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quinta-feira, 18 de abril de 2013

Afirmação Espírita


Afirmação Espírita
Escreve: José Rodrigues
Em: Dezembro de 2010
  Discussões e apreensões sobre o substantivo "espiritismo" e o adjetivo "espírita" têm nos desafiado. É salutar que isso aconteça, como fruto do caráter libertário do espiritismo, em nome do qual há ampla diversidade de entendimento e práticas, por paradoxal, após os avanços conceituais sobre o velho espiritualismo, o mesmerismo, o magnetismo, com diversas denominações, até o novo espiritualismo. Allan Kardec conseguiu, por um método próprio, construir um conjunto de saberes a que deu o nome de espiritismo e o de espírita, aos seus seguidores.
  Essa trademark inscrita por Allan Kardec no mercado de ideias e do conhecimento balizou o nascimento de nova abordagem de um mundo, antes especulativo, impreciso e, não raro, manipulado, para outro, dimensionado, comprovado e sujeito ao método investigativo. No limite da argumentação, trata-se de uma propriedade intelectual da pessoa física nascida Hippolyte León, o professor Rivail.
  Dentre esses fatos, hoje, pela cor branca de meus cabelos, talvez ofereça aos companheiros e companheiras, um pouco de história, pois desde os anos de minha juventude, e que bons anos! Dediquei parte substancial de meu tempo à causa espírita, em momentos bem diversos do atual.
  Já naquele tempo, pouco depois da metade do século passado, quando era generalizado o conceito de religião, fazíamos uma série de exceções para “a religião espírita”, que não continha isto e aquilo, para diferenciar das demais. Um esforço hercúleo. Era um núcleo coeso, trabalhador e idealista. Nas semanas espíritas, para a sua divulgação, preparavam-se faixas para colocar nos postes e entre árvores da cidade; afixavam-se cartazes, com cola que nós mesmos preparávamos cozinhando farinha de trigo. Escrevíamos notícias para jornais e por ocasião das palestras, vendíamos livros. Acolhíamos oradores em nossas casas, para baratear os custos. Algo como bater o escanteio e ir à área para cabecear. Só gente religiosa era capaz disso.
  Dentre nossas inconformações havia, à época, um episódio marcante: a Festa de Iemanjá, promovida pela União Espírita Santista, cuja líder ocupava uma cadeira na Câmara Municipal. Batemos de frente, várias vezes contra os umbandistas, sob o pretexto de usarem indevidamente o nome espírita. Pagamos matéria em jornal de circulação regional para definir posições e certa vez, em pleno programa de rádio daquele grupo, telefonei à emissora "denunciando" o que seria uma apropriação indébita.
  Ainda no século passado, realizei, por motivos profissionais, várias viagens a Londres, onde colhi muito material dos espiritualistas de lá, conheci as "churches" e os “médiuns” britânicos que lidavam com o objeto espírita, a maioria com consultas pré-marcadas e mediante cobrança. Fiz entrevista com um dos líderes intelectuais da época, Maurice Barbanell, publicada no periódico "Espiritismo e Unificação", então editado pela União Municipal Espírita de Santos. O destaque: a reencarnação era posta em dúvida pelo "espiritismo" inglês. Mostra que o inconformismo de hoje, manifestado por companheiros, já extrapolava o plano nacional e de longa data.
  Em um lance contemporâneo, lançam-se no mesmo mercado os termos kardecismo e kardecista, propostos substitutos de espiritismo e espírita. Até então, esses termos poderiam vir como ênfase a uma ideia, encontráveis na literatura do ramo, mas agora se trata mesmo de troca. Espíritas estariam desconfortáveis ou mesmo envergonhados com o substantivo e o adjetivo criado por Allan Kardec, ante um sem número de distorções, sob esses suportes.
  Em tempos recentes, ainda que a conexão espiritismo/religião não seja fácil de ser desfeita, pelos próprios fundamentos post-mortem do estatuto espírita, vive-se, hoje, o melhor tempo do trato desse conhecimento, particularmente no Brasil, com irradiação para outros países, sob o generalizado conceito de espiritismo laico.
  Não dá para enterrar a história e deixar de reconhecer que há importantes etapas vencidas, com diferenciações mais claras em torno do mesmo foco. A liberdade de expressão, ganhos de independência e descomprometimentos com o passado, evidenciam campos distintos entre conservadores e progressistas.
  O “renascimento” da Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), seguido da criação, por este imenso Brasil, de novas instituições direcionadas ao estudo e à pesquisa espírita, são fatos históricos, altamente positivos, ante poucas décadas atrás. Uma nova literatura produzida pelos encarnados afirma posições, em linguagem livre, com aproveitamento dos princípios do espiritismo. São minoria? Sim, mas quais mudanças houveram no mundo que não partiram de minorias?
  Novas gerações, descendentes ou não de espíritas, já encontram uma bandeira de pé, a de um espiritismo aberto, contraposto ao igrejismo, ao misticismo e ao sectarismo, desfrutando dos bônus do laicismo, como deve ser uma filosofia de bases científicas.
  Essa nova abordagem tem ampliado seu raio de ação, turbinada pela utilização dos meios eletrônicos, gerada por pessoas sem interesse hegemônico.
  Um terceiro argumento em prol do novo estágio da ideia espírita é dado pela mídia em geral, com crescente abordagem de temas correlatos, com força de cidadania para algo que foi censurado, boicotado e proibido, em tempos idos.
  Com essa plataforma, analiso o termo espírita, que significa a aceitação do espírito, de sua origem aos seus ilimitados fins. Nada há mais universal que o termo espírito e, por derivações, espiritismo e espírita. Sob uma visão de mercado, tem tudo para fácil aceitação, é um achado genial. O espírito "sopra onde quer", é real em qualquer quadrante do mundo, como parte da natureza. Na sua essência, partidariamente apolítico, tanto pode renascer em um país democrático, quanto de regime ditatorial; não tem carimbo nacional e tampouco precisa de visto de entrada. O espírito é, e o nome da filosofia científica que trata de sua natureza e relações com o chamado plano físico chama-se espiritismo, termo sujeito às adaptações de linguagem e grafia de cada povo.
  O mestre de Lyon, com toda sua grandeza e sabedoria, abriu mão de substantivar-se para a história, preferindo aceitar as sugestões dos espíritos, a fim de nominar a estrutura nascente.
  Detenhamo-nos, além disso, na importância do tempo. As ciências reconhecidas de hoje, várias anteriormente mescladas com outras, levaram séculos para obtenção de seus espaços próprios. Astronomia, física, química, precisaram ultrapassar estágios de crendices, experimentos arriscados, do empirismo, de teorias de curta duração, para obterem reconhecimento da academia.
  No campo essencialmente teórico, a filosofia, de uma elite de pensadores, engravidada por inúmeras divisões, chegou à praça pública, a ágora, para se tornar, depois, disciplina curricular desde o nível médio escolar. Assim também com a cidadania.
  Sob os pontos de vista de civilização e cultura, entendo que temos muito chão a percorrer. Talvez a nossa condição de país emergente, pelo critério econômico, reflita uma natureza ávida por mudanças, no campo das ideias.
  Mas, se testarmos o conhecimento do espiritismo, como o concebemos, em relação a culturas, como a europeia e a asiática, que antes da chegada de Cabral já eram consideradas antigas, temos resultados pífios.
  Sobre este ponto tenho um fato curioso. Refere-se a uma conversa que mantive com jornalista francês, em Londres. Cobríamos um mesmo evento, ele como correspondente de uma agência internacional de notícias. Num intervalo entre as entrevistas perguntei-lhe se, como francês, conhecia ou ouvira falar no nome Allan Kardec. Para meu espanto e até desaponto, respondeu-me que não. Ainda citei o nome do professor Rivail, com o mesmo resultado negativo. E se tratava de um jornalista.
  Mais recentemente, no Brasil, outro fato chamou-me a atenção, pelo vínculo com propostas de mudanças. Um atleta do Santos Futebol Clube, Adailton, foi objeto de entrevista. Em dezembro de 2008 o site do clube, reproduzido na imprensa, deu breve história do atleta, que nascera com um problema de saúde e fora curado em um centro espírita de Salvador-BA. Parte do texto, sob o título: “Espiritualismo move a fé de Adailton", dizia: "Desde que obtive essa cura, pratico o kardecismo. Com o passar do tempo, me aprofundei na espiritualidade e fui aprendendo coisas novas. A partir do momento que conheci a umbanda, intensifiquei o estudo dessa religião e me apaixonei. Tenho certeza que tudo provem do divino, inclusive todas as religiões".
  Nas fotos que ilustravam a matéria, capas de "O Evangelho Segundo o Espiritismo", do romance mediúnico "Paulo e Estevão" e do "Código de Umbanda", de Rubens Saraceni.
  Observei que o termo kardecismo ganhava em cidadania, mas não passível de ser deturpado por um senso que poderá ser comum. Nesse ritmo não será surpresa se entidades deste imenso país venham a denominar-se "centro kardecista de umbanda". Sem donos, chefias ou controles centralizados, como convém a uma filosofia, essas criações têm campo livre para se manifestar o que não se circunscreve à umbanda.
  A contraposição a esse quadro está no desenvolvimento de um espiritismo afirmativo, em ilimitados campos do conhecimento, nos quais a imortalidade e seus contornos entram como diferenciador. Teses acadêmicas recentes estão neste caminho, ainda que com menor ênfase para o flanco científico. A fase do que "não é" deve ser ultrapassada, um peso que se tira das costas para uma caminhada positiva em direção ao futuro.
  Entendo que a denominação espirita kardecista, seria a mais abrangente e bem posta. O kardecista reafirma uma escola, é mais rígido e definidor do seu conteúdo, mas eis que se institui uma variedade de espiritismo. E aí se colide com o trademark do fundador.
  Agregue-se outro fator de importância histórica. Continuadores de Kardec, de antigos e contemporâneos tempos, os Léon Denis, Delanne, Bozzano, junto a pensadores e idealistas, como Porteiro, Herculano Pires, Deolindo Amorim, que somaram nos termos espíritas e espiritismo, estariam com seus fundamentos comprometidos? A partir de qual momento, e com que autoridade, se substituiriam as denominações de origem, por novas?
  São algumas contribuições que julgo de interesse a esse debate. Oportunamente pretendo externar meus pontos de vista sobre o termo "atualização". Bom é que sigamos com a liberdade de propor nomes, conceitos e métodos, lançando-os no mercado do tempo.

José Rodrigues (1938-2010), economista e jornalista, foi um dos fundadores e editores do site Pense - Pensamento Social Espírita e fundador da ARS - Ação de Recuperação Social, de Santos-SP.
Fonte: Jornal “Opinião”, julho de 2009, órgão de divulgação do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre-RS.
 http://kardeconline.com.br/

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