a partir de maio 2011

terça-feira, 8 de outubro de 2013

LIBERDADE E DISCIPLINA

J.  Herculano Piresin Os Sonhos de Liberdade

A atitude do homem com relação à liberdade é sempre ambivalente. Ele sabe, por instinto e por intuição, que a liberdade é a sua própria essência, que não pode viver sem ela e, não obstante, a teme. Por isso, os que asfixiam a liberdade fazem questão de aparentar que andam de braços dados com ela. Nada irrita mais um tirano do que a acusação de tirania. A consciência do crime o leva a reações violentas e a medidas ainda mais opressivas. Para amenizar essa situação incômoda, o tirano, seja político, religioso, empresarial, doméstico ou de qualquer outra categoria, apela invariavelmente para uma palavra ambígua, mas salvadora: disciplinaA liberdade, dizem eles, para ser eficaz, deve ser disciplinada, pois sem disciplina cai na anarquia. Para evitar esse desvirtuamento da liberdade, inventou-se, já nos tempos selvagens, a escala hierárquica que começa no chefe todo poderoso e desce regressivamente diversos degraus da escala do poder. Essa pressão do alto, que lembra Júpiter Troante e seus subordinados no panteão dos deuses, é esmagadora, mas considerada apenas como disciplinadora. Como também já nas tribos recorreu-se ao expediente dos conselhos mediado- res, que também funcionam nas hierarquias celestes e mitológicas, acredita-se ainda hoje na eficácia universal dessa medida. Graças a isso, temos no mundo a liberdade filtrada pelos poderes intermediários, dispostos com engenho e arte entre as eminências da sabedoria e o populacho ignaro.  Diversificadas hostes de beséis, fiscais e comissários se incumbem da distribuição equitativa da liberdade ao povo, de acordo com regras pré-determinadas. Graças a esse arranjo humano-divino, ninguém fica sem a sua cota indispensável de liberdade para poder respirar e viver.
 
Conhecemos bem os problemas do Absolutismo e do Constitucionalismo, dos métodos violentos de ensino e educação do passado, das disciplinas escolares e particularmente das colegiais, das ordens monásticas impregnadas de divina piedade, das instituições clericais recendendo a virginal pureza, dos quartéis em que os jovens se submetem a regras espartanas sem nada saberem de Esparta. E conhecemos também o problema das famílias puritanas e das igrejas e das religiões disciplinadoras da vida moral e espiritual dos filhos de Deus. Em todos esses lugares e em tantos outros a liberdade nunca deixou de existir, mas sempre sob as regras disciplinadoras e a vigilância dos seus executores. Dando instruções às mães sobre os cuidados que devem ter com a liberdade dos filhos, Tomás de Aquino advertiu, em sua filosofia teológica: Mães, vossos filhos são cavalos. Isso, não obstante o que sobrava para as mães, foi aceito pela Cristandade como pientíssima advertência. Antes dele, Santo Agostinho, filósofo de inspiração platônica, para mostrar a diferença entre os que seguem a disciplina cristã e os que a rejeitam, advertia que a maior felicidade dos eleitos, no céu, era contemplar lá de longe os caldeirões do Inferno em que as almas insurretas se debatiam eternamente na fervura.  Basta isso para nos mostrar que a disciplina, mesmo em terreno sagrado, tem por essência o medo e por arma o pavor. Gerações e gerações de criaturas assustadas e apavoradas povoaram a Terra antes de nós. Não se deve estranhar o que hoje se passa no mundo.
 
É curiosa a incapacidade dos homens para se conhecerem a si mesmos. Todos sabemos e sentimos que a natureza humana é refratária a coações e imposições forçadas. O espírito é liberdade, como já vimos. Liberto dos estágios inferiores da criação do ser, onde permaneceu preso às estruturas minerais e vegetais, conquistando a motilidade no animal e a consciência no homem, ele não admite nenhuma forma de coação exterior, mormente pela força e a violência.  Submete-se quando não pode resistir e reagir, mas logo que pode o faz. A revolta de Espártaco em Roma demonstrou aos nobres patrícios que os escravos eram feitos da mesma massa que eles. Apesar de todas as experiências históricas nesse sentido, os homens teimam na imposição e no domínio dos semelhantes, suprimindo-lhes sempre que podem e quanto puderem a liberdade alheia. A educação coercitiva, como a moral puritana e o religiosismo fanático, respondem pela maior parte dos desequilíbrios e calamidades sociais ocorridas no mundo até os nossos dias.
 
Freud, tão acusado pelo seu pansexualismo, foi o escavador corajoso e heroico das camadas torturadas da libido, complexadas de maneira explosiva nos subterrâneos da espécie. A violência contra as fontes genésicas da vida produziu a filogênese dos monstros da consciência subliminar, do inconsciente vulcânico hoje em franca erupção. Entre esses monstros, o mais perigoso não é o dragão da luxúria, mas a serpente sinuosa e astuta da hipocrisia, geradora de todos os simulacros de honestidade, pureza e santidade que encheram o mundo de vozes melosas, delicadezas ensaiadas, boas maneiras catalogadas e posturas angélicas premeditadas. A raça de víboras de que falava Jesus havia nascido das entranhas do Templo, onde as leis de pureza e os ritos de satisfação contrastavam com o naturalismo das tradições relatadas cruamente na literatura bíblica. Eram monstros de fingimento os fariseus que oravam nas esquinas de Jerusalém para serem vistos pelos homens e considerados santos, mas devoravam as casas das viúvas. A sistemática ritual do Templo transferiu-se para o Cristianismo nascente e pouco a pouco injetou o seu veneno nas instituições cristãs. Seria inútil querermos negar essa evidência histórica. O Apóstolo Paulo compreendeu isso e lutou contra a hipocrisia nas novas igrejas, como no caso de Corinto, em que ele denuncia uma situação vergonhosa. Mas ele mesmo não se livrou da influência farisaica e insistiu em medidas coercitivas nas suas epístolas. Jesus, livre e puro, imune a essas infestações pela elevação natural do seu espírito, condenou os lapidadores da mulher adúltera e fez de Madalena, a cortesã, a figura símbolo da mulher de um novo mundo, porque ela muito amou, colocando assim o amor acima de todos os preconceitos e penitências de purificação exterior. Não obstante, a civilização cristã, de que nos vangloriamos, nada mais foi do que uma cópia da judaica em traços de caricatura. A libertação em Cristo não passou de formalismo deformador da essência real do homem. A liberdade cristã é o reverso de si mesma, um alçapão para as almas ingênuas que se entregam à beatice e caem na hipocrisia.
 
Não se chega ao céu pelos caminhos terrenos enfeitados de flores artificiais e promessas inviáveis. Ninguém se transforma nem se reforma por meio de expedientes de salvação individual, manchado pelas intenções egoístas. Não há ritos nem sacramentos, nem rezas, escapulários ou fetiches que possam nos salvar. A salvação está em nós mesmos, em nossos pensamentos, sentimentos e ações, como Jesus ensinou e exemplificou. Isso quer dizer que a salvação está em nossa liberdade aplicada ao bem de todos, sem qualquer pretensão ou exclusivismo. Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém, escreveu o Apóstolo Paulo. Nossa liberdade nos permite tudo, mas nosso discernimento livre deve escolher o melhor, e o melhor é sempre uma doação e não uma pretensão egoísta.
 
Há uma disciplina que é útil e necessária, sim, mas a sua eficácia se funda na liberdade. Tudo quanto nos é imposto, determinado por outros, mormente em troca de benefícios pessoais para nós, não passa de engano com intenções ocultas. A única disciplina verdadeira e eficaz nasce livremente da nossa liberdade interior. Só nós mesmos podemos nos disciplinar de maneira eficaz. Jesus orava e vigiava. E ensinou-nos a fazer o mesmo. Orar não é repetir fórmulas de orações lidas ou decoradas, mas elevar o pensamento acima das preocupações mundanas para ligarmo-nos aos planos superiores do espírito. Vigiar é controlar e disciplinar a nossa posição mental e emocional diante do mundo, numa atitude de doação e não de medo. Certamente carecemos de muitas coisas, mas o mundo carece muito mais. Usar a nossa liberdade em sentido pessoal é escravizá-la em nós. Usá-la em socorro do mundo é libertarmo-nos através dela. A liberdade é o par de asas simbólico dos anjos. Com ela e por ela podemos voar até as estrelas, sem necessidade de foguetes e cápsulas espaciais.
 
O Cristianismo se assenta em dois princípios que representam a base de toda a sua estrutura conceptual: liberdade e doação.  Os teólogos não puderam compreender isso porque estavam com os olhos vendados (e o estão ainda hoje) com a venda das preocupações formalistas e igrejeiras.  Jesus não se interessou, afirma Guignebert, pela fundação de nenhuma nova igreja.  Isso é evidente nos próprios evangelhos. Judeu, frequentando o Templo e as Sinagogas, citando frequentemente as Escrituras Judaicas e os Profetas, parece estranha a sua alusão à fundação da sua igreja quando Pedro o chamou de Cristo. Essa passagem tornou-se ainda mais suspeita quando sabemos que a palavra Cristo, de origem grega e correspondente ao mito grego da encarnação de um salvador, só era usada pelos seus discípulos gregos. Os teólogos tentaram atribuir essa palavra ao aramaico, mas não encontraram maneira de validar histórica e linguisticamente essa pretensa explicação.  Guignebert afirma ainda que toda preocupação de Jesus se referia às esperanças de Israel: a vinda do Messias, a salvação de Israel e a Implantação do Reino de Deus na Terra, que levou os apóstolos, com Pedro à frente, a fundar a comunidade que trata oLivro de Atos. Parece claro que Pedro tenha falado do Messias e que Jesus aproveitasse a oportunidade para lembrar a necessidade de fundação do Reino, cabendo a Pedro essa incumbência. A tardia redação dos evangelhos e as influências mitológicas visíveis nos textos mostram que frases como a de Jesus sobre a Igreja, nesse episódio, não podem estar certas. Além disso, é inegável que houve adaptações dos copistas para atender a exigências do movimento cristão em suas fases iniciais. E mais do que isso, há o fato inconteste de haver o Cristianismo nascido como uma nova seita judaica ligada ao Templo e à Sinagoga, só se tornando independente pela corajosa decisão de Paulo em Antioquia. Se o Cristo houvesse realmente ordenado a fundação de uma nova igreja, os discípulos teriam, imediatamente após a sua morte, tratado de criá-la.
 
O mundo estava sufocado pelo formalismo religioso, social e político da fase já adiantada de transição das civilizações agrárias e pastoris para as civilizações massivas do Oriente.  Israel arcava ao peso da sua própria lei e das obras da lei, que eram as práticas exigentes do culto.  Jesus aproveitava essa fase para semear ideias novas, com base nas profecias, libertando o povo da tirania rabínica sem destruir a religião em que nascera. Os fariseus hipócritas – dizia ele – sepulcros calados por fora e cheios de podridão por dentro. Condenava a hipocrisia farisaica e os excessos da voracidade rabínica, que transformaram o Templo em mercado. Lembrava a efemeridade das criações humanas, a inutilidade das pompas mundanas e pregava a necessidade de um retorno à simplicidade, única maneira de reconduzir os homens ao caminho certo da liberdade. Rabino popular, sem nenhuma ligação oficial com o Templo ou as seitas da época, filho de operários pobres, só dispondo de suas vestes e sandálias, cercado de pescadores galileus, indiferente ao poder romano, fazia-se ele próprio o exemplo do homem livre, na plena posse de sua liberdade, que devia opor-se à ameaça dos excessos de formalismos do novo ciclo das civilizações monstruosas. Vede as aves do céu, olhai os lírios do campo. Suas palavras indicavam os rumos da natureza e da naturalidade, para que os homens não se enganassem com os artifícios pomposos de uma civilização de rapina, construída pela ganância e o egoísmo. Livres eram as aves, livres floriam os lírios, e nem Salomão, em todo o esplendor da Corte, conseguira superar a beleza e a felicidade daquelas pequenas e humildes criaturas de Deus – não de Iavé que exigia tributos, sacrifícios de sangue no altar, queima de ervas aromáticas na ara especial para aspirar a fumaça cheirosa, carnes de ovelhas e bois para saciar a sua fome aspirando o seu odor apetitoso. Ele superava esses resíduos mitológicos e grosseiros, a concepção brutal de Deus como chefe de exércitos ferozes, o excesso de riquezas à custa da fome e da miséria do povo, para salvar o homem na sua essência espiritual, no encanto simples e puro da liberdade. Condenado à arrogância do judaísmo pretensioso, falava às mulheres do campo, como a Samaritana, o dia em que seria adorado no íntimo de cada um, sem necessidade de sujeição ao Templo de Jerusalém ou ao Templo do Monte Garazim dos dissidentes samaritanos. Opunha às fantasias do formalismo religioso a ideia da religião em espírito e verdade. Era uma revolução da essência e não da forma, uma transformação substancial dos conceitos dominantes.  Como se vê, um esforço para libertar o conceito, em sua pureza essencial, do domínio do mito. Conseguido isso, as estruturas do formalismo ruiriam por si mesmas. Não lhe interessava a criação de nenhum novo formalismo, de nenhuma religião especialmente firmada em suas palavras e tendo a sua imagem individual como ídolo.  Ia direto e preciso ao objetivo:devolver ao homem a sua liberdade perdida. Livre dos resíduos mágicos primitivos e, portanto, do seu passado supersticioso, desvencilhado das encenações rituais da mitomania, o homem livre encontraria, no desenvolvi- mento da sua própria razão, a face da realidade, ou seja, da verdade, por trás da máscara da ilusão. O necessário era reintegrar o homem na sua autenticidade.
 
O princípio da doação é corolário do princípio da liberdade. Ao romper com a fantasia o homem se encontra consigo mesmo e se reconhece como humanidade, quebra os diques e barreiras de todas as formas de isolacionismo e se entrega aos outros em doação de amor. Essa entrega o identifica com Deus e o insere no plano divino da evolução. A essência e o objetivo de todas as religiões se fundem nesses dois princípios, o que revela o sentido de síntese superior de todo o processo religioso que caracteriza o Cristianismo. Dessa maneira, a disciplina religiosa, que cada religião considera específica da sua estrutura, dispondo de técnicas próprias de introjeção de ideias e modismos impostos aos fiéis para agradar a Deus, é revirada do avesso para o direito. O homem livre trás em si mesmo a sua disciplina, que decorre dos princípios fundamentais da consciência humana. Como explica Bergson em A Evolução Criadora, a moral aberta do indivíduo superior, acima da moral fechada da sociedade, supera o nível formalizador da tradição e das acomodações pragmáticas. Não é uma moral imposta ou exógena, mas a moral espontânea e endógena que nasce das profundezas da experiência, regida pela razão e iluminada pela intuição. Essa a diferença fundamental entre o decálogo de Moisés, esquemática e rigidamente aplicado às condições agrárias e pastoris de Israel, e a Moral Cristã, livre e universal, que brota dos ensinos de Jesus como água borbulhante de uma fonte. A simplicidade e a naturalidade dessa moral, que não se consubstancia em preceitos próprios esquematizados, mas surge dos ensinos informais, das parábolas e dos exemplos de Jesus em forma de sugestões, age nas consciências por uma espécie de catálise espiritual. Não comporta técnicas de introjeção, pois não pretende impor ou dominar, mas tão somente atualizar as potencialidades do espírito.
 
A incapacidade das religiões cristãs para compreender a sutileza desse processo levou abnegados moralistas a formularem códigos e tratados em que a moral viva de Jesus se transforma numa espécie de pássaro empalhado num museu de antiguidades.
 
Enquanto não formos capazes de compreender que a disciplina da liberdade não é liberdade disciplinada, mas disciplina livre, não teremos nenhuma possibilidade de sentir em nós mesmos o aflorar da moral cristã. Temos de transformar o nosso corpo carnal, como queria Paulo, no corpo espiritual da ressurreição, flexível e irradiante de luz, para realmente nos integrarmos na moral cristã. Não se trata de um processo místico de transformação milagrosa, mas do acordar do espírito, de um libertar da mente para a percepção das potências que trazemos em nós como estrelas ocultas num céu nublado. A liberdade e a doação de Jesus esperam ainda a nossa resposta. Até agora a reação cristã do mundo a esses desafios não compensou o sacrifício do Cristo.
 
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