a partir de maio 2011

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Possessão: há a posse física do encarnado?

Possessão: há a posse física do encarnado?

Paulo da Silva Neto Sobrinho

E o homem que estava possesso do espírito mau pulou sobre eles com tanta violência, que tiveram de fugir daquela casa, sem roupas e cobertos de ferimentos”. (Atos 19,16)
Introdução
Por várias vezes nos deparamos com essa dúvida, quando pessoas nos perguntavam se, nos casos de obsessão, haveria verdadeiramente uma posse física do encarnado, ou seja, se o espírito obsessor “entraria” mesmo no corpo do obsidiado, passando a agir com o corpo deste.
A nossa própria experiência nos leva a crer que, em alguns casos, tem-se mesmo a nítida impressão que sim. Mas é importante ressaltar que, de forma alguma, estamos generalizando para todos os casos de obsessão. Vamos contar agora uma ocorrência que nos levou a rever nosso posicionamento anterior de que a posse física não poderia ocorrer em nenhuma hipótese.
Realidade x teoria: Uma paciente em obsessão
No início do ano de 2005, época em que morávamos no interior de Minas Gerais, fomos chamados para ajudar uma moça que havia sido hospitalizada por estar se comportando de maneira anormal. Isso se deu porque entre os parentes, alguns perceberam que ela estava influenciada por espíritos; por isso solicitaram o nosso auxílio. Chegando ao local onde ela se encontrava, vimos que a possibilidade de estar mesmo sob influência espiritual era evidente, pois, além de falar com voz masculina, falava coisas que, em seu estado normal, não lhe era habitual. Naquele momento, havia dois homens fortes segurando-lhe os braços, restringindo-lhe os movimentos, uma vez que queria agredir a si mesma. Tivemos notícias, por algum dos presentes no quarto, que o pároco da cidade havia passado por lá, numa rápida visita. Ele, ao sair, disse que, quando ela ficasse boa, ele voltaria. Como se diz popularmente: aí, até nós!...
A equipe de médiuns, que nos acompanhava naquele atendimento fraterno, também teve essa mesma impressão. Passamos, então, a estabelecer diálogo com os espíritos que a atormentavam. E, após vários se apresentarem, conseguimos, finalmente, libertá-la daquelas influências, fato que a fez voltar a seu estado normal.
Passados alguns dias, fomos, novamente, chamados para ajudar essa moça. Desta vez, estava em sua própria residência, com os mesmos sintomas, falando com voz que não era a sua, e tentando se agredir, ou seja, comportava-se exatamente como da primeira vez. Na oportunidade, conversamos com vários espíritos. A situação estava difícil, pois, mal acabávamos de convencer um espírito a se afastar da moça, “entrava” outro. E, assim, ficamos por mais de uma hora. Por fim, dada a nossa incapacidade de resolver a questão, recomendamos aos familiares que a levassem ao Hospital Espírita André Luiz, na capital mineira, para avaliação e tratamento, se a situação assim o exigisse.
A equipe do Hospital constatou que a moça, realmente, estava sob forte influência espiritual, recomendando que seu nome fosse levado para a reunião específica de desobsessão e que, semanalmente, por um tempo longo, tomasse passe, além de ter receitado medicamentos para tranquilizar a paciente, de conformidade com os procedimentos médicos tradicionais para o caso.
Daí, sempre que possível, a família a levava ao Grupo Espírita que, nessa época, frequentávamos. Na hora do passe era um sufoco, pois a moça mal fechava os olhos, e pronto: entrava em sintonia com os espíritos que a perseguiam. Isso fez com que orientássemos aos passistas para que, no momento do passe, não a deixassem se concentrar.
Entretanto, numa certa vez, após adentrar à câmara de passes, entrou em transe, numa nítida sintonia espiritual. Aliás, nunca vimos uma pessoa sintonizar-se tão facilmente quanto ela. Fomos imediatamente chamados para ajudar. Embora a situação fosse extremamente inadequada, de igual modo que nas anteriores, iniciamos o diálogo com o espírito que a assediava, e, com muito custo, conseguimos dele a promessa de que iria “sair” da moça. Imediatamente após ele dizer isso, a moça perdeu todo o controle do corpo, caindo ao chão, sem que pudéssemos fazer absolutamente nada, dada a rapidez com que isso aconteceu. Ajudado pelos companheiros, com relativa dificuldade, a colocamos numa cadeira, tentando reanimá-la, o que ocorreu poucos minutos depois. Ao voltar a seu normal não se lembrou de nada do que lhe ocorrera nesse período de tempo. Saiu naturalmente, como entrou, de forma que, quem a viu sair da câmara de passes, não percebeu o que havia lá ocorrido.
Foi a partir desse episódio que passamos a questionar o conceito de que todos os fenômenos mediúnicos têm como base a mente; em outras palavras, tudo ocorre em nível de sintonia mental entre os envolvidos, sem qualquer tipo de ligação física. Mas, o fato ocorrido nos remetia a acreditar que havia realmente uma posse física, o que, a nosso ver, justificava a queda da moça após a “saída” do espírito, se assim podemos nos expressar, não conseguindo, o seu próprio espírito assumir, a tempo, o controle do corpo, de modo a evitar a sua queda.
Essa questão foi amplamente debatida entre os membros do Grupo e, na ocasião, chegou às nossas mãos um texto publicado no site Portal do Espírito, em que o articulista defendia, ou melhor, demonstrava que Allan Kardec (1804-1869) havia falado algo a respeito disso. Vejamos, então, nas obras kardequianas o que podemos encontrar.
O assunto nas obras básicas da Codificação
Iremos apresentar em ordem cronológica o que encontramos daquilo que Kardec disse, para que fique clara a evolução do seu entendimento sobre o assunto.
1) Abr/1857 – O Livro dos Espíritos
Abordado nas seguintes questões:
473. Pode um Espírito tomar temporariamente o invólucro corporal de uma pessoa viva, isto é, introduzir-se num corpo animado e obrar em lugar do outro que se acha encarnado neste corpo?
O Espírito não entra em um corpo como entras numa casa. Identifica-se com um Espírito encarnado, cujos defeitos e qualidades sejam os mesmos que os seus, a fim de obrar conjuntamente com ele. Mas, o encarnado é sempre quem atua, conforme quer, sobre a matéria de que se acha revestido. Um Espírito não pode substituir-se ao que está encarnado, por isso que este terá que permanecer ligado ao seu corpo até ao termo fixado para sua existência material.”
474. Desde que não há possessão propriamente dita, isto é, coabitação de dois Espíritos no mesmo corpo, pode a alma ficar na dependência de outro Espírito, de modo a se achar subjugada ou obsidiada ao ponto de a sua vontade vir a achar-se, de certa maneira, paralisada?
“Sem dúvida, e são esses os verdadeiros possessos. Mas, é preciso saibas que essa dominação não se efetua nunca sem que aquele que a sofre o consinta, quer por sua fraqueza, quer por desejá-la. Muitos epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico que de exorcismos, têm sido tomados por possessos”.
O vocábulo possesso, na sua acepção vulgar, supõe a existência de demônios, isto é, de uma categoria de seres maus por natureza, e a coabitação de um desses seres com a alma de um indivíduo, no seu corpo. Posto que, nesse sentido, não há demônios e que dois Espíritos não podem habitar simultaneamente o mesmo corpo, não há possessos na conformidade da ideia a que esta palavra se acha associada. O termo possesso só se deve admitir como exprimindo a dependência absoluta em que uma alma pode achar-se com relação a Espíritos imperfeitos que a subjuguem.
(KARDEC, 2007a, p. 282, grifo nosso).
Nessa circunstância, não há nenhuma margem para dúvidas de que, naquele momento, não julgava que pudesse haver possessão física, mas sim subjugação. E Kardec justifica o porquê de não querer usar o termo possessão, já que poderiam relacioná-lo com demônios, seres que não existem para o Espiritismo, senão na acepção de espíritos imperfeitos e ainda dedicados ao mal.
2) Out/1858 – Revista Espírita
Do artigo “Obsedados e subjugados”, autoria de Kardec, transcrevemos o seguinte trecho:
5º Os Espíritos inferiores não se ligam senão àqueles que os escutam, junto aos quais têm acesso, e aos quais se prendem. Se chegam a imperar sobre alguém, se identificam com o seu próprio Espírito, o fascinam, o obsedam, o subjugam e o conduzem como uma verdadeira criança.
6º A obsessão jamais se dá senão pelos Espíritos inferiores. Os bons Espíritos não fazem experimentar nenhum constrangimento; eles aconselham, combatem a influência dos maus, e se não são escutados, afastam-se.
7º O grau do constrangimento e a natureza dos efeitos que ela produz marcam a diferença entre a obsessão, a subjugação e a fascinação.
obsessão é a ação, quase que permanente, de um Espírito estranho que faz que se seja solicitado, por uma necessidade incessante, a agir em tal ou tal sentido, a fazer tal ou tal coisa.
subjugação é uma ligação moral que paralisa a vontade daquele que a sofre, e o impele aos atos mais insensatos e, frequentemente, mais contrários aos seus interesses.
fascinação é uma espécie de ilusão produzida, seja pela ação direta de um Espírito estranho, seja por seus raciocínios capciosos, ilusão que engana sobre as coisas morais, falseia o julgamento e faz tomar o mal pelo bem.
8º O homem pode sempre, pela sua vontade, sacudir o jugo dos Espíritos imperfeitos, porque, em virtude de seu livre arbítrio, tem a escolha entre o bem e o mal. Se o constrangimento chegou ao ponto de paralisar sua vontade, e se a fascinação é muito grande para obliterar o seu julgamento, a vontade de uma outra pessoa pode substituí-la.
Dava-se, outrora, o nome de possessão ao império exercido pelo maus Espíritos, quando sua influência ia até à aberração das faculdades; mas a ignorância e os preconceitos, frequentemente, fizeram tomar por uma possessão o que não era senão o resultado de um estado patológico. A possessão seria, para nós, sinônimo da subjugação. Se não adotamos esse termo, foi por dois motivos: o primeiro porque implica a crença em seres criados para o mal e perpetuamente votados ao mal, ao passo que não há senão seres mais ou menos imperfeitos, que todos podem melhorar-se; o segundo porque implica, igualmente, a ideia de uma presa de possessão do corpo por um Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, ao passo que não há senão constrangimento. A palavra subjugação reflete perfeitamente o pensamento. Assim, para nós, não há possessos no sentido vulgar da palavra, não há senão obsedados, subjugados e fascinados. (KARDEC, 2001a, p. 267-268, grifo nosso).
Continua firme na mesma linha de raciocínio desenvolvida em O livro dos Espíritos, ou seja, que “não há possessos no sentido vulgar da palavra”. Observe, caro leitor, que o último parágrafo, com pequena variação, foi parar em O livro dos médiuns, item 241, conforme poder-se-á ver no tópico que se segue.
3) Jan/1861 – O Livro dos Médiuns
No capítulo XXIII, intitulado Da Obsessão, Kardec volta novamente ao assunto.
240. A subjugação é uma constrição que paralisa a vontade daquele que a sofre e o faz agir a seu mau grado. Numa palavra: o paciente fica sob um verdadeiro jugo.
A subjugação pode ser moral ou corporal. No primeiro caso, o subjugado é constrangido a tomar resoluções muitas vezes absurdas e comprometedoras que, por uma espécie de ilusão, ele julga sensatas: é uma como fascinação. No segundo caso, o Espírito atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos involuntários. Traduz-se, no médium escrevente, por uma necessidade incessante de escrever, ainda nos momentos menos oportunos. Vimos alguns que, à falta de pena ou lápis, simulavam escrever com o dedo, onde quer que se encontrassem, mesmo nas ruas, nas portas, nas paredes.
Vai, às vezes, mais longe a subjugação corporal; pode levar aos mais ridículos atos. Conhecemos um homem, que não era jovem, nem belo e que, sob o império de uma obsessão dessa natureza, se via constrangido, por uma força irresistível, a pôr-se de joelhos diante de uma moça a cujo respeito nenhuma pretensão nutria e pedi-la em casamento. Outras vezes, sentia nas costas e nos jarretes uma pressão enérgica, que o forçava, não obstante a resistência que lhe opunha, a se ajoelhar e beijar o chão nos lugares públicos e em presença da multidão. Esse homem passava por louco entre as pessoas de suas relações; estamos, porém, convencidos de que absolutamente não o era; porquanto tinha consciência plena do ridículo do que fazia contra a sua vontade e com isso sofria horrivelmente.
241. Dava-se outrora o nome de possessão ao império exercido por maus Espíritos, quando a influência deles ia até à aberração das faculdades da vítima. A possessão seria, para nós, sinônimo da subjugação. Por dois motivos deixamos de adotar esse termo: primeiro, porque implica a crença de seres criados para o mal e perpetuamente votados ao mal, enquanto que não há senão seres mais ou menos imperfeitos, os quais todos podem melhorar-se; segundo, porque implica igualmente a ideia do assenhoreamento de um corpo por um Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, ao passo que o que há é apenas constrangimento. A palavra subjugação exprime perfeitamente a ideia. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar do termo, há somenteobsidiados, subjugados e fascinados. (KARDEC, 2007b, p. 320-321, grifo nosso).
Ainda aqui Kardec não muda de opinião; mantém a que já possuía a respeito desse assunto; apenas, como bom educador, esclarece com mais detalhe o que já havia dito antes.
4) Dez/1863 – Revista Espírita
Neste ponto Kardec muda de opinião, retificando o seu pensamento anterior, após ter uma prova de que há possessão física, sim. Vejamos o que ele narra:
Um caso de possessão
Senhoria Julie
Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar da palavra, mas subjugados; retornamos sobre esta afirmação muito absoluta, porque nos está demonstrado agora que pode ali haver possessão verdadeira, quer dizer, substituição, parcial no entanto, de um Espírito errante ao Espírito encarnado. Eis um primeiro fato que é a prova disto, e que apresenta o fenômeno em toda a sua simplicidade. […].
[...] Ele [o espírito] declara que, querendo conversar com seu antigo amigo, aproveitou de um momento em que o Espírito da Senhora A..., a sonâmbula, estava afastado de seu corpo, para se colocar em seu lugar. […].
P. Que fez durante esse tempo o Espírito da senhora A...? – R. Estava lá, ao lado, me olhava e ria de ver-me nesse vestuário.
(KARDEC, 2000b, p. 373-374, grifo nosso).
Como se pode notar, transcrevemos apenas o que nos pareceu interessante para o nosso estudo. Entretanto, partindo das próprias afirmações de Kardec, algumas pessoas colocam como ainda não doutrinária essa questão, por estar apenas na Revista Espírita. De fato, é perfeitamente aceitável pensar assim diante do que Kardec disse na Introdução de A Gênese: “A Revue, muita vez, representa para nós, um terreno de ensaio, destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos sobre alguns princípios, antes de os admitir como partes constitutivas da doutrina”. (KARDEC, 2007e, p. 17).
Teríamos, como a maioria, também dado esse assunto por encerrado, já que a evidência era demasiadamente forte para contestarmos, apesar de, particularmente, não estarmos vendo a questão dessa forma, pois, para nós, a mudança de opinião é clara demais na Revista Espírita, não se tratando de questão que foi ali colocada para ver as opiniões sobre o assunto. Para nós, ao dizer isso, ele, Kardec, está tornando pública a sua opinião sobre o tema.
Mas, continuando as pesquisas, deparamos com algo que não deixará dúvidas, ficando claro que faz parte, sim, dos princípios constitutivos da Doutrina. Vejamos, então, o que encontramos, por último, naquilo que pesquisamos.
5) Abr/1864 - O Evangelho Segundo o Espiritismo
No capítulo X – Bem-aventurados os que são misericordiosos, Kardec estuda o tema Reconciliação com os adversários, sobre o qual faz o seguinte comentário:
6. Na prática do perdão, como, em geral, na do bem, não há somente um efeito moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos livra dos nossos inimigos; os Espíritos vingativos perseguem, muitas vezes, com seu ódio, no além-túmulo, aqueles contra os quais guardam rancor; donde decorre a falsidade do provérbio que diz: “Morto o animal, morto o veneno”, quando aplicado ao homem. O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e, assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou nas suas mais caras afeições. Nesse fato reside a causa da maioria dos casos de obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e possessãoO obsidiado e o possesso são, pois, quase sempre vítimas de uma vingança, cujo motivo se encontra em existência anterior, e à qual o que a sofre deu lugar pelo seu proceder. Deus o permite, para os punir do mal que a seu turno praticaram, ou, se tal não ocorreu, por haverem faltado com a indulgência e a caridade, não perdoando. […] (KARDEC, 2007c, p. 181, grifo nosso).
Demorou muito tempo para que nós pudéssemos perceber que os termos “possessão” e “possesso”, aqui usados por Kardec, já refletiam a sua nova concepção sobre o fenômeno, fruto de suas considerações na Revista Espírita 1863.
No Capítulo XXVIII – Coletânea de preces espíritas, item 81, também encontramos, novamente, Kardec referindo-se aos termos “subjugação” e “possessão”, com significados diferentes e não mais como sinônimos:
Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas, que tornam o corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado de uma imperfeição moral, que dá acesso a um Espírito mau. A causas físicas se opõem forças físicas; a uma causa moral, tem-se de opor uma força moral. Para preservá-lo das enfermidades, fortifica-se o corpo; para isentá-lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário se torna que o obsidiado trabalhe pela sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta para o livrar do obsessor, sem recorrer a terceiros. O auxílio destes se faz indispensável,quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque aí não raro o paciente perde a vontade e o livre-arbítrio. (KARDEC, 2007c, p. 460, grifo nosso).
Vejam que, em O livro dos Espíritos, ele afirma “não há possessos na conformidade da ideia a que esta palavra se acha associada” (KARDEC, 2007a, p. 282); manteve-se coerente quando voltou ao assunto em O livro dos médiuns, no qual, inclusive, nem cita a possessão como um dos tipos de obsessão (KARDEC, 2007b, p. 320-321); portanto, se aqui, em O Evangelho segundo o Espiritismo, ele já usa o termo possessão e o coloca como podendo ser um dos casos de obsessão, certamente, é porque refletia mesmo sua nova visão do problema. Inclusive, o fato de separar obsidiado e possesso, deixa claro que nem toda possessão é uma obsessão, fato que ficará mais claro ao discorrer sobre o tema em A Gênese, conforme veremos a seguir.
6) Jan/1868 – A Gênese
Kardec volta a essa questão, agora em definitivo, nesse livro, no capítulo XIV, Os Fluidos, quando, tratando das obsessões, diz:
46 - Assim como as enfermidades resultam das imperfeições físicas que tornam o corpo acessível às perniciosas influências exteriores, a obsessão decorre sempre de uma imperfeição moral, que dá ascendência a um Espírito mau. A uma causa física, opõe-se uma força física; a uma causa moral preciso é se contraponha uma força moral. Para preservá-lo das enfermidades, fortifica-se o corpo; para garanti-la contra a obsessão, tem-se que fortalecer a alma; donde, para o obsidiado, a necessidade de trabalhar por se melhorar a si próprio, o que as mais das vezes basta para livrá-lo do obsessor, sem o socorro de terceiros. Necessário se torna este socorro, quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque nesse caso o paciente não raro perde a vontade e o livre-arbítrio.
Quase sempre a obsessão exprime vingança tomada por um Espírito e cuja origem frequentemente se encontra nas relações que o obsidiado manteve com o obsessor, em precedente existência.
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolto e impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É daquele fluido que importa desembaraçá-lo, Ora, um fluído mau não pode ser eliminado por outro igualmente mau. Por meio de ação idêntica à do médium curador, nos casos de enfermidade, preciso se faz expelir um fluido mau com o auxílio de um fluido melhor.
Nem sempre, porém, basta esta ação mecânica; cumpre, sobretudo, atuar sobre o ser inteligente, ao qual é preciso se possua o direito de falar com autoridade, que, entretanto, falece a quem não tenha superioridade moral. Quanto maior esta for, tanto maior também será aquela.
Mas, ainda não é tudo: para assegurar a libertação da vítima, indispensável se torna que o Espírito perverso seja levado a renunciar aos seus maus desígnios; que se faça que o arrependimento desponte nele, assim como o desejo do bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em evocações particularmente feitas com o objetivo de dar-lhe educação moral. Pode-se então ter a grata satisfação de libertar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito.
O trabalho se torna mais fácil quando o obsidiado, compreendendo a sua situação, para ele concorre com a vontade e a prece. Outro tanto não sucede quando, seduzido pelo Espírito que o domina, se ilude com relação às qualidades deste último e se compraz no erro a que é conduzido, porque, então, longe de a secundar, o obsidiado repele toda assistência. É o caso da fascinação, infinitamente mais rebelde sempre, do que a mais violenta subjugação. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII.)
Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso meio de que se dispõe para demover de seus propósitos maléficos o obsessor.
47. - Na obsessão, o Espírito atua exteriormente, com a ajuda do seu perispírito, que ele identifica com o do encarnado, ficando este afinal enlaçado por uma como que teia e constrangido a proceder contra a sua vontade.
Na possessão, em vez de agir exteriormente, o Espírito atuante se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado; toma-lhe o corpo para domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado pelo seu dono, pois que isso só se pode dar pela morte. A possessão, conseguintemente, é sempre temporária e intermitente, porque um Espírito desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar de um encarnado, pela razão de que a união molecular do perispírito e do corpo só se pode operar no momento da concepção. (Cap. XI, nº. 18.)
De posse momentânea do corpo do encarnado, o Espírito se serve dele como se seu próprio fora: fala pela sua boca, vê pelos seus olhos, opera com seus braços, conforme o faria se estivesse vivo. Não é como na mediunidade falante, em que o Espírito encarnado fala transmitindo o pensamento de um desencarnado; no caso da possessão é mesmo o último que fala e obra; quem o haja conhecido em vida, reconhece-lhe a linguagem, a voz, os gestos e até a expressão da fisionomia.
48. - Na obsessão há sempre um Espírito malfeitor. Na possessão pode tratar-se de um Espírito bom que queira falar e que, para causar maior impressão nos ouvintes, toma do corpo de um encarnado, que voluntariamente lho empresta, como emprestaria seu fato a outro encarnado. Isso se verifica sem qualquer perturbação ou incômodo, durante o tempo em que o Espírito encarnado se acha em liberdade, como no estado de emancipação, conservando-se este último ao lado do seu substituto para ouvi-lo.
Quando é mau o Espírito possessor, as coisas se passam de outro modo. Ele não toma moderadamente o corpo do encarnado, arrebata-o, se este não possui bastante força moral para lhe resistir. Fá-lo por maldade para com este, a quem tortura e martiriza de todas as formas, indo ao extremo de tentar exterminá-lo, já por estrangulação, já atirando-o ao fogo ou a outros lugares perigosos. Servindo-se dos órgãos e dos membros do infeliz paciente, blasfema, injuria e maltrata os que o cercam; entrega-se a excentricidades e a atos que apresentam todos os caracteres da loucura furiosa.
São numerosos os fatos deste gênero, em diferentes graus de intensidade, e não derivam de outra causa muitos casos de loucura. Amiúde, há também desordens patológicas, que são meras consequências e contra as quais nada adiantam os tratamentos médicos, enquanto subsiste a causa originária. Dando a conhecer essa fonte donde provém uma parte das misérias humanas, o Espiritismo indica o remédio a ser aplicado: atuar sobre o autor do mal que, sendo um ser inteligente, deve ser tratado por meio da inteligência. (1).
49. - São as mais das vezes individuais a obsessão e a possessão; mas, não raro são epidêmicas. Quando sobre uma localidade se lança uma revoada de maus Espíritos, é como se uma tropa de inimigos a invadisse. Pode então ser muito considerável o número dos indivíduos atacados. (2).
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(1) Casos de cura de obsessões e de possessões: Revue Spirite, dezembro de 1863, pág., 373; - janeiro de 1864, pág. 11; - junho de 1864, pág. 168; - janeiro de 1865, pág. 5; - junho de 1865, pág. 172; - fevereiro de 1868, pág. 38; - junho de 1867, pág. 174.
(2) Foi exatamente desse gênero a epidemia que, faz alguns anos, atacou a aldeia de Morzine na Saboia. Veja-se o relato completo dessa epidemia na Revue Spirite de dezembro de 1862, pág. 353; janeiro, fevereiro, abril e maio de 1863, págs. 1, 33, 101 e 133.
(KARDEC, 2007e, p. 347-351, grifo nosso).
Vê-se, portanto, que o Codificador não deixa de registrar numa obra básica o seu novo posicionamento diante do tema possessão. Infelizmente, assim como a Revista Espírita, o livro A Gênese não é quase lido pelos espíritas; poucos se aventuram a lê-lo; com isso, o entendimento fica equivocado, quando se afirma que não há possessão física, com base em posição anterior de Kardec, posição essa que foi mudada diante dos fatos que lhe foram apresentados.
Tomamos a liberdade de sugerir à FEB – Federação Espírita Brasileira, que, nas obras citadas - O Livro dos EspíritosO Livro dos Médiuns e A Gênese -, registre isso em notas de rodapé, visando alertar ao leitor sobre a mudança de entendimento por Kardec.
Um outro fator que não podemos deixar de chamar à atenção é o fato de que, para Kardec, possessão não significa necessariamente uma obsessão, como muitos de nós acreditamos; para ele é apenas um fato no qual, certos espíritos, literalmente, “tomam posse” do corpo do médium, podendo, tais espíritos serem bons ou maus, conforme o caso. É isso o que ficou claro, para nós, quando da leitura dos itens 47 e 48, acima transcritos.
7) Fev/1869 – Revista Espírita
Na narrativa de Kardec a respeito de um espírito que não acreditava ter morrido, mas apenas sonhando, podemos encontrar mais alguma coisa sobre o assunto de que estamos tratando. Vejamos:
Na sessão da Sociedade de Paris, de 8 de janeiro, o mesmo Espírito veio se manifestar de novo, não pela escrita, mas pela palavra, em se servindo do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo. Ele falou durante uma hora, e isso foi uma cena das mais curiosas, porque o médium tomou a sua pose, seus gestos, sua voz, sua linguagem ao ponto que aqueles que o tinham visto o reconheceram sem dificuldade. [...]
Numa outra reunião, um Espírito deu sobre este fenômeno a comunicação seguinte:
Há aqui, uma substituição de pessoa, uma simulação. O Espírito encarnado recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inércia, quer dizer, a contemplação daquilo que se passa. Ele está na posição de um homem que empresta momentaneamente a sua habitação, e que assiste às diferentes cenas que se realizam com a ajuda de seus móveis. Se gosta mais de gozar da sua liberdade, ele o pode, a menos que não haja para ele utilidade em permanecer espectador.
Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de um outro; deveis compreender a possibilidade deste fenômeno, então que sabeis que o Espírito pode se retirar com o seu perispírito mais ou menos longe de seu envoltório corpóreo. Quando esse fato ocorre sem que nenhum Espírito disto se aproveite para ocupar o lugar, há a catalepsia. Quando um Espírito deseja para ali se colocar para agir, toma um instante a sua parte na encarnação, une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e restitui o movimento à máquina; mas os movimentos, a voz não são mais os mesmos, porque os fluidos perispirituais não afetam mais o sistema nervoso do mesmo modo que o verdadeiro ocupante.
Essa ocupação jamais pode ser definitiva; seria preciso, para isso, a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que levaria forçosamente à morte. Ela não pode mesmo ser de longa duração, pela razão de que o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a sua formação, não tem nele raízes, não estando modelado sobre esse corpo, não está apropriado ao desempenho dos órgãos; o Espírito intruso não está numa posição normal; ele é embaraçado em seus movimentos e é porque deixa essa veste emprestada desde que dela não tenha mais necessidade. (KARDEC, 2001b, p. 48-49)
Aqui, então, diante do assunto incluído num dos livros das obras básicas, não há mais como contestar não ser tema constitutivo da Doutrina, embora, como já o dissemos, já o aceitávamos por estar tão objetivamente na Revista Espírita, e como resposta à experiência pessoal que tivemos, inicialmente relatada. A novidade é que Kardec afirma que até um Espírito bom poderá possuir o corpo de um encarnado, desde que as condições o exijam, conforme abordado no tópico anterior.
Opiniões sobre o assunto
No capítulo XIX – Transes e Incorporações do livro No Invisível, Léon Denis (1846-1927) fala justamente daquilo que estamos presentemente estudando. Vamos ver, então, o que disse aquele que é considerado o sucessor de Kardec:
O estado de transe é esse grau de sono magnético que permite ao corpo fluídico exteriorizar-se, desprender-se do corpo carnal, e à alma tornar a viver por um instante sua vida livre e independente. A separação, todavia, nunca é completa; a separação absoluta seria a morte... No transe, o médium fala, move-se, escreve automaticamente; desses atos, porém, nenhuma lembrança conserva ao despertar.
O estado de transe pode ser provocado, quer pela ação de um magnetizador, quer pela de um Espírito. Sob o influxo magnético, os laços que unem os dois corpos se afrouxam. A alma, com seu corpo sutil, vai-se emancipando pouco a pouco; recobra o uso de seus poderes ocultos, comprimidos pela matéria. Quanto mais profundo é o sono, mais completo vem a ser o desprendimento. [...]
No corpo do médium, momentaneamente abandonado, pode dar-se uma substituição de Espírito. É o fenômeno das incorporações. A alma de um desencarnado, mesmo a alma de um vivo adormecido, pode tomar o lugar do médium e servir-se de seu organismo material, para se comunicar pela palavra e pelo gesto com as pessoas presentes. (DENIS, 1987, p. 249).
Nesse ponto Léon Denis cita Dr. Oliver Lodge (1851-1940) e o professor Frederic William Henry Myers (1843-1901) como testemunhas da realidade desses fatos. E continuando, lemos:
Indagam certos experimentadores: o Espírito do manifestante se incorpora efetivamente no organismo do médium? Ou opera ele antes, à distância, pela sugestão mental e pela transmissão de pensamento, como o pode fazer o Espírito exteriorizado do sensitivo?
Um exame atento dos fatos nos leva a crer que essas duas explicações são igualmente admissíveis, conforme os casos. As citações que acabamos de fazer provam que a incorporação pode ser real e completa. É mesmo algumas vezes inconsciente, quando, por exemplo, certos Espíritos pouco adiantados são conduzidos por uma vontade superior ao corpo do médium e postos em comunicação conosco, a fim de serem esclarecidos sobre sua verdadeira situação. Esses Espíritos, perturbados pela morte, acreditam ainda, muito tempo depois, pertencerem à vida terrestre. Não lhes permitindo seus fluidos grosseiros o entrarem em relação com os Espíritos mais adiantados, são levados aos grupos de estudo, para serem instruídos acerca de sua nova condição. É difícil às vezes fazer-lhes compreender que abandonaram a vida carnal, e sua estupefação atinge o cômico, quando, convidados a comparar o organismo que momentaneamente animam com o que possuíam na Terra, são obrigados a reconhecer o seu engano. Não se poderia duvidar, em tal caso, na incorporação completa do Espírito.
Noutras circunstâncias, a teoria da transmissão, à distância, parece melhor explicar os fatos. As impressões oriundas de fora são mais ou menos fielmente percebidas e transmitidas pelos órgãos. Ao lado de provas de identidade, que nenhuma hesitação permitem sobre a autenticidade do fenômeno e intervenção dos Espíritos, verificam-se, na linguagem do sensitivo em transe, expressões, construções de frases, um modo de pronunciar que lhe são habituais. O Espírito parece projetar o pensamento no cérebro do médium, onde adquire, de passagem, formas de linguagem familiares a este. A transmissão se efetua em tal caso no limite dos conhecimentos e aptidões do sensitivo, em termos vulgares ou escolhidos, conforme o seu grau de instrução. Daí também certas incoerências que se devem atribuir à imperfeição do instrumento.
Ao despertar, o Espírito do médium perde toda consciência das impressões recebidas no sentido de liberdade, do mesmo modo que não guardará o menor conhecimento do papel que seu corpo tenha desempenhado durante o transe. Os sentidos psíquicos, de que por um momento haviam readquirido a posse, se extinguem de novo; a matéria estende o seu manto; a noite se produz; toda recordação de desvanece. O médium desperta num estado de perturbação, que lentamente se dissipa. (DENIS, 1987, p. 252-254).
As colocações de Léon Denis vêm corroborar o que o próprio Kardec disse sobre a possessão. Agora, mais do que nunca, ficamos convictos dessa realidade, uma vez que todas as colocações, que citamos, estão coerentes entre si, não havendo, portanto, algo que demonstre qualquer contradição entre elas.
Poderemos ainda acrescentar, apenas para reforçar essa ideia, algumas coisas que encontramos no livro Nos Domínios da Mediunidade, Francisco Cândido Xavier (1910-2002), ditado por André Luiz.
Vejamos os trechos nos quais, falando a respeito de determinado médium, está dito:
Quando empresta o veículo a entidades dementes ou sofredoras, reclama-nos cautela, porquanto quase sempre deixa o corpo à mercê dos comunicantes, quando lhe compete o dever de ajudar-nos na contenção deles, a fim de que o nosso tentame de fraternidade não lhe traga prejuízo à organização física’”. (XAVIER, 1987, p. 30).
Segundo pensamos, se o médium “empresta o veículo a entidades” é porque os espíritos tomam posse do corpo físico dele ou, no linguajar popular, incorpora-se no médium.
[…] Entretanto, adaptando-se ao organismo da mulher amada que passou a obsidiar, nela encontrou novo instrumento de sensação, vendo por seus olhos, ouvindo por seus ouvidos, muitas vezes falando por sua boca e vitalizando-se com os alimentos comuns por ela utilizados. Nessa simbiose vivem ambos, há quase cinco anos sucessivos, contudo, agora, a moça subnutrida e perturbada acusa desequilíbrios orgânicos de vulto. […] (XAVIER, 1987, p. 54).
É praticamente o que diz Kardec ao final do item 47, na passagem comentada no item 4 acima – A Gênese. A única divergência é que o codificador falou de posse momentânea, e aqui descreve uma com, provavelmente, cinco anos de duração.
Notamos que Eugênia-alma afastou-se do corpo, mantendo-se junto dele, a distância de alguns centímetros, enquanto que, amparado pelos amigos que o assistiam, o visitante sentava-se rente, inclinado-se sobre o equipamento mediúnico ao qual se justapunha, à maneira de alguém a debruçar-se numa janela”. (XAVIER, 1987, p. 54-55).
[…] nesses trabalhos, o médium nunca se mantém a longa distância do corpo... (XAVIER, 1987, p. 56).
Impressionante como esse trecho se assemelha à fala do espírito que explicava como possuía o corpo físico da Senhora A..., na possessão citada na Revista Espírita. E, para quem assistiu ao filme Ghost, essa descrição faz-nos lembrar do que acontecia com a personagem vivida por Whoopi Goldberg (1955- ), que antes brincava de “receber” espíritos, e depois passou a “recebê-los” de fato.
Vejam bem: tudo isso se ajusta ao que está dito em A Gênese; mas, mesmo que no livro do autor espiritual André Luiz fatos extremamente idênticos sejam relatados, lemos nessa obra - Nos domínios da mediunidade -, o seguinte: “Achando-se a mente na base de todas as manifestações mediúnicas, quaisquer que sejam os característicos em que se expressem...” (XAVIER, 1987, p. 18).
Isso vem justamente contradizer, salvo melhor juízo, o que está descrito nesse mesmo livro de André Luiz, quando dos casos de incorporação e dos de obsessão, uma vez que, por eles fica caracterizada a posse do corpo do médium ou, conforme o caso, do obsidiado. Assim, acreditamos que poderia estar havendo certo exagero em se dizer de forma absoluta que a mente está na base de todas as manifestações mediúnicas, como se afirma no mencionado livro, a não ser que estejamos entendendo de maneira errada o que quer colocar o autor espiritual. Poderia, quem sabe, estar mesmo querendo dizer que essa base é a mente do desencarnado, não como sendo a ligação mental entre os envolvidos no fenômeno mediúnico.
Podemos ainda citar o Dr. Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) que utilizou quase das mesmas passagens que citamos de André Luiz, quando estudou a questão das incorporações mediúnicas, obsessões e possessões. A certa altura diz-nos esse saudoso mestre:
A “incorporação mediúnica” pode, também, distinguir-se por diversas modalidades de comunicação: psicofonia, psicografia, possessão parcial ou total das manifestações de habilidades não aprendidas tais como nos casos de psicopictografia, psicocirurgia, psicoescultura, psicomúsica, escrita automática incontrolável com xenografia, xenoglossia, múltipla personalidade, transfiguração (esta última pertencendo também ao capítulo das ectoplasmias), etc.
O mecanismo da “incorporação mediúnica” é fácil de compreender. Ela pode principiar pela aproximação da entidade que deseja comunicar-se. Esta poderá eventualmente influenciar o “médium”, facilitando-lhe o “transe”. O médium passa então a sofrer um desdobramento astral (OBE) e sua cúpula juntamente com o corpo astral deslocam-se parcial ou totalmente de maneira a permitir que a cúpula e o corpo astral do Espírito comunicante ocupe parcial ou totalmente o campo livre deixado pelo “corpo astral” do médium. A incorporação é tanto mais perfeita quanto maior o espaço é cedido pelo astral do médium ao afastar-se do seu corpo físico, deixando lugar para a cúpula com o corpo astral do comunicador. Este – o Espírito comunicante – deverá sofrer um processo semelhante ao desdobramento astral, para permitir que sua cúpula e corpo astral possam justapor-se ao espaço livre deixado pelo médium (ver fig. 16).
Na figura 16 mostramos esquematicamente o mecanismo de uma incorporação mediúnica completa. Há casos em que a parte astral do médium se desloca só parcialmente, permitindo que apenas uma fração do astral do Espírito comunicador entre em contacto com a zona anímico-perispirítica daquele. Mesmo nestas condições pode haver comunicação, a qual poderá ser em parte direta e em parte telepática. Em semelhante circunstância há sempre possibilidade de controle das comunicações, por parte do médium. Este poderá interferir no processo, ainda mesmo que totalmente afastado, pois a ligação com a sua zona anímico-perispirítica não cessa. Há sempre a presença do “cordão prateado” garantindo o domínio do próprio equipamento somático. (ANDRADE, 2002, p. 122-124).
A FEESP – Federação Espírita do Estado de São Paulo publicou a obra Curso de Educação Mediúnica, originada das aulas ministradas, na instituição, por diversos autores sob a Coordenação da Área de Ensino. No programa do 2º ano, temos a 18ª aula que trata da Obsessão- Obsessão Simples – Fascinação – Subjugação – Possessão, na qual é mencionada a mudança de opinião de Kardec sobre a possessão, citando o livro A Gênese, cap. XIV, itens 45 a 49 como o local onde isso ocorreu. Transcrevemos da conclusão a que chegaram:
Em síntese, pode-se dizer que na obsessão o Espírito atua exteriormente por meio de seu Perispírito, e, na possessão, faz domicílio no corpo do encarnado, que cede seu corpo voluntariamente, como no caso da senhorita Julie, ou, involuntariamente, quando o possessor é um Espírito mau, ao qual o possesso não tem força moral para resistir. (FEESP, 1991, p. 140, grifo nosso).
Corrobora, portanto, o que nós também concluímos sobre o assunto, tomando-se como base as próprias obras de Kardec, não arredando pé dos conceitos doutrinários nelas contidos.
Conclusão
O que aprendemos, como uma oportuna lição, é que sempre devemos fazer nossas pesquisas em todos os livros de Kardec; até que tenhamos a opinião final, não podemos ficar com a primeira opinião que, por ventura, venhamos encontrar. Conforme ficou demonstrado neste estudo, Kardec mudou de opinião sobre a possessão; daí, poderemos concluir que não colocou nada como verdade absoluta, mas, como sempre, passível de novos entendimentos. Sobre esta abertura veja-se isso que ele disse: “O Livro dos Espíritos não é um tratado completo do Espiritismo; não faz senão colocar-lhe as bases e os pontos fundamentais, que devem se desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela observação”. (KARDEC, 1993i, p. 223, grifo nosso). Vai até mais longe ao dizer, em relação à progressividade evolutiva do Espiritismo: “Se novas descobertas lhe demonstrarem que está em erro sobre um ponto, modificar-se-á sobre esse ponto; se uma nova verdade se revela, ele a aceita” (KARDEC, 2007e, p. 40).
Disso também fica claro que Kardec reformula as respostas dos espíritos, que nunca os julgou infalíveis, quando surgem fatos que o levam a concluir o contrário. Veja bem, se considerarmos todas as respostas de O livro dos Espíritos como de origem dos espíritos e as explicações de O livro dos médiuns como também obra deles, então, temos que conviver que Kardec não ficou preso a elas, como, às vezes, muitos companheiros fazem. Situação nova; mudam-se conceitos anteriores; basta, para isso, que a experiência nos recomende tomar outro caminho.
O que jamais podemos deixar de lembrar é que o próprio Kardec recebia instruções dos espíritos, via inspiração, pois, em todo o decorrer de sua missão, foi assistido pelos espíritos e, especialmente, pelo Espírito de Verdade, conforme se pode confirmar por uma mensagem dirigida a ele, em 14 de setembro de 1863, em Paris, da qual destacamos o seguinte trecho:
Quero falar-te de Paris, embora isso não me pareça de manifesta utilidade, uma vez que as minhas vozes íntimas se fazem ouvir em torno de ti e que teu cérebro percebe as nossas inspirações, com uma facilidade de que nem tu mesmo suspeitasNossa ação, principalmente a do Espírito de Verdade, é constante ao teu derredor e tal que não a podes negar. Assim sendo, não entrarei em detalhes ociosos a respeito do plano de tua obra, plano que, segundo meus conselhos ocultos, modificaste tão ampla e completamente. Compreendes agora por que precisávamos ter-te sob as mãos, livre de toda preocupação outra, que não a da Doutrina. Uma obra como a que elaboramos de comum acordo necessita de recolhimento e de insulamento sagrado. [...]. (KARDEC, 2006b, p. 341, grifo nosso).
Podemos, também, corroborar esse fato tomando das próprias palavras de Kardec, registradas na Revista Espírita, ano de 1867; senão vejamos:
Sem ter nenhuma das qualidades exteriores da mediunidade efetivanão contestamos em sermos assistidos em nossos trabalhos pelos Espíritos, porque temos deles provas muito evidentes para disto duvidar, o que devemos, sem dúvida, à nossa boa vontade, e o que é dado a cada um de merecer. Além das ideias que reconhecemos nos serem sugeridas, é notável que os assuntos de estudo e observação, em uma palavra, tudo o que pode ser útil à realização da obra, nos chega sempre a propósito, - em outros tempos eu teria dito: como por encantamento -, de sorte que os materiais e os documentos do trabalho jamais nos fazem falta. Se temos que tratar de um assunto, estamos certos de que, sem pedi-lo, os elementos necessários à sua elaboração nos são fornecidos, e isto por meios que nada têm senão de muito natural, mas que são, sem dúvida, provocados por colaboradores invisíveis, como tantas coisas que o mundo atribui ao acaso. (KARDEC, 1999, p. 274, grifo nosso).
Então, podemos, sem a menor dúvida, aceitar que as considerações de Kardec, a qualquer ponto doutrinário, podem muito bem ser fruto de inspirações dos Espíritos Superiores, envolvidos na Codificação.
Devemos, pois, reformular nossos conceitos sobre a possessão, tendo em vista que deverá prevalecer, segundo acreditamos, a última opinião de Kardec; e é ela que vem dizer da possibilidade real da possessão, por um espírito, do corpo de um encarnado. Poderemos dizer que na subjugação o encarnado não quer fazer, mas é constrangido a fazer aquilo que o espírito obsessor deseja que o subjugado faça. A atuação do espírito é por envolvimento. Nessa hipótese o encarnado está consciente da situação, mas nada pode fazer para evitá-la. Já na possessão o encarnado não tem a mínima ideia do que lhe está acontecendo; faz, sem tomar consciência, a vontade do espírito, conforme percebemos; senão em todos, pelo menos na maioria dos casos de que tomamos conhecimento. Nessa situação está completamente inconsciente, não oferecendo a mínima resistência à vontade do obsessor, que faz do obsidiado[1] um marionete, se assim podemos nos expressar.
Diante do exposto, podemos aceitar, sem medo de errar, que, em alguns casos, existe mesmo uma real incorporação, no sentido exato da palavra, aplicado a esse fenômeno mediúnico, conclusão a que chegamos por este nosso estudo.



Paulo da Silva Neto Sobrinho
Jun/2006.
(revisado em jun/2013).




Referências Bibliográficas:
ANDRADE, H.G. Espírito, Perispírito e Alma. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2002.
AUTORES DIVERSOS. Curso de Educação Mediúnica – 2º ano. São Paulo: FEESP, 1991.
DENIS, L. No Invisível, Rio de Janeiro: FEB, 1987.
KARDEC, A. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2007e.
KARDEC, A. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2007c.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2007a.
KARDEC, A. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2007b.
KARDEC, A. Obras Póstumas, Rio de Janeiro: FEB, 2006b.
KARDEC, A. Revista Espírita 1858, Araras – SP: IDE, 2001c.
KARDEC, A. Revista Espírita 1863, Araras – SP: IDE, 2000b.
KARDEC, A. Revista Espírita 1866, Araras – SP: IDE, 1993i.
KARDEC, A. Revista Espírita 1867, Araras – SP: IDE, 1999.
KARDEC, A. Revista Espírita 1869, Araras – SP: IDE, 2001b.
XAVIER, F. C. Nos Domínios da Mediunidade, Rio de Janeiro: FEB, 1987.


Este artigo foi publicado:
- revista digital O Consolador nº 206. Londrina, PR, abr/2011 parte 1 e nº 207, mai/2011 parte 2 e final.


[1]    Usamos este termo tomando como base as considerações do prof. Astolfo Olegário de Oliveira Filho, diretor de Redação da revista espírita O Consolador e editor do jornal espírita O Imortal:http://www.oconsolador.com.br/ano5/209/questoesvernaculas.html
Sobre o autor:

Paulo da Silva Neto Sobrinho 

É membro da Rede Amigo Espírita, natural de Guanhães, MG.
Bacharel em Ciências Contábeis e em Administração de Empresas pela Universidade Católica-MG (PUC-BH). Aposentou-se como Fiscal de Tributos pela Secretaria da Fazenda-MG.
Adepto do Espiritismo desde Julho/1987; atualmente frequenta o Movimento Espírita em Belo Horizonte, MG.
É articulista de alguns periódicos espíritas, entre eles, pode-se citar, a revista Espiritismo & Ciência, com vários artigos publicados.
 
Na Web, vários sites espíritas publicam alguns de seus textos, entre eles:
http://www.apologiaespirita.org/
 
Livros publicados:

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