Paulo da Silva Neto Sobrinho
O programa da Doutrina não será, pois, invariável senão sobre os princípios passados ao estado de verdades constatadas; para os outros, ela não os admitirá, como sempre o fez, senão a título de hipóteses até a confirmação. (KARDEC).
Este estudo deve ser considerado apenas um ensaio não é; portanto, para ser tomado como algo pronto e acabado. Nesse primeiro momento, a nossa intenção é levantar uma reflexão mais focada sobre o tema. No futuro, depois das prováveis contribuições de estudiosos, decidiremos qual direção haveremos de tomar com relação a torná-lo definitivo.
Levando em conta os seus efeitos Allan Kardec (1804-1869) explicou que “Os fenômenos espíritas são de duas espécies: os de efeitos físicos e os de efeitos inteligentes”. (LM, Cap. IV, item 37, p. 37).
Um pouco mais adiante ele dividiu os médiuns em duas grandes categorias (LM, Cap. XVI, item 187, p. 159):
Kardec completa dizendo:
O nosso foco será a participação do médium que, conforme a linha do raciocínio aqui proposto, seria o do uso que os Espíritos fazem de seu patrimônio:
No mental, temos o médium sendo transmissor do pensamento do Espírito, que lhe passa telepaticamente o que deseja transmitir; no corporal, o corpo do médium é utilizado pelo Espírito, podendo tanto ser de apenas um órgão, quanto de todo o seu complexo físico; no energético, o médium fornece, ainda que inconscientemente, a energia necessária para a produção dos fenômenos denominados de efeitos físicos, “energia” essa denominada de ectoplasma, termo cunhado por Charles Richet (1850-1935), fundador da Metapsíquica.
Por patrimônio energético queremos designar a força nervosa ou ectoplasma que é a “energia” emanada do médium para a produção dos fenômenos espirituais, classificados como de efeitos físicos. Aliás, sem ela não há como os Espíritos produzirem tais fenômenos, porquanto ele é imprescindível à sua produção.
Podemos representar os fenômenos espirituais, olhando-os pela ótica da participação dos envolvidos no processo, com o seguinte quadro:
A linha vermelha, que divide os dois campos, seria, didaticamente, a representação da participação dos envolvidos nos fenômenos espirituais. Inicia-se com a participação total do médium, faixa de 0 a 1, seguindo com uma graduação da participação de ambos, faixa de 1 a 3, até terminar com a participação somente do Espírito, faixa de 3 a 4.
Colocamos essa última faixa para manter a consequente simetria e, especialmente, em razão de existir a primeira, e por também pensarmos que se pode afirmar que existem fenômenos onde só há participação dos Espíritos sem concurso de alguma atividade mental, tipo transmissão de pensamento, do médium. Resumindo, então teríamos:
Estamos conscientes de que, para nós, em muitos dos fenômenos espirituais, não é nada fácil identificar de forma precisa o grau de participação do médium e do Espírito; talvez isso nem mesmo seja possível de se fazer.
Animismo
De início, apresentaremos duas definições que são necessárias para bem nos situarmos. Nossa fonte será a obraDicionário de Filosofia Espírita, de autoria do estudioso Lamartine Palhano Júnior (1946-2000):
Acreditamos que, no meio espírita, muitos de nós estamos utilizando as palavras anímico e animismo indiscriminadamente e isso, a nosso ver, provoca alguns equívocos, especialmente ao se tomar qualquer tipo de participação do médium no fenômeno espiritual como anímico, incluindo os casos em que ele fornece o ectoplasma ou nos que empresta o corpo físico. Ora, se anímico, como se vê nas definições acima, leva-nos ao conceito de animismo, então não seria o caso de sua aplicação generalizada como estamos fazendo.
De acordo com o que conseguimos entender das definições de Palhano Júnior, a participação ou o papel do médium no fenômeno espiritual não deveria ser qualificada como anímica, pois esta designação é dada à manifestação do próprio Espírito do médium, e não a de Espíritos desencarnados em que o médium coloca algo de “tempero” pessoal.
Há um curioso fenômeno espiritual pelo qual o Espírito de uma pessoa viva pode se manifestar em um local onde o seu corpo físico não se encontra:
Kardec menciona da História Eclesiástica os nomes dos santos Afonso de Liguori e Antônio de Pádua, como dois bons exemplos de bicorporeidade.
Vejamos esta explicação, constante de O Livro dos Médiuns (LM):
J. Herculano Pires (1914-1979), explica que “A vidência propriamente dita independe dos olhos materiais, porque é uma visão anímica, a alma vê fora do corpo” (KARDEC, 2006, p. 145), ou seja, é o Espírito do médium que vê as coisas do plano espiritual, o que por si só não faz do fato uma ocorrência mediúnica, passando a sê-la quando o médium estabelece contato com algum Espírito.
Ainda em O Livro dos Médiuns, no tópico em que são mencionados os médiuns sonâmbulos, encontramos:
Se “o sonâmbulo age por influência do seu próprio Espírito”, não há como não vermos aqui o animismo.
Mais à frente, quando se fala do papel do médium nas comunicações, Kardec, volta ao assunto:
Nas reuniões mediúnicas, todo cuidado devemos empregar para não tratar uma manifestação do Espírito do médium como se ele fosse de um desencarnado; seria muito gozado ver o Espírito do médium manifestando-se e o dialogador dizer-lhe: “Você já desencarnou, meu irmão, acompanhe estes Espíritos de luz que estão aí a seu lado.”
Mediúnico
Em janeiro de 1859, Kardec responde às perguntas do Príncipe G., em carta dirigida a ele e transcrita na Revista Espírita. Tomemos esses dois parágrafos:
A transmissão dos pensamentos dos Espíritos, mais comumente se dá pela fala e pela escrita, onde o médium reproduz aquilo que lhe transmitem os Espíritos. Kardec denominou os primeiros de médiuns falantes, mais conhecidos como médiuns psicofônicos, e os segundos de médiuns escreventes ou psicógrafos. Classificando estes últimos em várias modalidades, das quais ressaltamos essas três:
Acreditamos que, em algumas situações, os médiuns psicofônicos e os psicográficos, podem estar agindo, não como intérpretes, mas, temporariamente, “cedendo” seus corpos físicos aos Espíritos para que, eles mesmos, deem suas mensagens, sem interferência mental dos médiuns, caracterizada com o médium recebendo e transmitindo a mensagem do Espírito. Julgamos que, dos citados acima, os médiuns escreventes mecânicos têm tudo para agirem dessa forma. No próximo tópico esperamos explicar com mais detalhes.
Provavelmente os médiuns pintores ou desenhistas denominados, na atualidade, de médiuns de psicopictografia, que produzem as deslumbrantes “pinturas mediúnicas”, também trabalham incorporados.
Espirítico
Aqui incluímos a possessão/incorporação, que é a posse do corpo físico por parte de um Espírito. Aliás, esse ensaio surgiu da reflexão sobre esse fenômeno.
Devemos esclarecer que até a publicação de O Livro dos Médiuns, ocorrida em 15 de janeiro de 1861, Kardec ainda não admitia posse física como algo possível. Mas todos sabemos que ele mudou de ideia, diante de um caso que lhe foi apresentado e que fez constar da Revista Espírita 1863; trata-se do “Caso de possessão – Senhorita Julie”.
Em 6 de janeiro de 1868, data da publicação de A Gênese, Kardec volta ao assunto, colocando, em termos bem claros, a realidade da possessão física. Em razão disso, nas palavras de Kardec, em O Livro dos Médiuns, sobre a participação do médium, não devem ser consideradas as possessões/incorporações, já que nessa época ele ainda não admitia tal possibilidade: “O Espírito comunicante não substitui a Alma do médium, porque não poderia deslocá-la do corpo: domina-a, sem que isso dependa da vontade dela, e lhe imprime a sua vontade própria”. (LM, Cap. XV, item 180, p. 153).
Vejamos algumas explicações em O Livro dos Médiuns.
A afirmativa de que o médium “escrevia sob a influência do Espírito, sem o concurso da vontade ou do pensamento daquele” nos leva a concluir que, em algumas situações, é importante frisar, o Espírito está mesmo utilizando-se de algum órgão do médium, para, diretamente, ou seja, sem nenhuma interferência mental dele, passar o seu pensamento.
No caso de movimentação de objetos, os Espíritos utilizam-se da energia – ectoplasma – do médium para realizar os fenômenos. Também aqui não vemos nenhuma utilização da mente do medianeiro para transmitir sua mensagem.
Falando sobre a tiptologia, Kardec disse: “Achamos que a independência do médium é perfeitamente provada pelos golpes internos e mais ainda pelo imprevisto das respostas do que todos os meios materiais. […]”. (LM, Cap. XI, item 143, p. 128). Claro fica que o médium não age mentalmente; apenas contribui como doador do ectoplasma.
Sobre a escrita direta, temos: “A Pneumatografia é a escrita produzida diretamente pelo Espírito, sem nenhum intermediário. Difere da psicografia porque esta é a transmissão do pensamento do Espírito pela mão do médium”. (LM, Cap. XII, item 146, p. 130). Mais uma situação em que, em nossa opinião, não há interferência mental do médium.
Falando da utilização das cestas e das pranchetas, Kardec explica:
Como dito, “o Espírito comunicante age sobre o médium” e não, como muitas vezes se crê, transmite seu pensamento ao médium, que, por sua vez, o escreve.
Completa o que já dissemos antes.
Em O Livro dos Médiuns, Cap. XV – Médiuns escreventes ou psicógrafos, encontramos nas explicações sobre os médiuns mecânicos:
Se “o Espírito exerce ação direta sobre esses objetos” e com isso consegue “exprimir diretamente o seu pensamento”; então, não há interferência mental do médium do fenômeno: “[…] os médiuns mecânicos, podem ser instrumentos absolutamente passivos e gozarem da mais completa independência de pensamentos. No médium mecânico, o Espírito atua sobre a mão, que recebe um impulso inteiramente involuntário”. (Revista Espírita 1859, outubro, p. 264). Ademais, se “pela sua ação sobre a própria mão do médium” o Espírito também pode exprimir diretamente o seu pensamento, mais uma vez, confirma a não interferência mental do médium.
Está afirmado de forma categórica que “O papel do médium mecânico é o de uma máquina” (LM, Cap. XV, item 180, p. 153); ora, se age como “uma máquina” ele, o médium, obviamente nada acrescenta de si.
Deparamos com situações que contradizem tudo quanto foi dito; isso na mesma obra O Livro dos Médiuns. Vejamos que também é afirmado que os Espíritos não transmitem diretamente seu pensamento:
Faça-se uma analogia do médium com um provedor de Internet que exerce a função do veículo de transmissão do e-mail, mas não toma conhecimento do seu conteúdo.
Como algo específico, tudo bem; mas de forma genérica, como acreditamos ser afirmado, contradiz as várias afirmações anteriores de que, em algumas situações, os Espíritos comunicam-se diretamente.
Aqui, mais que em qualquer outro lugar, nos parece que joga por terra tudo quanto foi dito a respeito de comunicação direta dos Espíritos. No caso das manifestações físicas, onde julgamos que o Espírito não age senão se utilizando do ectoplasma, aqui está dito que ele “recebe o pensamento sem o perceber e o transmite pouco a pouco”; muito estranho, diante das outras afirmações.
Isoladas as explicações parecem dúbias, mas levando-se em conta o dito nas questões anteriores, está se afirmando que, em todos os tipos de mediunidade, o médium participa mentalmente, o que nos parece não condizente com o que já foi dito e, para falar bem a verdade, nem muito lógico. Nos casos, por exemplo, da voz direta, da escrita direta e dos fenômenos de transporte, como conciliar com alguma participação mental do médium?
Voltemos à questão da possessão/incorporação, pois há mais coisas a serem colocadas.
Na Revista Espírita, mês de fevereiro 1869, Kardec narra o caso de um Espírito que não acreditava estar morto, mas sonhando:
A descrição do comportamento do Sr. Morin, é bem interessante: “Ele falou durante uma hora, e isso foi uma cena das mais curiosas, porque o médium tomou a sua pose, seus gestos, sua voz, sua linguagem ao ponto que aqueles que o tinham visto o reconheceram sem dificuldade”. Não temos dúvida de que acontecer esse tipo de comportamento, o Espírito manifestante não sofria nenhuma interferência mental do médium, o que se pode comprovar diante da explicação que um outro Espírito deu ao fenômeno.
Vejamos quais tipos de mediunidade o Dr. Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) admite a possibilidade de também ocorrer por incorporação:
São outras situações em que a interferência mental do médium é, segundo a nossa maneira de perceber, nula.
Léon Denis (1846-1927) é um estudioso que não podemos deixar de citá-lo. De seu livro No Invisível, capítulo XIX, intitulado Transe e incorporações; transcrevemos:
A opinião de Léon Denis é clara quanto à questão de existirem, além da incorporação, com o desencarnado assumindo o corpo físico do encarnado, os casos de transmissão de pensamento. Sim; compreendemos haver situação que a transmissão “mente a mente” rege o fenômeno; entretanto, isso não significa dizer que em todos os fenômenos espirituais o fato também acontece.
Mais à frente, Denis explicita:
Entendemos que o Espírito apropriando-se do cérebro, assume o comando do corpo físico do médium, manipulando-o à sua vontade. Acreditamos que é em razão disso que alguns médiuns reproduzem fielmente tanto a voz quanto a caligrafia do Espírito comunicante, indo até mesmo manifestar todas as particularidades deste, como no caso do Sr. Morin, mencionado um pouco atrás.
Do Cap. XXII – Da mediunidade nos animais, de O Livro dos Médiuns, transcrevemos este trecho que consta da comunicação de Erasto a respeito do tema:
Certamente que o que o médium fornece é o ectoplasma, energia necessária para que os Espíritos possam combinar seu próprio envoltório (perispírito) com o do médium para a movimentação da matéria inerte, mesmo que o médium não esteja presente e nem consciente disso. Não podemos deixar de lembrar que, quando se fala em Espírito, na situação de desencarnado, devemos entendê-lo como um ser duplo, conforme afirma Kardec: “a alma e o perispírito separados do corpo constituem o ser chamado Espírito” (O que é o Espiritismo, Cap. II, item 14, p. 155). Considerando que o encarnado é um ser triplo, basta somar a esse ser duplo o corpo físico teremos o seu conjunto. Nos casos de possessão/incorporação a alma do médium, acompanhada do perispírito, afasta-se do corpo físico, sem, entretanto, desligar-se dele, já que isso só ocorre com a morte, o que nos autoriza supor que, de alguma sorte, o médium poderá controlar o uso que o Espírito faz de seu corpo.
O que estamos aqui colocando é fruto de um bom tempo de reflexão. Esperamos não estar indo além do limite, e nem querendo impor nossa maneira de ver e, menos ainda, contrariar os postulados basilares do Espiritismo.
Paulo da Silva Neto Sobrinho
Set/2014.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, H.G. Espírito, Perispírito e Alma. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2002.
KARDEC, A. O Livro dos Médiuns. São Paulo: Lake, 2006.
KARDEC, A. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2001.
KARDEC, A. Revista Espírita 1859. Araras, SP: IDE, 1993e.
KARDEC, A. Revista Espírita 1863, Araras – SP: IDE, 2000b.
KARDEC, A. Revista Espírita 1868. Araras, SP: IDE, 1993j.
KARDEC, A. Revista Espírita 1869, Araras – SP: IDE, 2001b.
DENIS, L. No Invisível, Rio de Janeiro: FEB, 1987.
PALHANO JR, L. Dicionário de Filosofia Espírita. Rio de Janeiro: Edições Léon Denis, 2004.
http://www.aeradoespirito.net/ArtigosPN/A_PARTICIP_DO_MEDIUM_NOS_FENOM_ESPIR.html
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