a partir de maio 2011

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Sejamos pela paz



VINICIUS LIMA LOUSADA
vlousada@hotmail.com
Bento Gonçalves, RS (Brasil)

“(...) através da nuvem sombria que vos envolve e em cujo seio ruge a tempestade, observai que já surgem os primeiros raios da era nova!”[1]
Os últimos acontecimentos envolvendo atos de terrorismo na França, berço do pensamento iluminista e dos direitos do homem e do cidadão, nos colocam a pensar, mais uma vez, em torno do tema da paz.
A paz é coisa séria, necessária ao processo civilizatório e que demanda articulação entre a diversidade de crenças, atitudes, etnias, culturas para que, em regime de convivência pacífica, a diferença não seja objeto de exclusão ou motivação insensata para a violência.
Contudo, no Ocidente, somos herdeiros de um processo civilizatório cujo paradigma dominante se traduz, por incrível que pareça, por um desejo de negação da diferença, dominação e exclusão do desigual. Esse paradigma fundamentou o imaginário dos colonizadores mundo afora e da exploração das gentes supostamente não civilizadas, segundo o crivo eurocêntrico do passado.
Um mundo que fomenta o egoísmo
Muitos povos vivem, há séculos, marginalizados política, cultural e economicamente, experimentando, assim, o amargor de uma inferioridade inventada e imposta, com seus efeitos colaterais danosos que se estendem na esteira do tempo, alimentando a mágoa, revolta e o desejo de aniquilação do opressor em várias gerações.
Nada obstante a opressão não justifique qualquer forma de violência, ela explica parte da causalidade dessa sombria manifestação humana que ainda viceja em vários contextos. Mas é bom que se diga que ela é um tema complexo, sendo merecedora de abordagens e ações referenciadas em um olhar transdisciplinar e profundamente compassivo.
Parafraseando Ubiratan D’Ambrósio[2], educador e pesquisador brasileiro que teve ensejo de problematizar o paradigma dominante, podemos dizer que as três grandes distorções deste modelo foram: a leitura das diferenças humanas compreendidas como estágios diversos de evolução, fundamentando uma visão hierárquica entre pessoas e saberes; a precariedade material, ou até simplicidade, como resultado da preguiça de alguns povos e uma visão preconceituosa da espiritualidade alheia como falta de racionalidade científica e, por último, a concepção de que a preservação de patrimônio natural e cultural dos povos originários consistiria em obstáculo ao progresso e à civilização.
No campo dos valores esse paradigma fomenta a arrogância (do ter e do saber), a inveja (pautada no espírito competitivo e numa ignorância total da realidade interdependente da vida) e a prepotência (traduzida nos processos históricos de dominação, genocídio, epistemicídio e exploração). Em bom vocabulário espiritista, estamos diante de uma visão de mundo que se nutre e fomenta o egoísmo.
Egoísmo: a chaga mais difícil de extirpar
O mestre Allan Kardec, ao reflexionar sobre as relações entre educação e egoísmo, obstáculo ao nosso trânsito espiritual para mais elevadas condições na escala espírita, diz-nos:
“De todas as chagas morais da sociedade, o egoísmo parece a mais difícil de extirpar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais alimentada pelos mesmos hábitos da educação. Tem-se a impressão que, desde o berço, a gente se esforça para excitar certas paixões que, mais tarde, se tornam uma segunda natureza, e nos admiramos dos vícios da sociedade, quando as crianças os sugam com o leite”.[3]
Da citação do mestre é fácil depreender que os processos educativos a que somos acometidos, nas circunstâncias espirituais necessárias à superação de nós mesmos, recebemos, não raro, a excitação das paixões inferiores e incentivos negativos que reforçam o egoísmo como diretriz comportamental, lastimavelmente. Aliás, muitas posturas familiares errôneas, identificadas por Allan Kardec no século XIX, ainda estão presentes hoje e servem de reforço para identificação negativa para com condutas que vão do egoísmo infantil até os crimes de lesa-humanidade.
Numa sociedade orientada por um horizonte materialista, em que o ter é mais importante que o ser, cujos valores autoafirmativos em vigor são disseminados nas instituições, as mais variadas (até as que se referenciam como de “educação”), pode parecer ridículo propor um olhar sobre a vida que abarque valores como cultura de paz, altruísmo ou alteridade.
Fundamentalismo e xenofobia
A palavra de ordem ainda é a da competição por coisas que a impermanência da vida corporal revela como quiméricas e, vale lembrar, que o ser humano se posta de forma belicosa na defesa de suas ilusões.
Fritjof Capra, físico teórico e ativista do paradigma sistêmico, postulou oportunamente: “A mudança de paradigmas requer uma expansão não apenas de nossas percepções e maneiras de pensar, mas também de nossos valores”.[4]
Penso, por minha vez, que só a educação integral do ser, com base em novos horizontes epistemológicos e numa ética da diversidade, pode fazer uma revolução paradigmática em que a cultura de paz – quer dizer, da não violência ativa, da não cooperação com qualquer forma de opressão, violência ou discriminação de outro ser – seja um forte valor orientador.
Quem sabe o saber da reencarnação, compreendido em bases científicas e na problematização filosófica necessária, não poderia trazer como consequência uma espiritualidade de base plural, laica, desapegada de dogmas, sem projeto de hegemonia ideológica, livre da intolerância, da negação da razão como um valor pertinente para a constituição de uma relação saudável com o sagrado, tanto quanto, com o outro, aquele que é diferente de nós?
O ataque a Charlie Hebdo, em Paris, revela duas facetas terríveis do egoísmo elevado ao grau superlativo que ainda vigora na alma humana: o fundamentalismo – se de fato o ato se fundamentar numa vingança por Maomé contra a equipe do periódico – e a xenofobia, em voga na Europa a partir de movimentos de ultradireita que se posicionam, na esfera pública, com campanhas contra a expansão do Islã e a integração dos mulçumanos na comunidade europeia.
Importância da solidariedade e da educação
A xenofobia é um fundamentalismo étnico e nacionalista que se expressa numa aversão a pessoas estrangeiras ou qualquer manifestação cultural que delas advenha, comum numa Europa com dificuldades de assimilar a diferença e lidar com as exigências que ela apresenta na agenda política e social.
Quanto ao fundamentalismo religioso, eu o considero uma expressão falsa de transcendência de indivíduos cuja fé se torna fechada ao diálogo com outras lógicas de raciocínio na relação com o sagrado. O fundamentalista cerra o coração ao diálogo possível com irmãos inseridos noutras crenças, que aderiram a diferentes formas de espiritualidade.
Nestes dias de intolerância, ódio e xenofobia, sejamos da paz movendo-nos a serviço desta como um valor fundamental em nossas existências. Procuremos estender os nossos horizontes intelectuais a outras epistemologias, modos de pensar, viver e produzir a vida, tanto quanto, à diversidade religiosa e étnica.
Somos seres de transcendência, de superação dos interditos da matéria e das barreiras culturais para, através da pluralidade das existências, prosseguirmos intimoratos em nossa jornada rumo a novos patamares da evolução, na medida em que a inteligência se apropria das Divinas Leis e aprimoramos a nossa vida moral no sentido do amor.
Abraçados na causa da paz, façamos dela uma pauta pertinente nos processos educativos em que atuamos. Assumamos posturas menos belicosas no cotidiano, exercitemos a nossa vocação à comunicação compassiva, ao encontro empático com o outro, fazendo jus aos valores espirituais que dizemos abraçar.
Eduquemos nossos filhos numa ética da diversidade, onde a abertura ao outro, ao diferente, seja uma presença no campo da solidariedade e da autoeducação.
Exemplo: ferramenta pedagógica
No caso de sermos adeptos da Filosofia Espírita, nos esforcemos por educar nossos filhos com base no que ela tem de melhor, sem nos fecharmos a outras contribuições, que seria uma disparatada versão de fundamentalismo enraizado na ignorância.
Entre os valores humanos manifestos no Espiritismo está a tríade que se configura na caridade, segundo o registro de Allan Kardec: benevolência, perdão e indulgência[5]. Observemos que o fundador da Ciência Espírita interroga os Espíritos a respeito do sentido da palavra caridade no que tange ao entendimento de Jesus, ou seja, em conformidade com os seus luminosos ensinos.
Esses três valores ainda são alvo de comentário de Kardec no texto em questão, recordando que “O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmãos”.
Para que nossos filhos manifestem ao mundo uma cultura de paz alicerçada na disposição para o diálogo, na compreensão das diferenças, no saber aprender com outras perspectivas, inspirada na humildade epistêmica tão necessária à complexidade dos tempos vividos, é necessário que sejamos, nós outros, também atentos àquela tríade, a fim de que nos façamos pacificadores em nosso trato com eles e nas lutas que nos cercam. Não esqueçamos, o exemplo é excelente ferramenta pedagógica.
Paz e bem!
 

[1] Instruções dos Espíritos sobre a regeneração da humanidade. In: Revista Espírita, Outubro de 1886.
[2] D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.
[3] Kardec, Allan. Primeiras lições de moral da infância. In: Revista Espírita, fevereiro de 1864.
[4] CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica. São Paulo: Cultrix, 2006.
[5] O Livro dos Espíritos, questão 886.

http://www.oconsolador.com.br/ano8/400/especial.html

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