a partir de maio 2011

domingo, 7 de setembro de 2014

Rituais da Morte: dos egípcios aos gladiadores da Roma Antiga

por Liszt Rangel
Não dispor de direito aos rituais funerários e ter o corpo jogado no rio ou no mar, reflete bem o conceito romano de uma morte imposta àquele que não passasse de um infame. Ao mesmo tempo, a mutilação de um dos membros do corpo, como a mão ou o aspecto do isolamento do local do sepultamento e ainda o tipo que é descrito como uma vala ou um poço, afastado da sepultura dos familiares pode reforçar a teoria de que este morto seria alguém que causou vergonha à sociedade ou a um grupo.

Antes de serem examinados os diferentes aspectos culturais relacionados aos rituais da morte é preciso antes entender o que são práticas mortuárias, como e para que existem ou simplesmente definir seus ritos, o que representam e quais as suas dinâmicas e reflexos. Há que se considerar o contato entre diferentes culturas que redirecionou, acrescentou ou retirou algo da prática mortuária originária de um determinado grupo.

No campo das práticas mortuárias, a Nova Arqueologia coloca em discussão o lugar do indivíduo no registro arqueológico, analisando os símbolos presentes nos rituais funerários, através dos estudos da Arqueologia das Práticas Mortuárias. Com o nome de Arqueologia da Morte, cunhado a partir da década de 70, abriu-se uma perspectiva para um novo campo que se dedicasse a estudar as práticas, ritos e símbolos que envolvem a morte, iniciando-se na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas logo foi utilizado em outros países. 

Vale salientar que a morte em si não é o único objeto de estudo da Arqueologia, mas tudo o que sobrou do processo que a envolve e que pode ser apreendido pelo pesquisador, como o funeral, os restos materiais da cultura que cada civilização possui ao destinar o corpo à morte, a memória do morto representada pelas escolhas da sociedade e da família, bem como toda a simbologia que dá sentido às práticas mortuárias. A reconstituição do ritual e seu significado acontece através dos objetos da orientação do corpo e do tratamento dado a ele. 

Neste ínterim, a própria Arqueologia diverge em relação aos termos usados para nomear tais estudos. Nessa divergência há o termo “Arqueologia dos Cemitérios”, criticada pelo fato da não existência desse local em várias sociedades, limitando, assim, o alcance dos estudos arqueológicos. O próprio termo “Arqueologia da Morte” é considerado inapropriado, pois coloca o fenômeno da morte como físico e humano, limitando o estudo na causa da morte e suas circunstâncias, e que por sinal devem ser consideradas, mas não apenas isso deve ser levado em conta. 

Na tentativa de resolver este impasse, surgiu a nomenclatura “Arqueologia Funerária”, porém esta não amplia o estudo às práticas funerárias, que podem ser percebidas pelos arqueólogos, sendo melhor interpretadas em seu processo de crenças e ritos. Entretanto, a expressão “Arqueologia das Práticas Mortuárias” aparece como mais abrangente e oportuna, além de direcionar o estudo às práticas concretas, em termos de vestígios da cultura material existente, deixando de lado o que não é acessível, como pensamentos e vontades do morto ou dos que o assistiram e que não foram materializados. 

Por outro lado, apesar da busca por uma definição da nomenclatura em torno das práticas mortuárias, há que se considerar uma outra questão mais importante que a da forma, que é a de fundo. Ou seja, o próprio estudo da finalidade de tais práticas, o que se considerar em seu contexto ou fora do mesmo e especialmente as leituras que são feitas, considerando as divergências e os pontos em comum que são encontrados entre os que se dedicam a estas observações e estudos. 

Ao examinar o túmulo ou a urna funerária, antes mesmo, há uma discussão que é preciso levar em conta acerca das inúmeras possibilidades de interpretar e reinterpretar o significado da morte para o grupo e assim poder viabilizar a identificação das características culturais, a contemporaneidade de seus objetos, bem como os detalhes presentes na decoração.

Esta discussão parece ter ficado presa no tempo, obedecendo à ideologias políticas, como é o caso dos estudos de Kossina (1911) que tentou resolver a questão de como se explica a existência de ritos funerários em diferentes grupos, simplesmente, propondo em seu discurso, que se considere a existência de culturas criativas e passivas e o domínio portanto que se opera entre elas. (RIBEIRO, 2007) Como se fosse possível desconsiderar que nesta influência (cultura criativa e passiva) não existisse “o retorno”, ou seja, enquanto observo e estudo tal objeto, este também me influencia, e foi desta forma que ocorreu no contato entre as culturas supostamente vistas como superiores e inferiores.

Há, portanto, uma polêmica em torno da transmissão dos traços culturais e que repercute na análise das práticas mortuárias. O Evolucionismo defende a ideia das transmissões de traços culturais, pela via exclusiva das culturas mais evoluídas para as menos evoluídas e assim contraditoriamente se afasta da crença no potencial de criatividade humana. Sem considerar este aspecto, somos induzidos a entrar em um contexto de superioridade racial e este debate se estrutura, através da dominação dos brancos sobre os negros e amarelos.

Englobando esses aspectos culturais e retomando então a questão do fundo, estar-se-ia pronto para uma análise das práticas funerárias. É oportuno observar a posição do corpo, a pintura de ossos e decorações das cerâmicas do mobiliário funerário, presentes em grupos afastados dos de origem. Ao se rastrear grupos diferentes pelo mesmo traço cultural, podemos atribuir que tal traço permaneceu mantido no tempo, não foi alterado.

As lendas antigas são fontes para nos oferecer conhecimentos acerca deste tratamento dado ao morto. Quando nelas, sejam gregas ou celtas, identifica-se a gravidade da importância das práticas mortuárias. Famoso ficou o conto de Sísifo, rei de Corinto, personificação do homem astucioso que levava vantagem nas situações e que tentou de todas as formas ludibriar a morte. Uma de suas táticas, segundo a lenda, foi combinar com sua esposa que quando a morte o levasse para as regiões de sofrimento, ela não realizasse seus ritos fúnebres, pois ele daria um jeito de voltar à vida. E assim, ele fez, dizendo a Hades que sua esposa fora uma ingrata, porque ele não recebera as honras em seu sepultamento e solicitou ao deus, permissão para voltar e reclamar a sua companheira, seu direito aos rituais. Hades concordou e ele mais uma vez escapou da morte, enganando o deus (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2012). 

Entre os celtas, consta a narrativa do reino de Donn, o Senhor dos Mortos, a quem todos os seres humanos um dia acabam prestando homenagens. Tais homenagens começam nas sepulturas, onde guerreiros e reis celtas estão enterrados com suas armas, joias e trajes cerimoniais (WOOD, 2011).

Os túmulos possuem vários significados em diferentes civilizações. Na Grécia, por exemplo, eram locais de cultos e oferendas, principalmente os túmulos dos chamados herois, onde, posteriormente, havia oferendas como forma de veneração aos antigos semi-deuses. Neste momento verifica-se inclusive, a busca de seus ossos como pressuposto de vitória contra o inimigo.

Ainda sob este aspecto, é apropriado observar o tratamento diferenciado antes e após o sepultamento. A continuidade dos ritos e oferendas feitas no túmulo pode indicar a importância do falecido, mas também foi observado nas sepulturas que tal continuidade de adoração pode sugerir um culto aos antepassados de familiares. A busca por possuir restos mortais ou objetos pessoais seria algo a considerar quanto à posição social do reverenciado, pois sugeriria relação com poder, respeito e realçaria a uma continuação da legitimidade na liderança de um grupo, como forma de suposta “bênção” do rei ou heroi, ou simplesmente uma associação com sua posição e prestígio. “A posse de tais objetos autoriza aquele que o possui a representar o passado, autoridade fundamental para o funcionamento da vida presente” (RIBEIRO, 2007).

No que diz respeito ao tratamento dado às práticas mortuárias, é preciso entender que este processo tomou um âmbito social mais amplo. No Egito, nos fins do Reino Antigo e início do Médio, conforme textos encontrados nas pirâmides, eles revelam parte de rituais funerários, verdadeiros guias para o morto no outro mundo. Estes textos puderam ser utilizados por outros componentes da sociedade egípcia, que os copiavam em suas esquifes os encantamentos fúnebres antes escritos pelos reis, porém de forma resumida, fazendo surgir o ritual conhecido como Texto dos Sarcófagos, acompanhados por ritos, objetos e símbolos, anteriormente apenas régios (FINNESTAD, 1989 apud DAVID JOÃO, 2011). 

Um importante aspecto sobre o significado dos rituais funerários, é que este deveria permitir a retomada das faculdades físicas e mentais dos mortos, a fim de que esses desfrutassem, no outro mundo, de uma vida similar àquela terrena. Um exemplo disso são os banquetes funerários, parte essencial dos ritos egípcios, pois através dele, o morto poderia absorver a energia vital dos alimentos (DAVID JOÃO 2011).

As práticas funerárias devem, nesta perspectiva egípcia, ser entendidas num contexto de transformações políticas e sociais. Lidando com os mortos, os vivos fazem uso de rituais que representem uma renovação social (GARRAFFONI, 2005). Ou seja, controle social. 

Esse conceito nos remete, também, ao controle social e manutenção da ordem através da violência. Um exemplo disso é a luta de gladiadores.  Hopkins (1983)apud Garraffoni (2005), refere-se às lutas de gladiadores como um teatro político, um terror que legitimava a força imperial, ajudando a construir a soberania política.

Inscrição do altar dedicado a Marte 
Antes mesmo de se lançarem à morte na arena, os gladiadores realizavam o ritual de adoração a Marte, deus da guerra, expressão máxima da violência, cultuado em um altar específico antes dos espetáculos violentos. Marte era considerado o deus protetor das arenas. Pude ver um desses altares em minhas pesquisas realizadas em Lyon, França. Eis a inscrição da foto ao lado, "Ao deus Marte, Callimorphus, segundo comandante desta companhia, na realização de um desejo".


Assim, já podem ser vistos como rituais mortuários certos procedimentos que se iniciavam desde a luta. Os gladiadores se vestiam como bárbaros ou guerreiros míticos, com armas e armaduras tradicionais entre as tribos inimigas e estavam treinados a morrer com dignidade, sem pedir clemência. Para terem a certeza de que o gladiador estava morto, eles sofriam mutilações de toda ordem. Neste contexto, sacrificar prisioneiros de guerra e espalhar seu sangue sobre as tumbas de grandes guerreiros era uma prática comum e tinha como finalidade transferir seu poder para os herois, cortando suas gargantas sobre uma sepultura (WHITE, 2013).

Os gladiadores foram adorados e aclamados pelo povo em sua forma violenta que lhes conferia ares de seres poderosos, cujos suores podiam ser vendidos como afrodisíacos e quando a morte os visitava, alguns recebiam tratamento com rituais funerários e ainda tinham suas lápides com epítetos dignos dos herois. A manutenção do culto em seus túmulos era feita por seus admiradores e fãs.

Após esta pequena viagem pelo Mundo Antigo, vemos o quanto o nosso passado está presente em nossos cemitérios atuais, bem como os rituais da morte ainda nos envolvem. Não devemos, portanto, interpretar a prática mortuária como um ato isolado, pois ela faz parte de todo um conjunto, um processo que acontece ainda em vida e por isso não encontra-se ligada apenas à morte, mas também ao morrer.

REFERÊNCIAS:

DAVID JOÃO, Maria Thereza. Do templário ao funerário no Egito Antigo: o exemplo do Ritual de Abertura da Boca. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
FRANSCHINI, A.S.; SEGANFREDO, Carmem. As Melhores Histórias da Mitologia: deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. Porto Alegre: L&PM, 2012, v.2.
MORRIS, Ian. Death-Ritual and Social Structure in Classical Antiquity. New York:
Cambridge University Press, 1996.
RIBEIRO, Marily Simões. Arqueologia das Práticas Mortuárias: uma abordagem historiográfica. São Paulo: Alameda, 2007.
WHITE, Mathew.O Grande Livro das Coisas Horríveis: a crônica definitiva da história das 100 piores atrocidades. Rio de Janeiro: Rocco, 2013).
WOOD, Juliette. O Livro Celta da Vida e da Morte: um guia ilustrado. São Paulo, Pensamento, 2011. 

http://lisztrangel.blogspot.com.br/2014/09/rituais-da-morte-dos-egipcios-aos.html

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