa viver, até essa hora, para te assistir nessa
luta!"
O que resulta desses fatos e de muitos outros, é que a missão de Maomé não foi um
cálculo premeditado de sua parte; ela foi confirmada por outros quando ela não o fora
ainda por ele; disto precisou de muito tempo para ser persuadido; mas desde que o foi,
tomou-a mais a sério. Para convencera si próprio, desejava uma nova aparição do anjo,
que se fez ouvir dois anos, segundo uns, e seis meses, segundo outros. É este intervalo
de incerteza e de hesitação que os muçulmanos chamam o fitreh', durante todo esse
tempo seu espírito esteve preso às perplexidades e aos medos mais vivos. Parecia-lhe
que ia perder a razão, e essa era também a opinião de alguns daqueles que o cercavam.
Estava sujeito a desmaios e síncopes que os escritores modernos atribuíram, sem outras
provas senão sua opinião pessoal, a ataques de epilepsia, e que poderiam bem ser antes
o efeito de um estado extático, cataléptico ou sonambúlico espontâneo. Nesses
momentos de lucidez extra corpóreo, se produziam, freqüentemente, como se sabe,
fenômenos estranhos dos quais o Espiritismo dá perfeitamente conta. Aos olhos de certas
pessoas, ele deveria passar por louco; outros viam nesses fenômenos, singulares para
ele, alguma coisa de sobrenatural, que colocava o homem acima da humanidade.
"Quando se admite a ação da Providência sobre os assuntos humanos, disse o Sr.
Barthélemy Saint-Hilaire (página 102), não se pode recusar em procurar também nessas
inteligências dominadoras que aparecem, de longe em longe, para esclarecer e conduzir
o resto dos homens."
O Corão não é uma obra escrita por Maomé, maduramente e de maneira seguida,
mas o resumo feito por seus amigos das palavras que pronunciou quando estava
inspirado. Nesses momentos, dos quais não era o senhor, ele .caía num estado
extraordinário e assustador; o suor corria de sua fronte; seus olhos se tornavam
vermelhos de sangue; dava gemidos, e a crise terminava, o mais freqüentemente, por
uma síncope que durava mais ou menos tempo, o que lhe acontecia algumas vezes no
meio da multidão, e mesmo quando estava sobre seu camelo, tão bem quanto em sua
casa. A inspiração era irregular e instantânea, e não se podia prever o momento em que
dela seria apoderado.
Segundo o que conhecemos hoje desse estado por uma multidão de exemplos
análogos, é provável que, sobretudo no princípio, ele não tinha consciência do que dizia,
e que se as suas palavras não tivessem sido recolhidas, teriam se perdido; mas, mais
tarde, quando tomou a sério seu papel de reformador, é evidente que falou mais em
conhecimento de causa, e mistura às inspirações o produto de seus próprios
pensamentos, segundo os lugares e circunstâncias, as paixões e os sentimentos que o

agitavam, tendo em vista o objetivo que queria alcançar, tudo em crendo, talvez de boa fé,
falar em nome de Deus.
Esses fragmentos destacados, recolhidos em diversas épocas, e em número de 114,
formam no Corão outro tanto de capítulos chamados sourates; ficaram esparsos durante
sua vida, e não foi senão depois de sua morte que foram juntados em corpo oficial de
doutrina, petos cuidados de Abou-Becr e de Ornar. Dessas inspirações súbitas, recolhidas
à medida que ocorriam, resultou uma falta absoluta de ordem e de método; os assuntos
mais disparatados ali são tratados desordenadamente, freqüentemente no mesmo
versículo, e apresentam uma tal confusão e tão numerosas repetições, que uma leitura
seguida dele é penosa e fastidiosa para todo outro senão os fiéis.
Segundo a crença vulgar, tornada artigo de fé, as folhas do Corão foram escritas no
céu e trazidas todas feitas a Maomé pelo anjo Gabriel, porque numa passagem ele disse:
"Teu Senhor é poderoso e misericordioso, e o Corão é uma revelação do senhor do
universo. O espírito fiel (o anjo Gabriel) a trouxe do alto, e a depositou em teu coração, ó
Maomé, para que fosses apóstolo." Maomé se exprime da mesma maneira com respeito
ao livro de Moisés e ao Evangelho; ele disse (versículo III, número 2):" Ele fez descer do
alto o Pentateuco e o Evangelho, para servir de direção aos homens;" querendo dizer por
aí que esses dois livros tinham sido inspirados por Deus a Moisés e a Jesus, como lhe
tinha inspirado o Corão.
Suas primeiras pregações foram secretas durante dois anos, e, nesse intervalo, ele
reuniu perto de cinqüenta adeptos entre os membros de sua família e seus amigos. Os
primeiros convertidos à fé nova foram Khadidja, sua mulher; Ali, seu filho adotivo, com a
idade de dez anos; Zeíd, Varaka e Abou-Becr, seu amigo mais íntimo, que deveria ser
seu sucessor. Tinha quarenta e três anos quando começou a pregar publicamente, e,
desde esse momento, realizou-se a predição que lhe tinha feito Varaka. Sua religião,
fundada sobre a unidade de Deus e a reforma de certos abusos, sendo a ruína da
idolatria e daqueles que dela viviam, os Coraychitas, guardiães da Caaba e do culto
nacional, se levantaram contra ele. De início era tratado de louco; depois foi acusado de
sacrilégio; amotinou-se o povo; foi perseguido, e a perseguição se tornou tão violenta que
seus partidários deveram, por duas vezes, procurar um refúgio na Abissínia. No entanto,
aos ultrajes ele opunha sempre a calma, o sangue frio e a moderação. Sua seita cresceu,
e seus adversários, vendo que não podiam reduzi-la pela força, resolveram desacreditá-lo
pela calúnia. A zombaria e o ridículo não lhe foram poupados. Os poetas, como se viu,
eram numerosos entre os Árabes; eles manejavam habilmente a sátira, e seus versos
eram lidos com avidez; era o meio empregado pela crítica malévola, e não faltaram à de
dele se servir contra ele. Como resistia a tudo, seus inimigos recorreram, enfim, aos
complôs para fazê-lo perecer, e não pôde escapar senão pela fuga ao perigo que o
ameaçava. Foi então que se refugiou em Yathrib, chamado depois Médine (Médinet-en-
Nabi, cidade do Profeta), no ano 622, e é dessa época que data a Hégireou era dos
muçulmanos. Ele tinha enviado antes a essa cidade, por pequenos grupos para não
despertar suspeitas, todos os seus partidários da Meca, e se retirou primeiro, com Abou-
Becr e Ali, seus discípulos mais devotados, quando soube os outros em segurança.
Dessa época data também, para Maomé, uma nova fase de sua existência; de
simples profeta que era, foi constrangido a se tornar guerreiro.
Revista Espirita 1866










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