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terça-feira, 6 de maio de 2014

Por dentro do Cristianismo - O problema dos evangelhos!

por Liszt Rangel
O problema do Novo Testamento é o mesmo que se encontra no Antigo Testamento: a originalidade destes documentos está perdida. Se os primeiros livros do Antigo Testamento foram escritos em média 700 anos após o ocorrido daqueles fatos, isto já nos leva a questionar a credibilidade de tais narrativas, e em especial quem foram seus autores, mas também a quem desejavam atingir. O maior erro do Cristianismo foi ter tornado a Bíblia um livro histórico e ao mesmo tempo um artigo de fé inquestionável, um livro sagrado.

Não há registros seguros na Bíblia, e isto inclui também os evangelhos. Os evangelhos que hoje dispomos são cópias de cópias que se multiplicaram ao longo dos séculos. Eles carregam a marca de escribas gregos intelectuais que pouco conheciam os costumes judaicos. Raros são os momentos em que aparecem citações em aramaico nos textos gregos, como é o caso de "Abba" que deve ser entendido como "Papaizinho" (Mc 14,36) e "Talitha cum", que significa "Menina, levanta-te" (Mc 5,41). "Isto quer dizer que nenhum dos evangelhos canônicos pode remontar a Jesus. Como a maioria dos membros da Igreja era falante de grego, habitantes não-judeus do Império Romano, era necessário que os ensinamentos de Jesus fossem feitos em grego."¹

Ao que se sabe até o momento, em crítica textual e exegese, é que as cartas de Paulo devem ter sido os primeiros textos usados pelas comunidades cristãs não-judaicas. Isto também não implica dizer que as cartas são originais e confiáveis. *

Aliás, não se pode levar a sério quem disser, atualmente, que possui alguma tradução original dos evangelhos. Não há nenhuma possibilidade de termos acesso às fontes originais quer em aramaico, hebraico muito menos em grego antigo. E esta é a opinião dos maiores especialistas no assunto. Ao menos em alguns pontos eles concordam. "Entretanto, os nossos quatro evangelhos sobreviveram em grego; eles não são traduções de um original semítico." ¹

Os evangelhos não foram escritos por quem os assinou, aliás nenhum daqueles que escreveu o evangelho conheceu de fato Jesus. É bom frisar que os evangelhos não foram escritos por uma pessoa apenas, mas por 4, 6, 8, 12 e até por 20 mãos para chegar a formatação que hoje conhecemos. Sendo assim, Marcos não foi escrito totalmente por Marcos; nem tampouco Mateus escreveu Mateus. Este que assina Mateus não é aquele Levi, coletor de impostos, que por sinal não há explicações racionais para Jesus ter mudado o nome dele para Mateus. E o evangelho atribuído a Lucas, então, nem se fala, pois o que mais tem neste texto são arrumações posteriores para que tudo fique bem organizado e à disposição de uma religião nascente. Já o de João, como se afirma nos próprios Atos que ele e Pedro eram analfabetos, não foi escrito por ele. Além do mais, a escrita e o pensamento ali predominante pertencem a um estilo grego e não a um homem nascido na Judeia.  

Os primeiros escritos são chamados pelos pesquisadores de Q, ou ainda de os Ditos do Senhor. A letra Q vem da palavra alemã "Quelle", que significa "fonte". Já tive a oportunidade de escrever sobre este material em outra oportunidade nos meus livros. A fonte Q seria um documento que possuía as palavras e fatos mais originais de Jesus. Nela encontraríamos a sabedoria e a regra de conduta que norteou os passos daqueles que o ouviram. Este grupo que conheceu Jesus e seus ensinos são conhecidos pelos especialistas como oPovo de Q. 

Este grupo de galileus analfabetos e pescadores se associou a pessoas nas cidades de Corazim, Betsaida, Migdal, Cafarnaum e assim dividiam-se entre os que seguiam Jesus, os que patrocinavam suas andanças e os que apenas o acolhiam em seus lares. Nem todos, ou melhor, a maioria não estava disposta a sair pelo mundo para falar de amor ao próximo. Na verdade, eles eram judeus e praticantes do Judaísmo. Não queriam uma nova religião. O Nazareno, para eles, era apenas um mestre de profunda sabedoria, e eles deveriam admirá-lo, especialmente pela coragem de tentar ajudar os mais fracos enquanto o mundo era dominado pela violência dos mais fortes, os romanos.

Muitos estudiosos acreditam que a fonte Q perdeu-se no tempo. Já uma minoria ainda tem a esperança de achar tal documento e quem sabe resgatar a essência de sua mensagem. Há ainda um grupo de pesquisadores que aceitam que tal fonte encontra-se espalhada nos próprios evangelhos e identificá-la seria um trabalho árduo, mas alguns acreditam ser possível.

Os que acreditam na tese da fonte Q, defendem que ela foi usada pelos amigos de Jesus por volta dos anos 30 e 40 d.C. e deve ter sido escrita por uma pessoa instruída, talvez o Levi ou outro coletor de impostos, já que Jesus adorava viver na companhia deles e também retirava-os do trabalho que explorava os mais pobres. É possível que Marcos tenha lido alguma coisa nela, quando começou a escrever suas primeiras anotações por volta de 65 e 70 d.C. Porém, escrever algo sobre o que alguém fez e falou depois de quase 40 anos após a sua morte, é muito difícil, ainda mais quando se está ouvindo o que sai da memória do povo. Entre os anos 85 e 90 d.C. apareceram os evangelhos atribuídos a Mateus e a Lucas e pelos fins de 90 d.C., surge o evangelho atribuído a João. Tanto este evangelho quanto as cartas do senhor Paulo de Tarso serão muito usadas na formação da Igreja, e até hoje constituem seu maior pilar.

O evangelho de Marcos, portanto, foi o primeiro a surgir. Quando se pensa em evangelho sendo escrito no primeiro século, é bom imaginar um papiro, sem títulos, sem capítulos, muito menos versículos, um texto corrido. Trata-se apenas de anotações soltas colhidas nas ruas, nas aldeias, conversando com transeuntes que diziam assim: "eu ouvi dizer que Jesus curou um homem cego lá para as bandas de Jericó!". E um outro ao lado, vai completar, "sim, eu conheço uma mulher que a mãe dela conheceu um nazareno que era do mesmo lugar desse tal Jesus".

Além do mais, há uma outra dificuldade, é encontrar testemunhas de tal mensagem, principalmente depois da destruição de Jerusalém em 70 d.C. feita pelas forças do general Tito. Um outro ponto importante na busca pelas testemunhas oculares, é que na época de Jesus as pessoas tinham suas preocupações diárias, e nem todas ouviram falar dele. Ele não teve a fama que os próprios evangelhos tanto carregam quando se referem a uma multidão que o seguia. Jesus não teve tantos adeptos de sua mensagem como muitos pensam. É claro que suas pregações e feitos devem ter atraído a muitos, entretanto a maioria não estava preocupada com questões espirituais, mas interessada em uma vida sem problemas, pacífica e andar com Jesus era atrair os olhares do sacerdócio corrupto e do representante de Roma. Assim como ele, multiplicavam-se outros curandeiros e profetas naquele tempo. E muitos morreram por incitarem as massas contra Roma. 

O que se percebe, portanto, é que os evangelhos nasceram para um objetivo, a Cristianização do Mundo. Jesus é o Salvador! E nele devemos ter a promessa de um retorno para que apenas os justos, os escolhidos tenham a vida eterna! O resto? Ah... o resto vai é para o Inferno mesmo!!! Esta é a filosofia do Cristianismo, salvar o mundo do mal e ter "Nosso Senhor Jesus Cristo" à frente como a encarnação do próprio Deus, ou seja, Deus também é cristão!

E quem não for cristão, não pode ser filho de Deus. Então, é filho de quem? Só pode ser do diabo!

Quando se fala, portanto, em ideologia cristã e releitura da mensagem de Jesus, seja esta psicológica ou moral, deve-se ter muito cuidado, sinal de alerta está aceso, principalmente para que não se cometa o mesmo erro dos cristãos copistas, o de manipular para encaixar nesta ou naquela doutrina ou religião. É muito perigoso dizer que Jesus disse isso ou aquilo, ou que este pensamento é verdadeiramente de Jesus. Os cristãos normalmente, não possuem esta prudência, até porque não se exige ter uma fé aliada ao conhecimento. Ainda há os que conhecem as adulterações, mas que optam por uma fé cega. E assim, multiplicam o rebanho em torno de interpretações desta ou daquela escola religiosa.

O problema dos evangelhos então, é de todo um problema? Em absoluto! De forma alguma, pois ali estão belas máximas morais, verdadeiras pérolas; algumas delas, provavelmente, saídas dos lábios do Homem de Nazaré. O problema, portanto, constitui em tornar os evangelhos um documento inquestionável e seguro. Agindo assim, quem sabe não seremos "cegos que guiam cegos"? E ainda hoje talvez ele pegunte: "o que acontece quando um cego guia outro?"

"Ambos caem no abismo", eis a resposta. 

Mas nós já caímos. Estamos apenas tentando nos salvar, subindo uns sobre os outros, os mais fortes sobre os mais fracos... Eis um outro problema dos evangelhos - a Salvação!

* Consultar artigo anterior, "Por dentro do Cristianismo - Quem fundou?"

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
¹ VERMES, Geza. O Autêntico Evangelho de Jesus. Record: Rio de Janeiro, 2006. 

http://lisztrangel.blogspot.com.br/2014/05/por-dentro-do-cristianismo-o-problema.html

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